Área
indígena sagrada vai virar hidrelétrica
Na
curva onde o rio divide os Estados do Pará e Mato Grosso, as águas
esverdeadas e velozes do Teles Pires escondem um santuário de
belezas naturais e um reino místico da cultura indígena. Para o
"homem branco", nada mais é do que a sequência de sete
quedas de corredeiras. Entre os povos indígenas, trata-se de um
lugar sagrado, que não pode ser mexido. Ali, entre ilhas, pedras e
uma mata ainda intocada, eles acreditam que vivem os espíritos de
seus antepassados, a mãe dos peixes e da água. "Se for
destruído, coisas ruins vão acontecer para o homem branco e para a
comunidade indígena", prevê o cacique João Mairavi Caiabi,
que aos 51 anos comanda 206 pessoas da aldeia Cururuzinho.
A
reportagem é de Renée Pereira e publicada pelo jornal O Estado de
S. Paulo, 01-07-2012.
Segundo
ele, algumas dessas maldições já perturbam o dia a dia dos índios:
"Temos pessoas com suspeita de tuberculose. Isso nunca aconteceu
antes na comunidade. É reflexo das intervenções no rio e na
floresta". Os caiabis moram a alguns quilômetros das
corredeiras Sete Quedas, nas margens do rio onde está sendo
levantada a Hidrelétrica de Teles Pires, a quarta maior usina em
construção no Brasil, com 1.820 megawatts (MW) de potência -
energia suficiente para abastecer 5 milhões de habitantes, a maioria
do Sudeste.
Na
região, também moram os índios da etnia mundurucu, considerados
mais arredios, e apiacá, que juntos somam uma população de cerca
de 600 índios - alguns deles são acusados de nunca terem ido nas
Sete Quedas. A exemplo de outras obras, como Belo Monte (PA), a
barragem, de R$ 3,6 bilhões, enfrenta fortes protestos de índios,
ambientalistas e do Ministério Público, contrários à expansão
das usinas na Amazônia. A preocupação do cacique João é que, só
na Bacia do Teles Pires, devem ser construídas mais quatro
hidrelétricas, além das duas em andamento (Teles Pires e Colíder).
Para tirar os projetos do papel, cerca de 70 mil hectares de floresta
dariam lugar aos lagos - isso significa 70 mil campos de futebol.
Embora
elevado, o número é bem inferior ao das usinas do passado - a
Hidrelétrica de Balbina, no Amazonas, inundou quase três vezes mais
para gerar apenas 275 MW. Hoje, diante da preocupação ambiental,
quase todas as usinas são a fio d'água, sem grandes áreas de
reservatório. Se por um lado reduzem a potência da unidade, por
outro diminuem substancialmente o impacto ambiental. Isso não
significa, entretanto, impacto zero, especialmente para os indígenas.
Compensação
ambiental
O
lago de Teles Pires terá 9.500 hectares de área inundada, sendo que
7 mil hectares terão de ser desmatados. Em compensação, a
Companhia Hidrelétrica de Teles Pires (CHTP, formada por Neoenergia,
Furnas, Eletrosul e Odebrecht), que detém a concessão da usina,
terá de pôr em prática 45 programas sociais, ambientais e
indígenas, num total de quase meio bilhão de reais (15% do valor
total da obra).
Estão
sendo criados projetos de monitoramento de clima, água e solo;
controle de prevenção de doenças; construção de escolas,
unidades de saúde, terminal rodoviário, pontes e a pavimentação
de ruas. Há ainda programas de resgate de fauna e flora de toda área
impactada, além do monitoramento de algumas espécies em extinção.
Não importa se é um grande mamífero ou simplesmente uma borboleta,
como a Agrias Claudina, ameaçada no Pará. "Todos precisam ser
resgatados e catalogados", afirma a gerente de Meio Ambiente da
CHTP, Maíra Fonseca Moreira Castro.
Mas,
numa região com a biodiversidade tão rica como na Amazônia, é
praticamente impossível evitar todos os prejuízos. Maíra conta que
já foram resgatadas 1.084 espécies diferentes de árvores na área
da usina, sendo que 638 delas foram descobertas após os estudos de
impacto ambiental. Só de orquídeas são 85.326 espécies
diferentes. Tudo isso catalogado e resgatado por 60 pessoas.
O
Plano Básico Ambiental (PBA) indígena é tratado a parte. A CHTP
desenhou 12 programas com investimentos para atender as 12 aldeias
indígenas da área. Mas a proposta está longe de atender aos
anseios das lideranças da região, que ainda não aprovaram o
documento. "O PBA está muito fraco. Precisamos de projetos
melhores na saúde, educação e habitação", afirma Elenildo
Caiabi, um jovem de 25 anos que conhece bem tanto a cultura indígena
como a do "homem branco". Para ele, as aldeias precisam
reivindicar seus direitos enquanto a usina está em construção.
"Depois vão todos embora e nós ficamos apenas com os
prejuízos, sem lugar para caçar e pescar."
A
lista de equipamentos pedidos pelos índios à CHTP é grande - e
cara. Inclui caminhonetes importadas, como Mitsubishi, barcos e
motores, antenas parabólicas, etc. A justificativa é a localização.
Para chegar à aldeia Cururuzinho, no Pará, há duas alternativas.
De avião, gasta-se meia hora saindo de Paranaíta, a cidade mais
próxima no Estado de Mato Grosso. Mas esse é um meio de transporte
apenas para os visitantes. Normalmente, os índios levam cinco horas
para chegar à cidade, sendo duas horas de carro e mais três horas
de barco.
Modernidades
Na
comunidade, cercada de um lado pelo Rio Teles Pires e de outro pela
Floresta Amazônica, as casas - algumas retangulares e outras, ovais
- ainda são feitas de madeira e cobertas de folhas de palmeiras. No
chão, apenas terra batida. A única casa de alvenaria é reservada
aos visitantes da aldeia. Mas alguns avanços da cidade já fazem
parte da vida dos caiabis. A aldeia tem um orelhão e energia
elétrica produzida por gerador, que funciona à noite ou quando
alguém precisa usar o computador, por exemplo.
Eles
têm fogão a gás, mas quase nunca usam. Preferem o fogão a lenha,
improvisado com tijolos e uma chapa, melhor para assar peixes e carne
de animais nativos, como jacu, cateto e paca. Alguns alimentos do
"homem branco" também integram as refeições dos índios,
como arroz, café e açúcar. "Mas preferimos o peixe, a caça e
a farinha de mandioca, plantada aqui do lado", afirma Valdete
Caiabi, que aos 25 anos é mãe de cinco filhos. "Dizem que não
vai ter nenhum impacto para nós. Mas temos parentes que moram perto
de outras hidrelétricas e hoje não têm mais peixe para comer. O
rio é o nosso mercado", diz ela.
Em
março, a Justiça suspendeu a licença de instalação da usina,
alegando que os índios não haviam sido ouvidos. As obras, na época
com 2 mil trabalhadores, ficaram paralisadas por 12 dias. A CHTP teve
de alugar avião para levar os trabalhadores para casa durante esse
período.
De
acordo com a empresa, todas as audiências públicas foram feitas
dentro da lei e gravadas. Mas para o procurador da República no
Pará, Felício Pontes, pela lei, é o Congresso Nacional que tem de
fazer oitivas nas aldeias indígenas e não engenheiros e executivos.
Segundo ele, entre Ministério Público Federal e Estadual, há cerca
de 11 ações propostas contra a usina de Teles Pires.
"Fizemos
várias alterações no projeto para reduzir os impactos ambientais
na região. Vamos produzir mais megawatts com menos área alagada e
devastada", afirma o diretor de Sustentabilidade da CHTP, Marcos
Azevedo Duarte. As mudanças, no entanto, não seduzem os caiabis:
"Queria o rio do jeito que Deus deixou", diz Valdete.
Índios
e brancos vivem em clima hostil
No
lugar da placa de "Bem-vindo", uma faixa com letras
garrafais escancara um problema que vai além da construção da
Hidrelétrica de Teles Pires. É com a frase "Unidos contra a
demarcação de terras indígenas" que a pequena cidade de
Paranaíta, de 10 mil habitantes, recebe seus visitantes. A
demarcação para elevar de 117 mil para mais de 1 milhão de
hectares o tamanho da reserva das três etnias (caiabis, mundurucus e
apiacás) deveria ter sido iniciada dia 22, mas foi suspensa pelo
Superior Tribunal de Justiça (STJ).
No
município, que teve origem em 1979 e foi emancipado sete anos
depois, conta-se nos dedos quem seja a favor dos índios.
Naturalmente, os fazendeiros que ajudaram a fundar a cidade são os
mais arredios. Foram eles que patrocinaram a confecção de várias
faixas espalhadas pela cidade. Algumas, no entanto, foram assinadas
pela própria prefeitura de Paranaíta. "Temos de defender o
lado da economia. Há um grupo de pecuaristas que terão os
investimentos inviabilizados. Além disso, vamos perder as jazidas de
calcário na região, que não poderão ser exploradas", observa
o prefeito de Paranaíta, Pedro Miyazima.
Mas
não são apenas os latifundiários que hostilizam os índios. Até
mesmo aqueles que se dizem descendentes, como José Hermínio da
Silva, são contra as tribos locais. "Eles se intrometem em
tudo", reclama o baiano, de 77 anos, que chegou em Paranaíta em
1988 para trabalhar no garimpo. Não fez fortuna, mas conseguiu
comprar uma casa e dois lotes de terra. "Vendi uns 80 quilos de
ouro, mas reinvesti tudo. Continuo pobre", conta ele, que guarda
na boca as lembranças da época do garimpo. Seus dois caninos são
revestidos de ouro.
Do
outro lado, os povos indígenas reclamam da agressividade do "homem
branco". "Quando chegamos na cidade, ouvimos: Por que esses
índios estão aqui? Por que não ficam em suas aldeias?",
relata Elenildo Caiabi. Segundo ele, seu povo está estudando e
conhecendo melhor a cultura do não índio para lutar pelos seus
direitos.
"Eles
alegam que um 1 milhão de hectares é muito para nós, mas nunca
nenhum deles veio aqui saber como vivemos", diz Elenildo,
referindo-se aos prefeitos e governadores dos Estados do Mato Grosso
e Pará. Da mesma forma, os índios são acusados de nunca terem ido
às corredeiras Sete Quedas, que hoje dizem ser um local sagrado. A
briga pela demarcação das terras já dura mais de 23 anos. "O
governo fez tanta promessa e não cumpriu nenhuma delas. Mas não
vamos desistir", completa Valdete Caiabi.
A
decisão da Justiça de suspender a demarcação poderá ter reflexo
na construção da Hidrelétrica de Teles Pires, vista como moeda de
troca para a comunidade indígena. O cacique João Mairavi Caiabi
ameaça invadir o canteiro de obras da usina se o governo federal não
resolver logo a situação. "Os fazendeiros têm medo de perder
suas propriedades. Nós temos medo de perder nosso rio, nossa
floresta, nossa comida", completa Valdete.
Matéria
extraída da página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos –
IHU - órgão da Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
Unisinos.