Documento
que registra extermínio de índios é resgatado após décadas
desaparecido
Relatório
de mais de 7 mil páginas que relatam massacres e torturas de índios
no interior do país, dado como queimado num incêndio, é encontrado
intacto 45 anos depois
Felipe
Canêdo - 19/04/2013
Depois de
45 anos desaparecido, um dos documentos mais importantes produzidos
pelo Estado brasileiro no último século, o chamado Relatório
Figueiredo, que apurou matanças de tribos inteiras, torturas e toda
sorte de crueldades praticadas contra indígenas no país –
principalmente por latifundiários e funcionários do extinto Serviço
de Proteção ao Índio (SPI) –, ressurge quase intacto.
Supostamente eliminado em um incêndio no Ministério da Agricultura,
ele foi encontrado recentemente no Museu do Índio, no Rio, com mais
de 7 mil páginas preservadas e contendo 29 dos 30 tomos originais.
Em uma
das inúmeras passagens brutais do texto, a que o Estado de Minas
teve acesso e publica na data em que se comemora o Dia do Índio, um
instrumento de tortura apontado como o mais comum nos postos do SPI à
época, chamado “tronco”, é descrito da seguinte maneira:
“Consistia na trituração dos tornozelos das vítimas, colocadas
entre duas estacas enterradas juntas em um ângulo agudo. As
extremidades, ligadas por roldanas, eram aproximadas lenta e
continuamente”.
Entre
denúncias de caçadas humanas promovidas com metralhadoras e
dinamites atiradas de aviões, inoculações propositais de varíola
em povoados isolados e doações de açúcar misturado a estricnina,
o texto redigido pelo então procurador Jader de Figueiredo Correia
ressuscita incontáveis fantasmas e pode se tornar agora um trunfo
para a Comissão da Verdade, que apura violações de direitos
humanos cometidas entre 1946 e 1988.
A
investigação, feita em 1967, em plena ditadura, a pedido do então
ministro do Interior, Albuquerque Lima, tendo como base comissões
parlamentares de inquérito de 1962 e 1963 e denúncias posteriores
de deputados, foi o resultado de uma expedição que percorreu mais
de 16 mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do SPI e
visitou mais de 130 postos indígenas. Jader de Figueiredo e sua
equipe constataram diversos crimes, propuseram a investigação de
muitos mais que lhes foram relatados pelos índios, se chocaram com a
crueldade e bestialidade de agentes públicos. Ao final, no entanto,
o Brasil foi privado da possibilidade de fazer justiça nos anos
seguintes. Albuquerque Lima chegou a recomendar a demissão de 33
pessoas do SPI e a suspensão de 17, mas, posteriormente, muitas
delas foram inocentadas pela Justiça.
Os únicos
registros do relatório disponíveis até hoje eram os presentes em
reportagens publicadas na época de sua conclusão, quando houve uma
entrevista coletiva no Ministério do Interior, em março de 1968,
para detalhar o que havia sido constatado por Jader e sua equipe. A
entrevista teve repercussão internacional, merecendo publicação
inclusive em jornais como o New York Times. No entanto, tempos depois
da entrevista, o que ocorreu não foi a continuação das
investigações, mas a exoneração de funcionários que haviam
participado do trabalho. Quem não foi demitido foi trocado de
função, numa tentativa de esconder o acontecido. Em 13 de dezembro
do mesmo ano o governo militar baixou o Ato Institucional nº 5,
restringindo liberdades civis e tornando o regime autoritário mais
rígido.
O
vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e
coordenador do Projeto Armazém Memória, Marcelo Zelic, foi quem
descobriu o conteúdo do documento até então guardado entre 50
caixas de papelada no Rio de Janeiro. Ele afirma que o Relatório
Figueiredo já havia se tornado motivo de preocupação para setores
que possivelmente estão envolvidos nas denúncias da época antes de
ser achado. “Já tem gente que está tentando desqualificar o
relatório, acho que por um forte medo de ele aparecer, as pessoas
estão criticando o documento sem ter lido”, acusa.
Suplícios
O
contexto desenvolvimentista da época e o ímpeto por um Brasil
moderno encontravam entraves nas aldeias. O documento relata que
índios eram tratados como animais e sem a menor compaixão. “É
espantoso que existe na estrutura administrativa do país repartição
que haja descido a tão baixos padrões de decência. E que haja
funcionários públicos cuja bestialidade tenha atingido tais
requintes de perversidade. Venderam-se crianças indefesas para
servir aos instintos de indivíduos desumanos. Torturas contra
crianças e adultos em monstruosos e lentos suplícios”, lamentava
Figueiredo. Em outro trecho contundente, o relatório cita chacinas
no Maranhão, em que “fazendeiros liquidaram toda uma nação”.
Uma CPI chegou a ser instaurada em 1968, mas o país jamais julgou os
algozes que ceifaram tribos inteiras e culturas milenares.
Felipe Canêdo
Publicação extraída do Estado de Minas Notícias www.em.com.br
19/04/2013
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