quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Ruralistas ameaçam a Constituição



Ruralistas ameaçam a Constituição




Por ERWIN KRÄUTLER E ENEMÉSIO LAZZARIS

Folha S. Paulo, 17 de setembro de 2013.



Aos ruralistas, seja na tribuna do Congresso Nacional ou nos jornais, não há o que os leve mais ao descontrole do que a causa indígena.

Descontrole expresso em uma escalada de recursos contra os direitos desses povos e de comunidades tradicionais garantidos pela Constituição Federal, que está prestes a completar 25 anos.

Um desses recursos é a PEC (proposta de emenda constitucional) 215/00, que transfere a competência da demarcação de terras indígenas do Poder Executivo para o Congresso Nacional.

Essa PEC, segundo nota técnica do Ministério Público Federal (MPF), afronta "cláusulas pétreas da Constituição da República" e viola o núcleo essencial de direitos fundamentais. Fere a divisão dos Poderes e anula o direito originário à terra, sendo a demarcação ato administrativo, segundo os juristas Carlos Frederico Marés e Dalmo de Abreu Dallari.

À PEC 215, somam-se dezenas de outros projetos de lei, que tentam impedir o reconhecimento de terras indígenas e favorecer o uso delas pelo agronegócio.

Nada parece deter os ruralistas, que ostentam uma bancada de 214 deputados e 14 senadores, com campanhas eleitorais financiadas pelo capital estrangeiro da Monsanto, Cargill e Syngenta, além da indústria de armas e frigorífico, conforme dados da Transparência Brasil.

O que esperar dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais a não ser a resistência, tal Davi contra Golias, em defesa de seus direitos?

Assim foi em abril, quando indígenas ocuparam a Câmara dos Deputados, e assim tem sido na retomada de terras tradicionais, com procedimentos demarcatórios paralisados pelo Executivo.

É o caso da terra indígena tupinambá de Olivença (BA). Seu procedimento administrativo está encerrado desde 2009. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, no entanto, nega-se a assinar a portaria declaratória. País afora a situação é dramática.

No Mato Grosso do Sul, a terra Kadiwéu, demarcada há cem anos e homologada há quase 40, continua invadida. Relatório do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) registra que, de 2003 a 2012, ocorreram no Estado 317 assassinatos de indígenas, dos 563 ocorridos no país nesse período.

No caso da morte de Nísio Gomes Guarani Kaiowá, o MPF apontou como mandantes ao menos seis "produtores rurais". O confinamento às margens de rodovias ou em minúsculas reservas levou ao suicídio, entre 2000 e 2012, de 611 indígenas, jovens entre 14 e 25 anos, de acordo com dados do Dsei (Distrito de Saúde Indígena).

A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) convoca, entre 30 de setembro e 5 de outubro, uma mobilização nacional contra a ofensiva à Constituição e aos direitos indígenas. Cimi e CPT (Comissão Pastoral da Terra) apoiam o ato, fundamentados nos valores do Evangelho e por dever de justiça e solidariedade a quem tem sido espoliado de seus territórios e de seus direitos há tanto tempo.

A senadora Kátia Abreu (PSD-TO), em coluna nesta Folha ("Causa Inconfessável", 7/9) tenta desqualificar a ação dessas pastorais taxando-as de "ideológicas".

O assentamento de famílias sobre terras indígenas, inclusive com a emissão de títulos de propriedade do Estado, não nega o esbulho dos territórios.

Isso não ocorre somente no caso de terras tradicionalmente indígenas. A senadora e familiares foram beneficiados pelo governo do Tocantins com terras ocupadas por posseiros. Além de atentar contra o direito à terra dos povos e de posseiros, Kátia Abreu milita contra o direito à identidade coletiva.

A senadora protocolou na Casa Civil pedido para que a Funai (Fundação Nacional do Índio) paralise o processo de identificação étnica do povo Kanela do Tocantins.

Os indígenas não estão solitários em suas mobilizações, pois a sociedade está atenta ao escândalo do latifúndio ruralista brasileiro.


ERWIN KRÄUTLER, 74, é bispo da prelazia do Xingu (PA) e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

ENEMÉSIO LAZZARIS, 64, é bispo da diocese de Balsas (MA) e presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT)

Publicado no jornal Folha de S. Paulo/TENDÊNCIAS/DEBATES, no dia 17 de setembro de 2013


terça-feira, 17 de setembro de 2013

Jorge Pontual, um jornalista que discorda



Jorge Pontual, um jornalista que discorda


Jorge Pontual é um jornalista experiente e qualificado, que surpreende pela independência, pela capacidade de discordar e colocar sua visão das coisas. Pensa fora do padrão do seu meio. Certa vez assisti, ao vivo, na Globo News ele discordar da Eliane Cantanhêde (colunista da Folha de S. Paulo),  sobre a visita da Dilma nos EUA. Para ela não teve destaque na mídia norte-americana. Ele discordou, disse que a visita teve bom destaque nos jornais. Que Dilma teve mais espaço do que costumam ganhar os visitantes, mesmo os europeus, nos jornais dos EUA.

Pois hoje, novamente, ao vivo, na Globo News, no programa Em Pauta ele coloca uma opinião distinta e que faz a diferença. O tema era logística. Eliane Cantanhêde toma a infraestrutura dos EUA como perfeita, destaca os aeroportos, dizendo que estão 200 anos na frente do Brasil, só fala dos aspectos positivos. Jorge Pontual, por sua vez, diz que a infraestrutura dos EUA está sucateada, rodovias se deteriorando, trens de passageiros MUITO atrasados em relação ao padrão europeu, que falta investimentos e decisão política. Colocou outra visão dos Estados Unidos, de um país com problemas, de infraestrutura em declínio. 

Jorge Pontual é um liberal com formação democrática, visão social e preocupação ambiental. Um cara que usa bicicleta como transporte e sabe discordar. Um bom jornalista não precisa ser de esquerda. O que não pode é ser mau-caráter e sem ética.

Espero que profissionais como Jorge Pontual, Rodrigo Vianna, Luiz Carlos Azenha e outros, se multipliquem. Certamente, no RS, temos muitos excelentes jornalistas. Mas não basta ter qualidade de texto, precisa ter ética, grandeza e a autonomia para poder discordar e afirmar o que pensa. Como lembra sempre Mino Carta (da revista Carta Capital), é só no Brasil que jornalista chama o seu patrão de colega.







terça-feira, 10 de setembro de 2013

Salvador Allende, o Fiel



Salvador Allende, o Fiel  -  40 anos do golpe



Por Demilson Fortes



Embora a multidão nas ruas de Santiago gritasse em coro “Allende, Allende, o povo te defende”, não foi o suficiente para impedir o terror. Há 40 anos, a força bruta venceu a vontade do povo e a democracia. Com armas, tanques, aviões, os militares conservadores - e traidores -, associados com setores patronais e o governo dos Estados Unidos, deram um golpe de Estado. Conseguiram calar vozes e interromper um dos mais vigorosos e belos processos de transformação social da história.

O dia 11 de setembro de 1973 foi dramático para a esquerda chilena. O Chile quebrava a construção de um governo popular e uma tradição democrática de mais de um século. A ideia de igualdade, de partilhar a terra, de operários participarem da gestão das fábricas, de erradicar o analfabetismo e garantir educação e saúde para todos, foi demais para a elite chilena. Era muita democracia.

O golpe militar pôs fim ao governo democrático e constitucional do presidente Salvador Allende. O que transcorreu após o golpe foi um massacre tanto contra seus partidários como para os lutadores sociais, lideranças populares, revolucionários, reformistas e democratas no Chile, que sentiram na própria carne a violência e o terror da direita. Foram perseguidos, presos, torturados e assassinados. Campos de tortura foram montados e opositores mortos, alguns foram lançados ao mar. O Estádio Nacional, local de alegrias e mobilizações, no golpe tornou-se um espaço de terror, palco da violência covarde contra gente desarmada, boa parte deles constituída de jovens sonhadores, que dedicavam parte da vida para a coletividade. Era interrompido ali o sonho de construir um Chile de igualdade e liberdade.

Nos anos 60, a esquerda latino-americana esteve ligada a uma ideia de guerrilhas, de tomada do poder pelas armas, a exemplo de Cuba, da tentativa de Che Guevara na Bolívia e de outras organizações. Salvador Allende quebrava um paradigma, defendendo a construção do socialismo por outra via, pelas urnas, por meio de eleições e mobilização do povo. Allende rompia também com o estilo tradicional dos políticos.

No Chile do início dos anos 70, produziu-se um movimento popular gigantesco. “Era como se o país estivesse apaixonado”, “Processos sociais que unem as pessoas assim só acontecem de 100 em 100 anos”, definiu o cineasta Patricio Guzman, que foi testemunha e documentou em vídeo esse extraordinário período histórico. No Chile de Allende “a história foi acelerada”. “Tem-se a impressão de tocar o processo social”, disse Guzman.

Estavam em curso mudanças profundas na sociedade chilena, por via democrática e pacífica. O líder cubano Fidel Castro, na época, em visita ao Chile, afirmou tratar-se de “um processo único, insólito, praticamente o primeiro da humanidade”.

Até então senador, o médico de formação, procedente da região de Valparaiso, Allende era um líder autêntico, que aglutinava pessoas e tinha uma capacidade enorme de comunicação. Quem conviveu com ele conta que era um homem culto e cordial. O próprio embaixador dos Estados Unidos reconhecia estas características no líder socialista.

Socialista de uma tradição libertária, tinha profundas convicções democráticas, acreditava na ideia da igualdade, da superação da pobreza e da capacidade dos trabalhadores se auto-organizarem e fazerem história. Acreditava que socialismo e liberdades eram compatíveis e possíveis. Para Allende, o povo chileno tinha o direito de construir um caminho autônomo de soberania e democracia com igualdade social. Conhecedor do pensamento marxista, suas influências políticas teóricas iam bem além. Elegeu-se presidente no dia 4 de Setembro de 1970, em sua quarta tentativa. Uma construção de muitos anos.

Salvador Allende, do Partido Socialista, foi eleito por uma coalização de esquerda, a Unidade Popular, que aglutinava um conjunto de forças políticas com destaque para os socialistas e comunistas, mas também com participação de cristãos de esquerda, social-democratas e outros grupos de esquerda. “Sou um lutador social que cumpro uma tarefa”, dizia Allende.

O programa da Unidade Popular era ousado. E revolucionário. Propunha, entre outras ações, nacionalizar as riquezas minerais cobre, ferro, salitre e carvão. As transformações seriam em todas as áreas, reforma agrária, reforma educacional, moradias para a população, saúde pública, cultura etc. O núcleo da economia seria nacionalizado e estatizado. Os trabalhadores participariam na gestão das fábricas, se abriria um novo horizonte de poder.

Salvador Allende venceu as eleições com 36,2% dos votos. Milhares de pessoas foram as ruas comemorar o momento histórico. No entanto, ele não obteve maioria dos votos e teve que ser confirmado pelo Congresso. Assumiu o governo, mas não tinha o poder. No governo, o projeto da Unidade Popular, radicalmente transformador, foi colocado em curso, mas em um país com instituições conservadoras, que logo mesmo antes de assumir já aparecia a oposição e as articulações dos Estados Unidos. Com minoria no Parlamento, Judiciário tradicional e mídia conservadora controlada por setores da oposição e classe patronal organizada, foi muito difícil governar. A oposição não deu trégua. O governo viveu crises.

Os problemas era internos e externos. Os Estados Unidos atuaram, desde o início, para desestabilizar o governo, boicotando-o e apoiando a oposição ao governo e ajudou tramar o golpe, como testemunhou Edward Korry, embaixador norte-americano na época. Richard Nixon, falava com ódio de Salvador Allende e estava determinado a derrubá-lo e derrotar o governo socialista. Korry relata que, em uma reunião, presenciou Nixon golpeando uma mão sobre a outra, num gesto de esmagar Allende, e usava palavras ofensivas ao se referir ao presidente chileno.

Por sua vez, a oposição apostou no desgaste e caos e fez de tudo para inviabilizar o governo da Unidade Popular. Boicotava sistematicamente as iniciativas do governo. Provocou muitas derrotas do governo no Congresso, destitui ministros e funcionários do governo. Foram sete ministros destituídos em três meses pelo Legislativo, e que tentou derrubar todos (um total de quinze) para atingir o presidente Allende. A reforma educacional foi barrada. Mas, o Congresso queria mesmo era ter pretexto para impedir o presidente, só não o fez porque não conseguiu obter número de representantes necessários nas eleições paramentares. Alguns setores da oposição fizeram provocações constantes, ações violentas contras pessoas e contra o patrimônio. Grupos terroristas fascistas cresciam e eram tolerados e até incentivados pela oposição e pelos Estados Unidos.

O governo sofria oposição política, mas também da classe patronal - empresarial, comercial e rural -, que apostou muito no desabastecimento do país, fator econômico fundamental à população e para mover a economia. Pelas medidas tomadas, muitas importações foram prejudicadas. O país precisava efetivar o comércio internacional e obter divisas para comprar itens importantes, como medicamentos, combustíveis, alimentos, máquinas, peças, tecnologia, matérias-primas, insumos, entre outros. No entanto, a direita estava decidida, tinha estratégia, queria desorganizar o abastecimento, esgotar estoques e sabotar a produção. Tudo era válido para derrotar o governo popular.

Um dos fatores decisivos para desestabilizar o governo da Unidade Popular foram as greves dos transportadores, setor é estratégico para a mobilidade de pessoas e à produção de um país. Numa delas, em outubro de 1972, 70% dos ônibus de Santiago pararam. Trabalhadores improvisaram, foram ao trabalho em caminhões, tratores, veículos de tração animal.

Em outra greve, decisiva para instaurar o desabastecimento, financiada diretamente pelos Estados Unidos, os caminhões pararam de transportar a produção, afetando os estoques e a distribuição. A corporação de transportadores paralisou milhares de caminhões e ônibus. Faltaram combustíveis e peças.

Entidades da classe patronal, meios de comunicação e parte importante da classe média chilena, apoiaram os grevistas. Mas os trabalhadores criaram lojas de abastecimento popular e comissões de bairros para enfrentar a escassez. Em todas as tentativas de desgastar o governo, o povo se organizava e dava respostas. A população mais pobre e os trabalhadores estavam com o presidente Allende.

Embora com embargos, boicotes, oposição ferrenha, ação dos Estados Unidos, o governo Allende avançava. Colocava em prática o programa que o povo elegeu. Apesar da crise, a Unidade Popular aumentou o apoio nas eleições parlamentares e frustrou a oposição, que não obteve base suficiente para impedi-lo de governar.

O Partido Democrata Cristão, na oposição, se negou a colaborar em vários momentos que o presidente Allende buscou o diálogo para acordo mínimo, mesmo sabendo que a democracia estava em perigo. Os políticos chilenos de centro, que se diziam democratas, fizeram alianças à direita e apostaram no caos para derrotar a Unidade Popular. O presidente, para contornar a crise, chamou militares para compor o governo. Entre eles estava Augusto Pinochet, general traidor que liderou o golpe e foi ditador por 17 anos.

Para piorar a situação, setores dos trabalhadores, de minas de cobre, fizeram greve por aumento salarial. Mineiros de “El Teniente”, que respondiam por parte significativa das divisas do Chile, pararam, afetando a produção e a economia chilena. Os mineiros não conseguiram ver o país no todo, o que ocorria no país, o contexto social e político, a crise e os riscos para a democracia. Faltou à categoria a visão de classe social e de futuro. A corporação e os ganhos individuais imediatos pesaram mais. Isso contribuiu para desgastar o governo.

Além disso, a coalizão de esquerda que sustentava o presidente Allende tinha as suas divisões internas. Alguns apostavam na radicalização, outros na via mais moderada. Havia avaliação equivocada de avaliação de setores mais extremistas de esquerda, que, em meio à paixão da causa e enfrentamento de classes, não conseguiram ver os riscos por que passava o país e os limites que a conjuntura apresentava ao governo. Mas, o certo que a base social tensionava por mudanças e colocava o governo em difícil situação.


Os meios de comunicação chilenos, dominados pela oposição, ajudaram a desestabilizar o governo popular. As Forças Armadas, treinadas nos Estados Unidos, traíram o presidente e seus próprios integrantes, pois os militares que defendiam a Constituição foram assassinados. Da mesma forma, líderes empresariais faziam cursos com instituições norte-americanas, financiados pela CIA. Tinha-se no país, portanto, estruturas conservadoras organizadas, de comunicação, empresarial e militar, com vínculos e compromissos ideológicos estreitamente ligados aos interesses dos Estados Unidos. Isso deu base estrutural e doutrinária para o golpe.


Até a madrugada de 11 de setembro de 1973, o Chile tinha um líder democrático, utopia, sonhos, operários organizados nas fábricas e o povo na rua. Mas, em seguida, estava derrotado e desmobilizado. Seguiram-se longos anos de uma ditadura covarde e cruel, que sufocou liberdades, silenciou o pensamento crítico, torturou e matou seus opositores. De uma ditadura que privatizou o país. Regime violento que se impôs pela força e pelo medo. Em 2011, o relatório da Comissão da Verdade (Comissão Valech) informou que foram mais de 40 mil vítimas da ditadura de Pinochet, entre mortos, desaparecidos e torturados. Mas, alguns estimam ser bem maior o número de vítimas.


As intervenções do presidente Salvador Allende nunca deixaram dúvidas do seu compromisso com a transformação, mas também com as liberdades. Em uma delas, afirmou: “Uma revolução por uma via distinta, de acordo com nossa história, tradição e realidade. Espero que sejamos capazes de escrever uma página a mais para mostrar que o Chile tem sua própria vontade criadora”.

Na crise aguda, ouvindo gritos sugerindo fechar o Congresso, ele respondeu para a multidão: “Não vou fechar o Congresso”, justificando que queria para o Chile uma sociedade “pluralista, de democracia e liberdade”. “Se necessário, enviarei projeto sobre plebiscito para o povo decidir sobre a situação”, indicou. Tanto que, três meses antes do golpe, Allende foi ao parlamento e reafirmou seu compromisso com a legalidade e com a transição pacífica e democrática para o socialismo. O presidente Allende pretendia propor um plebiscito para a população decidir o futuro do país, mas, infelizmente, não teve a chance.


Ficou um vazio de povo. Ficou a ausência de Salvador Allende. A esquerda latino-americana perdeu um líder insubstituível. Para os derrotados, indignação, dor, perdas e impotência. O mundo perdeu a possibilidade de uma experiência de transição ao socialismo com democracia e liberdades plenas. Um tempo irrecuperável.

No 11 de setembro de 1973, foi derrotado um país em que o sonho, a alegria, o entusiasmo coletivo e o extraordinário se materializaram nas esquinas, ruas, praças, escolas, vilarejos e fábricas. O futuro já não pertencia mais a todos. Poucos meses antes do golpe, houve a maior manifestação da história do Chile até aquele momento, mais de meio milhão de pessoas foram as ruas manifestar apoio ao seu presidente, chegavam de todos os lados. Foram a pé, de bicicletas, de ônibus, de carroças ou de tratores. Nada foi suficiente para impedir o golpe. Venceu a barbárie.

O Chile do governo da Unidade Popular tinha uma população mobilizada, porém, sem armas. “A lealdade do povo, responderei com a lealdade de um militante socialista”, afirmou Allende, em uma das suas falas, para a multidão, que o escutava, .O socialista Salvador Allende foi fiel, até o fim.



Demilson Fortes.
Porto Alegre, Setembro de 2013

Distante 40 anos do trágico 11 de setembro, este texto é minha modesta homenagem a este grande líder socialista, corajoso e leal com seu povo. Compartilho com Salvador Allende a ideia fundadora de que igualdade e liberdade são compatíveis, mas mais que isso, para os socialistas libertários, devem ser indissoviáveis. Gracias, presidente Allende.


Referências:
Tem disponível muitos textos e livros sobre o período, mas sugiro, em especial, dois filmes: “A Batalha do Chile - A luta de um povo sem armas” e o filme “Allende” ambos do cineasta Patricio Guzman.



quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O lobby dos agrotóxicos - entrevista com ex-gerente da Anvisa


Lobby por agrotóxico na Anvisa é um inferno, diz ex-gerente

Publicado em: 03/09/2013
Luiz Cláudio Meirelles, ex-gerente de toxicologia da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi exonerado do cargo em novembro de 2012 quando denunciou um esquema de corrupção para aprovar 7 princípios ativos de agrotóxicos mais rapidamente. Nesta entrevista, ele relata como era a abordagem para que se apressasse as aprovações e diz que vê sua saída como algo já desejado há muito tempo pela bancada ruralista do congresso.

Tiago Mali 
Revista Galileu



Quanto tempo você ficou na Anvisa?

Treze anos e meio. Peguei lá em fevereiro de 1999 e sai de lá em novembro de 2012.

Como as coisas funcionavam lá?

A Anvisa estava para ser criada em 1999 e eu fui convidado pra organizar a gerência de toxicologia [que cuida da avaliação de agrotóxicos] ,ela não existia ainda. O nosso olhar sobre essa questão era uma avaliação preventiva. Você vê os problemas relacionados àquela substância antes de ela ir pro mercado, e evitar que exista algum risco ou algum dano saúde da população, e também pensa em questões de controle. Por exemplo, monitorar os resíduos de agrotóxicos em alimentos, melhores informações sobre os agravos provocados por esses produtos, melhoria da notificação de intoxicações, rever substancias autorizadas no passado que já estavam no mercado quando a gente chegou.

Você organizou esse setor lá.

Sim. E o objetivo era uma ação dinâmica. Quando você fala de substância química, elas estão sendo estudadas permanentemente. E às vezes uma coisa que era considerada segura no passado, dependendo dos estudos que apareçam, pode não ser mais considerada segura e você ter que mudar a decisão. Por exemplo, o DDT. Quando foram lançados ali pela década de 1970 eram a maravilha do mundo. E depois eles passam a ser hoje, combatidos no mundo inteiro. Descobrimos que causam câncer, se acumulam no tecido adiposo, que contaminam o lençol freático. Por isso temos nessa área constantemente de rever nossas decisões. Mesmo porque quem avalia as substancias são as empresas, né, elas são donas das moléculas, elas que apresentam estudos, e nesse início da entrada de molécula em qualquer país, os pesquisadores independentes não tem acesso àquela substancia pra desenvolver estudo. Então o trabalho da gente tinha esse escopo de prevenção com base em dados.

Essa prevenção é bem feita hoje?

A gente sabe que no Brasil a produção de dados em relação a essas contaminações da população ainda é extremamente precária. Pouco se investiga, poucos são os programas de monitoramento que temos operando, como o PARA [Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos]. Existe monitoramento de água potável, mas a gente não encontra os dados. Devia existir pra todo tipo de alimento. Processado, de origem agropecuária, água de ambiente, agua potável, pra que pesquisadores e gestores pudessem tomar sua decisão. Muitas vezes você se depara com uma substância química nova e o estudo não te dá clareza sobre produção de câncer ou alteração de embrião. Enquanto o órgão avaliador e de proteção sanitária você deve impedir a exposição até que isso se esclareça, mas essa é uma questão muito polêmica no país.Tem essa questão do poder de fogo que as empresas do agronegócio têm. Aos olhos deles, a precaução é tida como algo xiita, ideólogo, radical.

Mas o controle é bem feito?

Olha, faltam programas de monitoramento, de resíduos, programas de capacitação, tanto de profissionais de saúde quanto dos próprios agricultores. Os agricultores precisam ser mais bem informados sobre o perigo das substâncias que eles manipulam. Os profissionais de saúde em como atender um intoxicado, como tratar uma intoxicação. Precisamos também monitorar resíduo de água, de solo. São informações importantes pra tomadores de decisão no momento de avaliação.

Por que esse monitoramento não é feito?

Falta de recurso, falta de estrutura dos órgãos, falta de laboratório. O Para, por exemplo. A gente fez logo no inicio da Anvisa, começou com 4 estados e 3 laboratórios na ocasião, e a gente começou a estruturar os laboratórios e trazer as vigilâncias sanitárias estaduais pra perto, porque na verdade o papel de monitoramento envolve os estados. Ao longo de 10 anos conseguimos alcançar o país todo. E qualificar 4 laboratórios públicos no Brasil que monitoram resíduos com muita qualidade, pra evitar questionamento judicial, e uma série de outras questões. Esse processo lento se repete em várias áreas.

O que precisaria?

Precisaria ter análise de resíduo de agrotóxico em água, em alimento processado, em águas profundas, no solo.. Não saberia estimar quantos laboratórios mais seriam necessários. Um país que usa agrotóxico como o Brasil precisa ter uma estrutura pra que a sociedade monitore a qualidade do ambiente em que ela vive, e isso ainda é bastante precário. Se não tenho isso, minha discussão com o setor regulado fica muito precária. Não é discussão qualitativa que você olha nesse aspecto, é levar porrada.

Você sofria muita pressão na Anvisa? Como o lobby funcionava?

Olha, tem varias maneiras. A estratégia das empresas vai desde desqualificar o nosso trabalho, dizendo que o setor não tem capacidade de fazer aquilo. Por exemplo, a reavaliação de agrotóxico [processo que revê liberação de agrotóxicos já aprovados para ver se eles não estão causando nenhum dano] que eles diziam que a gente não tinha capacidade. E depois a pressão política através dos deputados, senadores que muitas vezes têm suas campanhas financiadas por esse segmento e acabam tendo que dar uma resposta e procuram a instituição pra questionar o trabalho, por que proibiram aquele produto, por que não liberou aquele.

Era muito comum políticos procurarem vocês?

Bastante. Durante todos os anos que estive lá, a maior parte dos políticos que procurou na Anvisa enquanto eu era gestor era pra saber dos processos. Pra reclamar de atraso na avaliação e reclamar da reavaliação que proibiu produto tal e que isso ia prejudicar a produção. Poucas e raras vezes um politico procurou. O lobby do setor também vai pra Justiça tentar derrubar nossa decisão.

Você diz isso à respeito da reavalição?

Sim. No Brasil, agrotóxico é registrado para sempre. A única maneira do Estado intervir nessa situação é ter em conta que o conhecimento avança, novos dados surgem, as substâncias passam a ser proibidas em outros países. Quando a gente chamou uma reavaliação de 14 ingredientes em 2008, houve toda a pressão política para não permitirem isso. Depois, tentaram via judicial e conseguiram uma liminar que parou esse trabalho por um ano. Não queriam que houvesse revisão de substâncias que estão sendo proibidas inclusive na China, proibidas já na Europa, EUA, e amplo uso no Brasil. Derrubamos a liminar, mas o processo foi atrasado em uma ano [das 14 substâncias que começaram a ser reavaliadas em 2008, apenas 5 tiveram decisão final até agora, com 4 banimentos]. A gente tem um Estado que vive oscilando nessa questão. Gente competente dentro do governo tem, não é pouco não. Só que esbarra nesse inferno, muitas vezes institucional, desses acordos que os políticos fazem, do financiamento de campanha. Nada disso tá desligado. Quem indica um diretor da Anvisa é o Senado. Uma coisa empurra a outra, não tem jeito.

Como funcionava isso?

Se você pegar o processo do metamidofós [ingrediente ativo de agrotóxico barrado após ser reavaliado] vai ver o horror que foi aquilo. A empresa pressionou de tudo quanto é maneira. Mandou carta pra tudo que é político, dizendo que a gente tava desempregando gente, piorando a agricultura, e por ai foi até que o próprio escritório deles abandonou o uso. 
Quais eram os políticos que mais apareciam por lá? 
Eu teria que verificar o nome pra não ser leviano contigo. Mas normalmente os políticos da bancada ruralista.

Não lembra de nenhum?

Tinha o Gonzaga Patriota (PSB-PE), o Alex Canziani (PTB-PR)... Esse Gonzaga Patriota chegou a pedir meu cargo várias vezes, pra me substituir, por 2005... Mandava indicação, pra me tirar do cargo pra botar fulano. O que gente sofre muitas vezes dentro do órgão publico, não tá desvinculado de uma estratégia politica maior.

Havia pressão direta das empresas dentro da Anvisa?

Elas nunca pressionam diretamente, são recebidas em audiências. É direito pedir audiências com o diretor, como pediam também comigo. Então eles questionavam e, às vezes ameaçavam quando se viam prejudicados... E eu sempre dizia, se você se sente prejudicado tem o direito de ir pra Justiça. Nem sempre é uma relação tranquila, a empresa que investiu pesado no produto e você tem que barrar o seu pedido. Mas de maneira geral a relação é cordial. Atendíamos com toda reserva. Sempre fui muito cuidadoso. A Anvisa criou um parlatório pra proteger os servidores. A gente tinha uma sala onde a audiência era gravada, a fita ficava registrada. A pressão era nesse sentido, da preocupação deles com a norma... Era legitimo.

Essas pressões estão relacionadas com as irregularidades que você apontou antes de sair?

Não, não. O que eu apontei foi uma descoberta interna de uma autorização. De um determinado caminho que o processo deveria ter seguido que é a nossa rotina de trabalho e que não seguiu.

Mas isso não era do interesse de alguém?

Por acaso descobri aquilo ali, verificando uma situação que uma das gerentes que trouxe. Informei meus superiores, pedi providências. Providência, quando você encontra uma situação de irregularidade, é polícia e Ministério Público. Também pedi a saída do gerente responsável por isso. Isso gerou, inexplicavelmente e espero que um dia se explique, um ambiente muito ruim. E o diretor logo depois de demitir a pessoa que eu tava pedindo, me demite. Eu fui claro com eles: não vai me botar na mesma sacola, das irregularidades. Não adianta elogiar o trabalho e falar que é assim mesmo. Essa exoneração da maneira que aconteceu já era desejada há muito tempo, há dois anos a pressão tinha aumentado muito.

Quem que desejava a sua saída?

A bancada ruralista, há muito tempo. Esse segmento deseja que o setor saúde pare de avaliar os agrotóxicos. Já tem um projeto de lei rolando, claramente jogando todas as atribuições pro ministério da Agricultura. Pra mim essa questões tão mais no fundo das exonerações, mas elas não foram ditas. Houve uma oportunidade em relação à situação, que gerou um mal-estar e o sujeito lá agiu dessa maneira.

O que, na sua opinião, motivou as irregularidades?

As instituições têm fragilidades, se identifica um canal e se entra por ele... As motivações são sempre aquelas: benefício pessoal, alguém que pode estar influenciando externamente, um apoio de empresa... Isso que eu gostaria de ver investigado.

Foram sete aprovações de agrotóxicos sem avaliação técnica apropriada?

Identifiquei sete.

É possível que haja mais?


É possível, é claro. Fui exonerado logo depois que descobri o sétimo. E desde então não sei se alguém continuou investigando.


Fonte: 

Publicado por Tiago Mali - Revista Galileu

Reproduzido pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde - Cebes