quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Entrevista - Enrique Leff




O “sistema venceu” nos ODMs


POR CLARISSA PRESOTTI - Revista Página 22


Entrevista com Enrique Leff



O economista mexicano Enrique Leff acredita que as metas dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) poderão ser alcançadas até o prazo estabelecido de 2015. No entanto, Leff, que é referência mundial nos campos da Economia Ambiental e da Ecologia Política, avalia que muitos acordos globais sobre meio ambiente seguem uma lógica genérica e mercantilista. Para ele, a sustentabilidade não pode ser limitada à construção de metas dentro de uma contabilidade econômica. A agenda global de desenvolvimento pós-2015 começou a ser discutida em setembro, quando teve início a 68ª Sessão da Assembleia Geral da ONU.

Veja a seguir os principais trechos da entrevista que concedeu a PÁGINA22 logo após falar (criticamente) sobre economia verde no V Congresso Brasileiro de Jornalismo Ambiental, realizado de 17 a 19 de outubro em Brasília.

O planeta entra na reta final para cumprir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). O senhor acha que é possível países em desenvolvimento atingirem compromissos como a redução da pobreza e das desigualdades e ainda proteger o meio ambiente?

Esses Objetivos do Milênio foram já pensados de uma forma tão genérica que talvez consigam, dentro da codificação que fizeram de toda essa complexa problemática, reduzir pela metade, até 2015, todos os males do mundo, como a pobreza, a desigualdade social ou a desigualdade de gênero, a saúde, a educação e a sustentabilidade. Então, pela forma como foram pautados, está-se perto de conseguir mostrar ao mundo que o sistema venceu. Pois basta considerar os 1,3 bilhão de habitantes chineses que elevaram o nível de vida com o boom de crescimento da China.

Ou mesmo no Brasil, como resultado do programa Fome Zero. A pobreza está sendo medida sobre a ideia de uma mercantilização das coisas do mundo, das necessidades humanas, do sentido da vida mesma, em termos de ingressos monetários. O resultado é uma montagem para mostrar que essa forma de gerar o desenvolvimento dá certo. E assim vão conseguir medições que podem dar certo, mas gerando outros efeitos negativos, como a destruição do meio ambiente e dos modos de vida tradicionais sustentáveis. No fundo, os Objetivos do Milênio foram acordados dentro da geopolítica dominante do chamado “desenvolvimento sustentável”, que representa uma estratégia para se desviar das questões fundamentais sobre a construção de um mundo sustentável, além da capacidade restringida da modernização ecológica sujeita à globalização econômica.

O senhor acredita que os países emergentes conseguiriam assumir um papel de liderança nos esforços em prol da justiça social e a sustentabilidade ambiental, levando em consideração os desafios globais?

À medida que os países emergentes se inserem na lógica do mercado, da geopolítica do desenvolvimento sustentável e do simulacro da economia verde, será impossível fazer uma mudança dessa racionalidade dominante e responder aos desafios globais da crise ambiental. Mas penso que um país como o Brasil tem os recursos para assumir uma liderança para uma transformação civilizatória orientada para a sustentabilidade da vida a partir da produtividade da natureza, da criatividade e da diversidade cultural. Conseguir dessa forma a sustentabilidade é um processo muito complexo e desafiante. Mas o Brasil reúne as condições, pois possui uma produtividade ecológica como nenhum outro país no mundo. No Brasil, existem debates importantes sobre a questão ambiental e movimentos sociais voltados para a construção de outras racionalidades ambientais. Existe uma consciência cidadã nas universidades e redes socioambientais diversas: de agroecologia, extrativismo, conservação e diversos movimentos sociais sobre questões fundamentais que estão sendo debatidas.


Então, existe uma possibilidade dentro do espaço da democracia deliberativa para abrir novos canais de diálogos e alianças para construir a sustentabilidade por vias muito mais inovadoras. Se países como o Equador e a Bolívia, com muito mais limitações, podem tentar se desengajar dos poderes hegemônicos da globalização e abrir outras vias de sustentabilidade, por que o Brasil não? E como os países estão fazendo para abrir esses novos canais?

Vários grupos sociais de diversos países estão abrindo novos caminhos por meio dos movimentos socioambientais de resistência ao modelo dominante e suas manifestações – como na mineração e na agricultura transgênica – e por novos processos de reapropriação da natureza, como as reservas extrativistas, a agroecologia e a justiça ambiental. Mesmo que esses movimentos ainda sejam muito dominados pelo desenvolvimentismo, agora existe, sim, uma complexidade e multiplicidade de processos socioambientais que, no espaço da democracia, podem gerar ações inovadoras, por meio de um diálogo de saberes para outras formas de sustentabilidade.


O senhor diz que estamos vivendo uma crise ambiental global agravada por um cenário catastrófico climático. E que, ao mesmo tempo, existe uma mudança na forma de agir e pensar das pessoas sobre a natureza. Isso é suficiente para reverter esse quadro?

Há ainda muita resistência das instituições e das pessoas em mudar e abrir novos processos. E essa mudança somente é possível com uma grande mobilização social sobre outros fundamentos ontológicos e outras perspectivas do futuro da humanidade, com um compromisso que é preciso mudar as tomadas de decisões e abrir o campo político para experimentar e construir outros modos de sustentabilidade. Neste cenário, o Brasil teria que tomar um protagonismo muito mais forte. Não podemos esperar isso da Índia, da China ou mesmo do México, que não deixam de ser sociedades com grupos intelectualmente críticos, mas que estão muito mais envolvidas com o modelo produtivista atual. No Brasil, embora esteja também envolvido nesse processo de globalização hegemônica, as propostas de outras formas de construção da sustentabilidade têm mais ressonância. Existe uma sintonia, uma sensibilidade cultural, que é possível de se encontrar no Brasil em diversos meios acadêmicos e sociais, até mesmo em alguns espaços empresariais e governamentais.

Mas existe um longo caminho pela frente mesmo aqui no Brasil, não?

Sim, existe um longo caminho. É preciso acreditar mais nessas outras racionalidades, radicalizar os movimentos e legitimar essas vias alternativas para a construção da sustentabilidade.








quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Entrevista - David Harvey





'Privatização de tudo' gerou protestos, que vão continuar



ENTREVISTA - DAVID HARVEY

GEÓGRAFO DIZ QUE A CRISE MUNDIAL AMPLIOU A CONCENTRAÇÃO DA RIQUEZA E CRITICA GASTOS DO BRASIL COM COPA E OLIMPÍADA



Folha S. Paulo - Eleonora de Lucena - São Paulo


O projeto neoliberal é privatizar e "commoditizar" tudo. No seu fracasso em realizar promessas de eficiência estão as raízes dos protestos que eclodem pelo mundo e no Brasil. Partidos convencionais, reféns do capital internacional, não conseguem canalizar a raiva das ruas. Não há ideias novas, e as manifestações vão continuar.

A análise é do geógrafo marxista britânico David Harvey, 78. Professor da Universidade da Cidade de Nova York, ele ataca os "oligarcas globais" e afirma que os bilionários foram os que mais ganharam com a crise.

Crítico de megaeventos como Copa e Olimpíada, ele diz que os governos são muito influenciados pelo capital financeiro: "Esses eventos são sobre a acumulação de capital através de desenvolvimento de infraestrutura. Os pobres tendem a sofrer, e os ricos tendem a ficar mais ricos".

A partir de sexta Harvey irá a debates no Brasil sobre o lançamento de seu livro "Os Limites do Capital" e da coletânea "Cidades Rebeldes".

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Folha - Qual sua avaliação sobre a situação mundial?
David Harvey - É muito mutante e volátil. Está tão perigosa quanto sempre foi. O que me surpreende é que não há novas ideias. As receitas propostas aprofundam o modelo neoliberal ou tentam desenvolver alguma forma de keynesianismo. Ambas opções me parecem muito frágeis.

O sr. disse à Folha em 2012 que a crise deveria aprofundar a concentração de capital e as desigualdades. Isso ocorreu?
Sim. Todos os dados mostram que o número de bilionários cresceu no mundo. Foi o grupo que melhor se saiu melhor na crise, enquanto todos os outros ou permaneceram estagnados ou perderam. O crescimento principal está sendo canalizado para o 1% mais rico da população mundial. É preciso haver uma redistribuição de renda globalmente e entre classes. O clube dos bilionários é que é o problema. Oligarcas globais controlam potencialmente ¾ da economia global. Meu ponto é: vamos para crescimento zero, sem canalizar o crescimento para eles e, ao mesmo tempo, devemos fazer uma redistribuição.

Nesse cenário haveria uma guerra, não?
Olhando para o que está acontecendo nas ruas se pode pensar que esse tipo de coisa não está tão longe assim.

Qual sua visão dos protestos pelo mundo? O sr. defendeu a criação de um "partido da indignação" para lutar contra o "partido de Wall Street". Como essa ideia evoluiu?
Os movimentos não estão indo muito bem. O poder político se moveu rapidamente para tentar reprimir os protestos. Há também muitas divisões entre os movimentos. Sobre o futuro, é muito difícil prever. A situação é muito volátil para os movimentos.

E sobre os protestos no Brasil?
Existe uma desilusão generalizada do processo político. As pessoas estão começando a discutir como modificar os piores aspectos da exploração capitalista. Há também uma alienação, que leva a alguma passividade, que é interrompida ocasionalmente por explosões de raiva. O nível de frustração por todo o mundo está muito alto agora. Não surpreende que essas manifestações ocorram. O problema é canalizar essa raiva para movimentos políticos que tenham um projeto. Prevejo mais explosões de raiva nos próximos anos --no Egito, na Suécia, no Brasil etc.

Há conexão entre esses movimentos?
Sim, cada um tem suas demandas específicas, mas há problemas de base provocados pela natureza autocrática do neoliberalismo, que virou um padrão para o comportamento político. Ele não é satisfatório para a massa da população e fracassou em entregar o que prometeu. Há uma crise na governança democrática e uma raiva contra as formas tomadas pelo capitalismo. No norte da África os protestos foram parcialmente sobre a alta nos preços da comida. Isso diz respeito ao poder do agronegócio e à especulação com as commodities, causas da alta dos preços.

No Brasil os protestos estouraram por causa da alta nas tarifas de ônibus. Como especialista em questões urbanas, como o sr. avalia o problema?
O projeto neoliberal é privatizar e "commoditizar" tudo. Tudo vira objeto das forças do mercado. Dizem que essa é a forma mais eficiente de prover bens e serviços para uma população. Mas, na verdade, é uma maneira muito eficiente de um grupo da população reunir uma grande soma de riqueza às custas de outro grupo da população --sem entregar, de fato, bens e serviços (transporte, comida, casas etc.). Essa é uma das razões do descontentamento da população. Por isso, explodem manifestações de raiva em diferentes lugares e em diferentes direções políticas. Há uma situação de fundo que dá uma visão comum às batalhas, embora cada uma delas seja específica e diferente. No Brasil foi o custo do transporte. Em outros lugares é preço da comida, da habitação etc.

Em São Paulo há também a discussão sobre o aumento do imposto sobre propriedade urbana. Isso também evidencia uma luta social?
Vamos chamar de luta de classes. Ela está mais evidente, mas muitas pessoas não gostam de falar sobre isso.

Partidos tradicionais foram pegos de surpresa no Brasil. Mas os movimentos não têm organização própria. Como isso pode se transformar em forças políticas organizadas?
Se eu tivesse essa resposta, não estaria falando com você agora. Estaria lá fora fazendo. A situação agora reflete a alienação das pessoas em relação a praticamente todos os partidos políticos e a sua desilusão com o processo político. Nos EUA, o Congresso tem uma taxa de aprovação de 10%. Nessa circunstância, as pessoas não vão canalizar o seu descontentamento para o processo político, pois não enxergam esperança nisso. Por isso, há essa raiva. E assim as coisas vão continuar.

O sr. concorda com a visão de que partidos de todos os matizes caminharam para a direita e que a esquerda se diluiu em ONGs e estruturas voláteis?
Há internacionalmente uma ortodoxia econômica, que é reforçada pelos movimentos do capital internacional. Os partidos políticos convencionais se tornaram reféns desse poder.

Isso acontece com o PT?
Isso é para o julgamento de seus leitores. Noto que há uma desilusão sobre o PT entre seus próprios integrantes.

O sr. está escrevendo um livro sobre as contradições do capitalismo. Qual é a principal?
Estão mais restritas as condições que o capital tem para crescer. É muito difícil achar novos lugares para ir e novas atividades produtivas que possam absorver a enorme quantidade de capital que está buscando atividades lucrativas. Em consequência muito capital vai para atividades especulativas, patrimônio, compra de terras, commodities. Criam-se bolhas.

O sr. escreveu que é cada vez mais difícil encontrar o inimigo. Quem é o inimigo?
O inimigo é um processo, não uma pessoa. É um processo de circulação de capital que entra e sai de países. Quando decide entrar, há um "boom"; quando decide sair, há uma depressão. Por isso é necessário controlar esse processo de circulação. O Brasil tem possibilidades limitadas, porque o capital pode simplesmente desaparecer.

No início o Brasil parecia estar indo bem na crise. Agora estamos travados. O que deu errado?
Houve mudanças modestas no Brasil no sentido de redistribuir renda, como o Bolsa Família. Mas é necessário fazer muito mais. Muito dos gastos em enormes projetos de infraestrutura ligados à Copa do Mundo e à Olimpíada são uma perda de dinheiro e de recursos. As pessoas se perguntam por que o país está fazendo todos esses investimentos para a Fifa ter um grande lucro. Para o resto do mundo é surpreendente ver brasileiros se revoltando contra novos estádios de futebol.

Copa e Olimpíada não fazem bem para o país?
A Grécia está em dificuldades em parte por causa do que foi feito em razão da Olimpíada de Atenas. Muitas cidades olímpicas nos EUA entraram em dificuldades financeiras.

Como o sr. explica o poder da Fifa e do COI?
É como qualquer poder monopolista: extrai o máximo do que se tem a oferecer. Os governos são muito influenciados pelo capital financeiro. Esses eventos são sobre a acumulação de capital através de desenvolvimento de infraestrutura, de urbanização. Envolvem também despossuir pessoas, removendo-as de suas residências para abrir espaço aos megaprojetos. Os pobres tendem a sofrer, e os ricos tendem a ficar mais ricos.

Como o sr. analisa a situação política na America Latina?
Politicamente houve, na superfície, um tipo de política antineoliberal. Mas não houve nenhum verdadeiro grande desafio para o grande capital. Há discursos anti-FMI. Mas, de outro lado, o Brasil está ofertando a exploração de seu petróleo para empresas estrangeiras, por exemplo. Não é profunda a tentativa de ir realmente contra as fundações do capitalismo neoliberal. É uma política antiliberal só na superfície, na retórica. Mas há alguns elementos, como o Bolsa Família, que não fazem parte da lógica neoliberal. Mesmo a Venezuela não vai muito longe em realmente desafiar os interesses do capital.

Os EUA não perderam posições na região?
Os EUA estão mais fracos na América Latina, em parte porque o crescimento da região foi mais orientado para a o comércio com a China, que ampliou o seu papel imensamente. De muitas formas, a economia na América Latina é muito mais sensível ao que ocorre na economia chinesa do que na norte-americana.

Fonte: 


segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Como os muito ricos estão destruindo a economia dos EUA




Como os muito ricos estão destruindo a economia dos EUA

Robert Reich


Postado em 04 jun 2013 por  Common Dreams

O artigo publicado originalmente no site Common Dreams.



Como o presidente Obama disse em seu discurso de posse, os Estados Unidos “não podem ter sucesso quando poucos enriquecem cada vez mais e muitos mal sobrevivem”.

No entanto, essa continua sendo a direção que seguimos.

Uma análise recém-divulgada pelo Instituto de Política Econômica mostra que os super-ricos têm tido um bom desempenho na recuperação econômica, enquanto quase todos os outros vão mal. Um por cento dos assalariados viu seu salário crescer 8,2 por cento de 2009 a 2011, mas os salários anuais de 90% dos americanos continuaram a declinar na recuperação.

Em outras palavras, estamos de volta à desigualdade anterior à bolha que explodiu em 2008.

Mas o presidente está certo. Nem mesmo os muito ricos podem continuar a ter êxito sem uma prosperidade mais ampla. Isso porque 70% da atividade econômica nos Estados Unidos é o consumo. Se os 90% estão cada vez mais pobres, eles são menos capazes de gastar. Sem seus gastos, a economia não sai da primeira marcha.

Essa é uma grande razão pela qual a recuperação continua a ser anêmica, e por que o Fundo Monetário Internacional reduziu sua estimativa para o crescimento dos EUA em 2013 para apenas 2%.

Quase um quarto de todos os empregos nos Estados Unidos pagam salários abaixo da linha de pobreza para uma família de quatro pessoas. O Bureau of Labor Statistics estima que o crescimento para a próxima década será de baixos salários – como servir clientes em grandes redes varejistas e cadeias de fast food.

Americanos ricos estariam melhores com partes menores de uma economia em rápido crescimento, do que com os grandes pedaços que agora possuem de uma economia que está mal se movendo.

Neste ritmo, quem é que vai comprar todos os bens e serviços que a América é capaz de produzir? Nós não podemos voltar para o tipo do débito financiado que causou a bolha, em primeiro lugar.

Se fossem racionais, os ricos iriam apoiar investimentos públicos em educação e formação profissional, uma infra-estrutura de classe mundial (transporte, água e esgoto, energia, internet), e pesquisa básica – que faria a força de trabalho americana mais produtiva.

Se fossem racionais, eles até mesmo apoiariam os sindicatos. Mas os sindicatos estão quase extintos.

O declínio dos sindicatos na América segue exatamente o declínio da classe média.

Na década de 1950, quando a economia dos EUA estava crescendo mais rápido do que 3% ao ano, mais de um terço de todas as pessoas que trabalham pertencia a um sindicato. Isso lhes deu cacife de negociação suficiente para obter salários que lhes permitiram comprar o que a economia foi capaz de produzir.

Desde o final de 1970, os sindicatos têm corroído – como corroeu o poder de compra da maioria dos americanos, e não por coincidência, o crescimento médio anual da economia.

De quem é a culpa? Parcialmente da globalização e das mudanças tecnológicas. A globalização enviou muitos trabalhadores para o exterior.

A fabricação está começando a voltar para a América, mas está retornando sem muitos empregos. A linha de montagem foi substituída pela robótica e por máquinas-ferramentas de comando digital.

As tecnologias também substituíram muitos ex-trabalhadores sindicalizados em telecomunicações (lembra-se das operadoras de telefonia?).

Mas espere um pouco. Outras nações sujeitas às mesmas forças têm níveis muito mais elevados de sindicalização do que a América. 28% da força de trabalho do Canadá é sindicalizada, como mais de 25% na Grã-Bretanha e quase 20% na Alemanha.

Os sindicatos estão quase extintos na América porque nós escolhemos isso.

Ao contrário de outros países ricos, nossas leis trabalhistas permitem que os empregadores possam substituir trabalhadores em greve. Nós também tornamos extremamente difícil para os trabalhadores se organizarem e mal penalizamos as empresas que violam as leis trabalhistas.

O salário médio de um trabalhador do Walmart é de 8,81 dólares por hora. Um terço dos empregados do Walmart trabalham menos de 28 horas por semana e não se qualificam para os benefícios.

O Walmart é um microcosmo da economia americana, que descaradamente lutou contra os sindicatos. Mas poderia facilmente pagar mais a seus funcionários. Ganhou 16 bilhões de dólares no ano passado. Grande parte dessa quantia foi para os acionistas do Walmart, incluindo a família de seu fundador, Sam Walton.

A riqueza da família Walton agora excede a riqueza de 40% das famílias americanas combinadas, de acordo com uma análise do Instituto de Política Econômica.

Mas como o Walmart espera continuar lucrando quando a maioria de seus clientes está descendo uma escada rolante econômica?

O Walmart deve ser sindicalizado. Assim como o McDonalds. Assim como cada varejista e rede de fast-food do país. Assim como todos os hospitais nos Estados Unidos.

Dessa forma, mais americanos terão bastante dinheiro em seus bolsos para colocar a economia em movimento. E todos – mesmo os muito ricos – serão beneficiados.

Como disse Obama, a América não pode ter sucesso quando alguns poucos vão muito bem enquanto muitos mal sobrevivem.




Robert Reich é  comentarista econômico e político nos Estados Unidos.








quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Manifiesto fundacional de Europe Écologie




Cambio de era: Manifiesto fundacional de Europe Écologie


La historia está parada porque la sinrazón se ha apoderado del mundo. Como testimonian los desarreglos de los mecanismos financieros, el crecimiento del hambre, el agravamiento de las desigualdades y la aceleración del cambio climático, la humanidad está en peligro de perder el control sobre su propio destino. Hemos alcanzado ese momento clave en que todo puede bascular hacia lo irreversible o, al contrario, favorecer una transformación que favorezca la construcción de unas nuevas reglas del juego en la que Europa podría jugar un papel crucial. Caben dos alternativas.

O bien la trayectoria de agotamiento de la generalización de todos los mercados y la depredación ciega se prolonga en el tiempo, y atestiguaremos, por lo tanto, la conjunción de crisis de diversa índole –ecológica, energética, alimentaria, financiera, económica, social e identitaria– que precipitarían el planeta hacia una regresión sin precedentes; o bien las sociedades humanas se re-organizaran, haciendo frente a la espiral de excesos, fractura social y desacoplamiento con el mundo natural a los que nos enfrentamos realizando las reformas necesarias para escapar al caos y construir un nuevo horizonte de esperanza. Es urgente organizarse para lograrlo. Ni mañana, ni a lo mejor… Ahora es el momento.

No hacer nada abriría las puertas a políticas autoritarias para mitigar las penurias y las consecuencias de las migraciones de origen climático. Hacer algo significa evitar la barbarie y elegir la civilización.

No tenemos tiempo. Todos los indicadores están en rojo. Nuestro modelo de desarrollo ha sido pulverizado por la realidad. Cegados por la ideología de un crecimiento sin limites, drogados por el “deja hacer” del liberalismo, el sistema productivista va directo a la catástrofe, como un barco borracho. En todos lados, la inseguridad social se agranda. El progreso pierde sentido en beneficio del crecimiento de la insignificancia y la destrucción de todo lo vivo. La humanidad avanza hacia un desierto.


Otras orientaciones económicas y sociales se imponen. Otro tipo de sociedades son indispensables. Otra política es posible: la de la responsabilidad. El deber de la igualdad universal, la necesidad de reducir la huella ecológica sobre los recursos y los ecosistemas naturales demandan un cambio de era. Debemos de entrar sin mayor dilación en un mundo nuevo, el de una profunda mutación ecológica y social de la civilización. Esta nueva civilización se apoyara sobre los valores de la sobriedad, de la mesura y la moderación, de la colaboración, de la solidaridad y de la democracia, al contrario de las alienaciones comerciales y de las violencias económicas que contaminan los ecosistemas, destruyen a las sociedades, eliminan la diversidad cultural y enredan a los individuos en una competición diaria que crea una frustración permanente.

¿Como construir una alternativa al desencanto del mundo? ¿Cómo hacer posible un cambio basado en el crecimiento personal y el bienestar colectivo? Proponemos una alternativa: la de la regulación de las actividades dirigida esta vez hacia lo humano y la reconciliación con la naturaleza.

* * *

Lo primero que hay que hacer es romper con esta lógica auto-destructiva. Romper con las imposturas sociales y ecológicas de un sistema condenado; romper con los ilusos que intentan corregir solo lo más urgente y que se aprestan a regular lo irreversible; romper con el fatalismo que lleva a acomodarse frente a una situación dolorosa para la mayoría de hombres y mujeres del planeta y para el futuro de nuestros hijos. No saldremos de este atolladero haciendo gestos de cara a la galería, adaptándonos a la lógica dominante o a base de tímidos ajustes sectoriales. Romper, significa ir a la raíz del problema, tanto en el seno de nuestro sistema económico y social como en nuestras practicas individuales. Debemos de modificar la arquitectura de la generalización tanto como el imaginario de cada individuo. Debemos de actuar sobre la estructura de nuestras sociedades y trabajar al mismo tiempo por una insurrección de las conciencias, he ahí los dos desafíos a los que nos enfrentamos para evitar la derrota de la humanidad.

Urge pues reunir las voluntades colectivas para que la humanidad se embarque en otra vía. Otro proyecto de sociedad, otro modelo de civilización… El camino pasa por la refundación progresiva y pacifica de nuestra manera de ser y de vivir, juntos e individualmente. Ni sueño utópico, ni borrachera revolucionaria, el objetivo que debemos de perseguir consiste en abrir el camino a un horizonte emancipador, dando sentido al progreso y consistencia a la esperanza. No defendemos ni mañanas que nunca han de llegar ni programas milagro. Solo buscamos una cosa: unas nuevas reglas, fundadas sobre el imperativo ecológico y social, que cada comunidad humana deberá de establecer por si misma democráticamente. Nuestra propuesta consiste en oponerse paso a paso a las lógicas destructivas y especulativas, a distinguir entre lo que es posible y lo que no lo es, para aglutinar las energías para que la sociedad se embarque en una transición hacia un mundo que, aunque no perfecto, seguirá siendo viable para todos y será más justo para el mayor numero de gente posible.

* * *

Lo que está en juego es tan importante y su urgencia tan acuciante que no podemos seguir consintiendo la tradición de juegos de rol con que la representación política se complace, con sus mangoneos tradicionales que petrifican el futuro y sus crispaciones clánicas que devalúan las conciencias. Sin importar cuales son sus referencias ideológicas, los partidos políticos dominantes se tambalean ante los desafíos del nuevo siglo, y se niegan a saltar el obstáculo del gran cambio que se necesita. Siguen ligados a un tipo de desarrollo insostenible, fundado sobre el mito de un crecimiento exponencial de la riqueza, y al final confiándose al credo absurdo del crecimiento por el crecimiento. Cada uno a su manera, perseveran en la reproducción de mecanismos cada vez más alienantes.

Por lo tanto, el atasco que las fuerzas políticas dominantes imponen a la sociedad debe de ser desatascado. La mayor parte de políticos no están en sintonía con los tiempos de escasez que se avecinan. Son el producto de una época excepcional, la de la revolución industrial y los años del desarrollismo, en que la creencia ciega en la abundancia infinita se hizo con el imaginario colectivo. Esta época consagro el dominio del tener sobre el ser y de lo económico sobre lo político. La matriz común de los partidos políticos, forjada en torno al culto al crecimiento a cualquier precio, impregnado de devoción hacia lo científico y de intolerancia tecnológica, les ha cegado a lo que está ocurriendo. Es por esto que se han negado obstinadamente a escuchar las advertencias lanzadas durante 30 años por el movimiento ecologista. Vivir en este siglo consiste en tomar conciencia de que la era del despilfarro y de la inconsecuencia se ha acabado, que la autorregulación del mercado es un espejismo, que la realidad está determinada por la crisis ecológica y la profundización de las desigualdades sociales. Estos políticos pretenden conducirnos al futuro con sus promesas obsoletas y sus reflejos esclerotizado. A estos partidos rancios debemos de enfrentarnos, electoralmente y democráticamente.

No nos resignaremos jamás a un futuro diseñado por el fundamentalismo del mercado y la ceguera de los incondicionales de la desmesura: un apartheid global basado en el reparto de los recursos y la destrucción de la naturaleza.

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Por todo esto hay que desarrollar un nuevo espacio político en el seno del que se puedan encontrar con toda su diversidad los que estén interesados en la perspectiva de crear un nuevo proyecto de sociedad. Esto no es imposible. Se basa en la aspiración de cada vez más gente de vivir de una manera distinta que no repose tan solo sobre la acumulación, lo ficticio, las deudas y sobre el clamor ciudadano por un reparto más equitativo de la riqueza y un justo intercambio entre los pueblos.

Este modelo alternativo no estará inscrito en ningún dogma ni breviario, aunque este ligado a las más nobles tradiciones humanistas, en particular a la oposición radical al racismo, al antisemitismo, al sexismo y a toda forma de ostracismo y dominación. Este proyecto se construirá paso a paso, a partir de los deseos y necesidades de siete billones de individuos, del interés colectivo de los pueblos de la tierra, de la protección de los bienes comunes, de la expansión de los servicios públicos, del reparto de los recursos y del respeto a los equilibrios existentes entre todos los seres vivos. Estará fundado sobre los valores de la justicia social y la solidaridad global, en la austeridad y la consciencia de los limites, en los derechos humanos y el dialogo democrático. Orientara toda actividad humana hacia la reducción paulatina de la huella ecológica, buscando nuevas formas de consumo, producción, transporte, trabajo, intercambio, innovación y una nueva manera de habitar las ciudades y los territorios en la construcción de una nueva sociedad. Encuadrara rigurosamente los mecanismos de mercado y su prolongación financiera. Estimulara la investigación científica y la creatividad industrial de acuerdo a una perspectiva compatible con las necesidades reales y los limites de la biosfera.

Este nuevo proyecto de sociedad requerirá una nueva regulación económica y social. Se trata de repensar la organización social según el principio de durabilidad, integrando a la vez el imperativo ecológico y la justicia social: durabilidad de los recursos naturales, durabilidad de la diversidad cultural, de los sistemas económicos del mañana, de los contratos sociales y de los modos de vida. Dicho de otra manera, se trata de realizar reformas incompatibles con la hegemonía productivista y consumista que precipita el desgaste ecologico y social a golpe de desregulación, crecimiento del poder financiero, la comercialización y la uniformización.

Ya conocemos los principales instrumentos que conformaran la plataforma electoral de las listas de Europe Ecologie: el decrecimiento del flujo de materias y energía hacia la industrial nuclear y los biocombustibles, una nuevas reglas del juego económicas basadas sobre la proximidad de los intercambios, el fomento de las energías renovables, la búsqueda de nuevos indicadores de riqueza, la regulación del mercado para el fomento de objetivos ecológicos y sociales, el control de los mecanismos financieros, el refuerzo de la economía social y los servicios públicos (servicios de interés general según la terminología europea) en los sectores clave de la vida colectiva (energía, transporte, salud, vivienda, educación, telecomunicaciones, solidaridad social), puesta en marcha de una nueva política fiscal que tenga en cuenta el precio ecológico y que reoriente los comportamientos económicos y la inversión, la protección de los bienes comunes de la humanidad (el agua, el aire, los ríos, los océanos, los bosques, las zonas húmedas y los suelos), protección de las especies, incentivo del trabajo de los campesinos y de los agricultores respetuosos con el entorno, protección del medioambiente y la salud, protección contra la contaminación causada por los pesticidas, modificación de una organización del territorio orientada hacia lo urbano, reorientación de la movilidad de las personas y las mercancías hacia medios de transporte suaves como el ferrocarril o las vías acuáticas, movilización de la investigación científica para favorecer la creación de tecnologías ecológicas, cooperación y co-elaboración con los países del sur, derecho a la soberanía alimentaria, desarrollo de relaciones internacionales en base a la resolución de conflictos, defensa de los derechos fundamentales de las personas (derecho de asilo, derecho de voto para los emigrantes…) y de las libertades individuales, extensión de la democracia a través de vías participativas, refuerzo de los poderes de la justicia respecto a los paraísos fiscales y las practicas mafiosas, respeto a los territorios e identidades culturales en el marco de una Europa federal, reducción del tiempo de trabajo en paralelo a los incrementos en productividad…

* * *

Este nuevo espacio político portador de una nueva política de regulación solo se puede concebir a nivel Europeo, puesto que Europa es nuestra familia, y sin fronteras puesto que el mundo es nuestro pueblo.

Europa es la primera que debe de adoptar medidas puesto que ha explotado más que ninguna otra región sus recursos naturales y los de sus antiguas colonias para construir su pujanza. Incluso hoy, todavía consume más recursos de los que dispone. Su huella ecológica, como la del conjunto de los países industrializados, excede la capacidad biológica del planeta. De media, cada habitante de la Unión Europea utiliza al menos dos veces más de superficie productiva que la biocapacidad disponible. La reducción de este impacto destructivo constituye una prioridad insoslayable. De la misma manera, Europa debe de pagar su deuda. Su desarrollo económico, como el de todos los países industrializados, se efectúa a costa de una extracción masiva de recursos naturales a nivel global. De esta manera Europa se ha convertido en un deudor ecológico masivo a nivel global. Esta deuda marca la relación de la Unión Europea con los países del sur. Los países del sur deben de contar con Europa. A pesar de sus defectos de nacimiento y sus practicas a menudo tecnócratas la Unión Europea ha construido un espacio de paz y cooperación entre los veintisiete estados y 80 pueblos que la componen. La UE se ha sabido interponer como una fuerza conciliatoria en los conflictos. Este es un logro formidable teniendo en cuenta su pasado violento. Sus distintas culturas han demostrado que pueden vivir en paz y enriquecerse mutuamente en un mundo caracterizado por la violencia multipolar y los rebrotes nacionalistas.

También es gracias a Europa que ciertas cuestiones vitales han podido escapar a los egoísmos nacionales y se han encaminado hacia una resolución a nivel del interés general. Europa, por ejemplo, ha sabido ponerse al frente de la lucha contra el cambio climático, ha fomentado la conservación de los espacios naturales y ha sabido imponer restricciones a la industria química…

Más que nunca necesitamos a Europa: porque es en Europa donde tienen lugar la mayor parte de las decisiones políticas que tocan más íntimamente la vida de los ciudadanos, porque ésta constituye nuestra mejor plataforma para abordar los problemas transnacionales, porque Europa podría ser la mejor defensora de los derechos sociales y el medioambiente y construir un modelo alternativo al de la globalización, porque estamos convencidos de que los Estados-Nación solo ofrecen una respuesta parcial e inadaptada a los riesgos globales a los que nos enfrentamos.

Pero la UE no parece una entidad capaz de regular los equilibrios globales según criterios de justicia social y del medioambiente. Sus derivas liberales tienden a confundir lo epifenomenal de una globalización caótica, y se convierte en un acelerador de este procesos. De esta manera los pueblos rechazan Europa porque no se reconocen en sus instituciones. Esto no es sorprendente ya que a los ciudadanos solo se les habla de competitividad y competencia, como si el mercado fuese el único objetivo. Europa está más presente en sus vidas cotidianas que en sus horizontes. Ha llegado el momento de que los Europeos se identifiquen con la perspectiva política de una Europa solidaria y duradera. Poniéndose como meta el ecologismo y lo social, Europa podría convertirse en el motor de una nueva civilización.

Seamos lucidos pero no tengamos miedo. La crisis global a la que se enfrenta la civilización puede ser superada. La humanidad está obligada a reaccionar y cambiar. Posee los medios para ello. Lo que no tiene claro es el objetivo. La intensidad de la presente crisis ofrece paradójicamente la oportunidad de crear las bases para un nuevo mundo construido sobre los mejores valores humanos y que sea capaz de movilizar la inteligencia y la energía a favor de la creatividad, de renovar la democracia y rehabilitar la política. Con la Europa ecológica y social, tenemos la ocasión de encauzar nuestro destino y vivir mejor. ¡Solo a nosotros nos corresponde el aprovechar esta oportunidad!

Han participado en la elaboración de este manifesto los miembros del comité de campaña : François Alfonsi, Danielle Auroi, Jean Paul Besset, Michel Bock, Sylvie Bouleau, José Bové, Yves Cochet, Daniel Cohn Bendit, Cécile Duflot, Pascal Durand, Patrick Farbiaz, Hélène Gassin, Jérôme Gleyses, Rémi Guerber, Marie Isler Beguin, Yannick Jadot, Bernard Jomier, Didier Jouve, Erwan Lecoeur, Patrice Miran, Denis Pingaud, Marianne Robert-Kerbrat, Jean Marc Salmon, Agnès Sinaï, Toufik Zarrougui.

Traducido del francés para EcoPolítica por Francisco Seijo, miembro del comité de Ecopolítica.




sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Homens e animais




Homens e animais

Por João Pereira Coutinho

Folha de S. Paulo - 22/10/2013



É uma marca de progresso: a discussão sobre os "direitos dos animais" chegou ao Brasil. Com estrondo: leio nesta Folha que centenas de cachorros foram resgatados de um instituto de pesquisa médica no Estado de São Paulo. A violência veio a seguir, com carros vandalizados ou completamente destruídos.

Nada de novo na frente ocidental. Na Inglaterra, por exemplo, tenho amigos que trabalham com ratinhos de laboratório em suas pesquisas científicas. Nenhum deles comenta o fato em ambientes, digamos, sociais. Como bares, cinemas, restaurantes. Nunca se sabe: pode haver um fanático da "libertação animal" por perto e as coisas descarrilam facilmente.

Como já descarrilaram no passado: histórias de insultos, ameaças de morte, agressões físicas e até profanação de sepulturas de familiares de cientistas fazem parte do cardápio. Na experimentação médica, o silêncio, e não o cachorro, é o melhor amigo do homem. Como se chegou até aqui?

O filósofo Roger Scruton escreveu um livro a respeito ("Animal Rights and Wrongs", editora Continuum, 224 págs.) que ajuda a explicar o fenômeno.

E o fenômeno explica-se com o declínio da religião nas sociedades ocidentais: quando os homens acreditavam que eram os seres superiores da criação, ninguém pensava nos "direitos" ou nas "sensibilidades" dos bichos. Nós, e apenas nós, tínhamos sido criados à imagem e semelhança do Pai. Não havia como confundir um ser humano com um batráquio.

A "morte de Deus" alterou a discussão: se não existe um Pai com seus filhos prediletos, então todos somos habitantes do mesmo espaço --e todos somos, como diria o extravagante Peter Singer, criaturas dotadas de "senciência", ou seja, capazes de experimentar a dor e o prazer. Donde, evitar a dor é um imperativo tão legítimo para humanos como para animais.

Claro que, nas teorias de "libertação animal", nem todos os animais desfrutam da mesma sorte empática: acredito que mesmo Peter Singer, nas tardes de insuportável calor australiano, também seja capaz de matar uma mosca ou duas. Mas o leitor entende a ideia: se conseguirmos imaginar um animal a falar e a cantar num filme Disney, por que não conceder-lhe estatuto moral pleno?

Porque isso é uma aberração filosófica, explica ainda Roger Scruton sobre o argumento Disney: existem traços básicos da nossa comum humanidade que estão ausentes do restante mundo animal. São esses traços que fazem com que "nós", e apenas "nós", sejamos seres morais no sentido pleno da palavra.

"Nós", e apenas "nós", somos capazes de julgar, meditar, revisitar o passado, planear o futuro --desde logo porque somos seres temporais por excelência, conscientes da nossa história e do nosso fim.

"Nós", e apenas "nós", somos dotados de imaginação e, sobretudo, de "imaginação moral": somos capazes de rir, corar, sentir remorsos ou alimentar indignações (e premeditadas vinganças).

E, talvez mais importante, "nós", e apenas "nós", somos capazes de reivindicar e defender "direitos", o que implica que "nós", e apenas "nós", somos capazes de entender o que significam certos "deveres". Como, desde logo, o "dever" de não infligir dano desnecessário sobre animais (moscas excluídas).

Será a pesquisa científica um "dano desnecessário sobre animais"?

Não creio, sobretudo quando contemplo as alternativas. O americano Carl Cohen, outro filósofo sobre estas matérias que também recomendo aos interessados (com o seu "The Animal Rights Debate"), é primoroso ao colocar o problema no seu duplo e potencial impasse: os defensores da libertação animal preferem que sejam os homens a tomar o lugar dos bichos nos laboratórios?

Ou preferem antes que não existam mais cobaias nos laboratórios e que os avanços científicos possam parar de vez neste ano da graça de 2013?

Boas perguntas. Esperemos pelas respostas. Mas, até lá, talvez não fosse inútil convidar os militantes da "libertação animal" a recusarem daqui para a frente todos os tratamentos médicos que têm no seu historial o uso de animais em laboratório. Em nome da coerência.

Se isso significar, no limite, a morte de alguns dos militantes, tanto melhor: unidos na vida, unidos na morte.


João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do "Correio da Manhã", o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve às terças na versão impressa de "Ilustrada" e a cada duas semanas, às segundas, no site.






Homens e animais, revisitados

Por João Pereira Coutinho

Folha de S. Paulo 29/10/2013


Recebi centenas de e-mails na semana passada por causa de um texto sobre os "direitos dos animais" ("Homens e animais", 22/10). Escuso de esclarecer que a maioria não foi simpática.

Com verdadeiro espírito humanista, muitos dos defensores dos animais desejaram-me doenças que eu, um hipocondríaco confesso, nem sabia que existiam. Sem falar das inevitáveis ameaças de morte, sempre antecedidas de tortura (lenta).

Agradeço a gentileza e espero ansiosamente pelo dia em que o mundo será governado pelo espírito tolerante dessa gente. Para os restantes leitores, que insistiram em seis perguntas recorrentes (e civilizadas), aqui vão respostas civilizadas:

1 - Se é possível fazer pesquisa sem animais, como justificar o uso dos bichos?

Infelizmente, não é possível fazer todo o tipo de pesquisas sem usar animais. Verdade que a ciência evoluiu imenso e a pesquisa "in vitro" (usando células em laboratório, algumas das quais humanas) e "in silico" (com computadores) tem ocupado as pesquisas "in vivo". Mas, para certas patologias, e sobretudo para se obterem respostas precisas a farmacologias várias, é necessário o uso de organismos vivos com certo grau de complexidade (o que exclui, por exemplo, moscas ou lesmas). Não usar animais implicaria, em muitos casos, usar seres humanos --ou, em alternativa, frear o progresso científico.

2 - Os animais dos laboratórios são tratados cruelmente.

Uma absoluta falácia. Os animais domésticos são, muitas vezes, tratados cruelmente. Animais de laboratório são, como o nome indica, seres vivos criados em ambiente controlado (temperatura, som, conforto, comida etc.) de forma a infligir o menor sofrimento possível. É claro que algumas experiências implicam dor ou desconforto. Mas o uso de animais em laboratório está submetido a legislação rigorosa, na qual os "limites de severidade" são cada vez mais apertados.

Dissecar animais em praça pública, como aconteceu no passado para conhecer o sistema circulatório (um feito que fez a medicina avançar vários séculos), seria impensável nos dias de hoje. E ainda bem.

3 - É legítimo usar animais para testar cremes e batons?

Não é legítimo e deve ser severamente punido. Na Europa, já é desde março deste ano. Mas a discussão do artigo lidava com pesquisa médica, não estética. Confundir ambas revela ignorância ou má-fé.

4 - Todos os ativistas dos "direitos dos animais" estão errados?

Pelo contrário: a ciência deve muito aos ativistas razoáveis dos "direitos dos animais", que contribuíram para que a ciência "humanizasse" o seu trato com os bichos.
Os defensores razoáveis dos "direitos dos animais" legaram à ciência o desafio dos "três R's": "to reduce" (reduzir, sempre que possível, o número de animais em laboratório); "to replace" (substituir, sempre que possível, o uso de animais por outra alternativa --estudo de células ou simulação computacional, por exemplo); e "to refine" (refinar, sempre que possível, a forma como a pesquisa é feita --uso de anestésicos e analgésicos quando o desconforto é previsto; criação de um ambiente confortável e estimulante para os animais etc.). O diálogo entre cientistas e "eticistas" deve por isso continuar.

5 - Você não gosta de animais e por isso defende o uso deles pela ciência?

Não pretendo tornar a discussão pessoal. Mas gosto de animais, tenho animais e até já escrevi sobre todas as lições "filosóficas" que aprendi com o meu gato.

6 - Todas as vidas são sagradas e nenhum animal deve ser sacrificado para nosso benefício.

Quem parte dessa premissa encerra o debate mesmo antes dele começar. Infelizmente, não tenho essas certezas --e, como onívoro, é evidente que continuo a usar os animais como fonte principal de alimentação. Sobre a "sacralidade" da vida, confesso uma certa paralisia agônica com certos cálculos utilitaristas mesmo em relação à vida humana (para mim, a mais importante).

Se, por hipótese, fosse possível salvar 10 milhões de pessoas gravemente doentes pelo sacrifício em laboratório de dez indivíduos, valeria a pena matar esses dez inocentes?

Instintivamente, direi que não e ficarei feliz com as minhas vaidades deontológicas. Pensando friamente, não sei se diria não --e que Deus, ou o sr. Kant, me perdoe. Porém, se a vida de 10 milhões de pessoas dependesse da vida do meu gato, não haveria hesitação alguma.


João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do "Correio da Manhã", o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve às terças na versão impressa de "Ilustrada" e a cada duas semanas, às segundas, no site.






terça-feira, 29 de outubro de 2013

Entrevista com o sociólogo Boaventura de Sousa Santos


Entrevista com o sociólogo Boaventura de Sousa Santos. Uma crítica de esquerda.


Folha de S. Paulo - 26/10/2013


'Dilma tem grande insensibilidade social', diz guru da esquerda

RICARDO MENDONÇA
DE SÃO PAULO


Referência de militantes de esquerda em todo o mundo, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos diz que há retrocessos em segmentos dos direitos humanos no Brasil e critica a presidente Dilma por demonstrar "insensibilidade social".

Segundo ele, isso fica "ainda mais evidente por conta [...] do estilo Lula, que era de muito mais aproximação com os movimentos sociais".

Para Boaventura, no entanto, Marina Silva (PSB) não representa uma alternativa para a esquerda. Ele diz que sua eleição fortaleceria correntes religiosas conservadoras. Além disso, entende que, na economia, Marina seria um retorno ao que havia antes de de Lula. "Ela é uma cara nova para a direita", afirma.

Boaventura veio ao Brasil para o lançamento de dois livros: "Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos" e "Direitos Humanos, democracia e desenvolvimento", o segundo em coautoria com a filósofa Marilena Chaui.





Folha - "Se Deus fosse um ativista dos Direitos Humanos" é um título provocador. Sugere que o senhor acredita em Deus. E sugere que Deus poderia dar mais importância para os direitos humanos. É isso?
Boaventura de Sousa Santos - De fato, não. O título é provocador. Eu não me comprometo com a existência de Deus. Sou como Pascal [filósofo francês, 1623-1662]: diria que não temos meios racionais para poder afirmar com segurança se Deus existe ou não. O que podemos é fazer uma aposta: apostar se existe ou se não existe. Como sociólogo, o que penso é que há muita gente que aposta na existência de Deus e que organiza sua vida ao redor disso.
Estamos num momento de fortes movimentos sociais em todo o mundo, com protestos, muita indignação, muita revolta. Alguns desses movimentos trazem no seu interior pessoas e grupos que seguem diferentes religiões. Ou que transformam a religião e a existência de Deus no motivo da ação ou num impulso para a ação. Portanto, eu tive curiosidade de analisar. Esse fenômeno é extremamente ambíguo.

Quando surgiu a curiosidade?
Eu já tinha notado desde o Fórum Social Mundial de 2001, onde vi que havia movimentos sociais e organizações de diferentes partes do mundo com vivências religiosas, como a Teologia da Libertação e outros. Tinham uma dinâmica de grupo onde o elemento religioso, espiritual, era forte. Havia movimentos indígenas, para quem o elemento da religiosidade é sempre forte. Essa dimensão do transcendente é que me fascinou, pois eu venho de uma cultura eurocêntrica, que há muito tempo tenho criticado, mas sou filho dela, por assim dizer. Essa cultura tinha resolvido o problema através do que chamamos de secularismo, que é expulsar a religião do espaço público.

A presença da religião na política está crescendo?
A religião nunca saiu verdadeiramente da política. Temos sociedades que são laicas, mas cujos estados não são. É o caso da Inglaterra, por exemplo. E temos sociedades onde a convivência é mais laica do que outras. Tanto assim que hoje a gente faz distinção entre o secularismo e a secularidade. Secularismo é uma atitude mais radical, de deixar que a religião fique exclusivamente no espaço privado, na família, na vida. Secularidade é aquela que permite que haja expressões [religiosas] no espaço público como afirmação da própria liberdade de todos os cidadãos.
Mas é evidente, a gente sabe, a maneira com que a Europa resolveu a questão da separação da igreja e do Estado no século 17, depois de uma guerra enorme, nunca foi uma separação total. A igreja continuou a ter uma grande influência. Foi assim no esforço da colonização. Continuou com grande influência, ainda tem, nas agendas que o papa Francisco disse recentemente que são as agendas da cintura para baixo (risos), acerca das orientações sexuais, aborto, divórcio. Obviamente são questões de interesse público.
O que parece é que a crise do Estado secular trouxe uma maior presença da religião no espaço público. No mundo árabe, no mundo indiano e também no mundo ocidental. Começou a emergir nas televisões religiosas, cada vez mais e sobretudo com as correntes evangélicas e pentecostais. É uma presença pública muito mais forte, mas também um interesse em influenciar a vida pública, a vida dos Congressos, dos parlamentos. É o que acontece hoje no Brasil.

No Brasil isso parece mais evidente a partir da eleição de 2010, quando o assunto chegou a dominar o debate eleitoral. Como tem sido no resto do mundo?
Na Europa não é tão forte quanto aqui ou nos Estados Unidos. Mas encontramos no próprio mundo islâmico, por outro lado, diferentes formas de afirmação religiosa que não são todas fundamentalistas. Algumas são bastante moderadas. Mas que também se recusam a pensar que sua dimensão espiritual e religiosa não têm nada a ver com suas lutas.
Então o mundo hoje é mais diverso, e dessa diversidade, no meu entender, faz parte uma maneira muito diversa de ver a religião na vida pública. Isso está surgindo por todo lado, com formações bem distintas.
Algumas continuam na base da sociedade, como acontecia com a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base. Mas temos nos últimos anos, no Brasil muito claramente, a influência [religiosa] na própria cúpula do Estado, na estrutura política do Estado. Isso é novo.
Era uma corrente que já vinha dos anos 80 dos Estados Unidos. Uma corrente muito conservadora. Um dos grandes líderes dessa corrente nos Estados Unidos fez uma previsão que praticamente se confirmou. Ele disse assim: "quando um dia não houver uma grande diferença entre democratas e republicanos, e se forem todos mais ou menos conservadores, podemos começar a jogar golfe tranquilamente, pois significa que cumprimos a nossa missão".

E a esquerda com isso? Seu livro é uma espécie de ajuste?
O pensamento crítico da esquerda, de uma sociologia crítica, sempre foi muito renitente em analisar o fenômeno religioso. Pois qualquer análise que não seja simplesmente dizer que religião é o ópio do povo fica como suspeita.
Minha experiência no Fórum Social Mundial fez-me crer que, se eu mantivesse essa atitude pouco complexa, eu deixaria fora da minha análise muita gente que genuinamente luta contra a desigualdade, a injustiça, a discriminação, a opressão. Não é gente alienada. É gente que realmente luta por um mundo melhor e que, no entanto, tem uma referência religiosa. Eu não posso considerar que isso é alienante. Então escrevi esse livro também para fazer as contas comigo mesmo.

Qual é a sua conclusão?
Termino dizendo que não há um Deus. Há dois: o Deus dos oprimidos e o Deus dos opressores. Enquanto a sociedade for dividida e houver tanta desigualdade social, penso que o Deus que estiver do lado dos oprimidos não se reconhece num Deus que esteja do lado dos opressores.

O outro livro é sobre direitos humanos, que parece refluir na medida em que aumenta a influência religiosa. Alguns políticos têm como principal plataforma o ataque aos direitos humanos. Quais são as relações entre as duas coisas?
É obviamente uma estratégia religiosa. É uma dimensão de todas as correntes conservadoras, de direita, que existiram ao longo do tempo. Houve, de fato, uma igreja progressista, de esquerda, que achou que sua missão era a missão evangélica do sermão da montanha, de estar com os pobres. Os pobres não estão no parlamento, estão nos bairros, nas favelas. E é para aí que os missionários devem ir. Mas há toda uma outra corrente que nunca aceitou que igreja ficasse fora do governo. Alguns deles entendem que a Bíblia, literalmente, dita o direito para os Estados e que, portanto, os direitos humanos não pertencem a esse direito bíblico. É como no mundo islâmico, onde há conceitos muito hostis aos direitos humanos.
Então, de vários lados, estamos a assistir a um ataque aos direitos humanos. Esse é o tema do meu outro livro, escrito por um sociólogo que se considera um cidadão ativista dos direitos humanos.
Eu também faço uma crítica aos direitos humanos. Mas uma crítica progressista: os direitos humanos são pouco. Então eles são criticados por mim por serem poucos. E a direita critica por serem muito. Eu digo pouco porque acho que a grande maioria dos cidadãos do mundo não são sujeitos de direitos humanos, são objeto de discurso de direitos humanos. São violados constantemente.
Agora, sobretudo após a queda do Muro de Berlim, em que as narrativas socialistas caíram em desuso, pelo menos até agora, o que ficou de luta por uma sociedade melhor foram os direitos humanos. Se o socialismo estivesse na agenda política, eu tenho certeza que essa direita religiosa incidiria completamente contra o socialismo.

Nessa questão dos direitos humanos, em que posição o senhor situa o Brasil hoje?
É uma leitura muito complexa. Há áreas e domínios dos direitos humanos em que tivemos conquistas extraordinárias desde o governo Lula. Eu considero [positiva] toda política de ações afirmativas, do reconhecimento de que há racismo na sociedade brasileira e de que é preciso tomar medidas para que afrodescendentes e indígenas possam ter acesso à educação, numa tradição que vinha desde há muito tempo com Abadias do Nascimento, mas que nunca teve êxito. Também o fato de criar um Brasil mais inclusivo, mais diverso, mais colorido, com mais consciência de sua diversidade étnico cultural. Penso que tudo isso foi um grande avanço.
Onde eu vejo que há retrocesso é em toda a área dos direitos humanos que trouxeram também no seu bojo aquilo que, para um desenvolvimentista, pode ser considerado um obstáculo.
Os direitos humanos trouxeram consigo o reconhecimento dos direitos coletivos. E os direitos coletivos do povos indígenas estão protegidos, internacionalmente, por convenções, aliás, que o Brasil assinou, sobretudo o convênio 169 [da Organização Internacional do Trabalho], que obriga consulta prévia, livre, informada e de boa fé. E de boa fé! E que, hoje em dia, depois da declaração das Nações Unidas de 2007 sobre os direitos dos povos indígenas, firma-se na jurisprudência da Corte Internacional de Direitos Humanos que sempre que estejam em causa a própria sobrevivência de um povo, seja uma barragem, seja um projeto de mineração, a consulta deve ser vinculante. Bem, nesse caso, eu tenho que dizer que tem havido retrocesso.
Não é só na demarcação de terras. Tem ainda a questão de saber se a concessão de novas terras são atribuição do parlamento e não do Executivo, o que seria a mesma coisa que dizer que nunca mais haverá qualquer concessão.
Então eu acho que a presidente Dilma está a perder uma batalha, está realmente com uma grande insensibilidade ao movimento indígena camponês, que foi uma grande forma de transformação em toda América Latina.

O senhor considera o governo Dilma de direita?
Eu venho da Bolívia, estive no Equador, conheço os outros países [da região]. Alguns deles são muito mais à direita no governo, é o caso do México. E lá estamos assistindo a uma grande vitória de um povo indígena que lutou contra uma barragem, La Parota, e conseguiu efetivamente parar essa barragem.
Eu colocaria a presidente Dilma no mesmo pé em que coloco o presidente da Bolívia [Evo Morales] e o governo do Equador. São governos que eu considero progressistas. Não os considero de direita. Eles, de alguma maneira, fazem muito do que sempre fez a direita: têm o mesmo modelo de acumulação, o mesmo modelo capitalista, o mesmo neoliberalismo, aproveitaram a mesma onda de extrativismo, com a reprimarização da economia.
Mas o que esses governos fazem e que a direita nunca fez na América Latina foi redistribuir esses rendimentos de alguma maneira. Distribuem muito mais que os outros governos. Para muitos grupos sociais, isso não é suficiente. Até porque essa forma de redistribuição é relativamente precária, não é com direitos universais, é algo que pode parar de um momento para outro. Mas há problemas. Os ambientais são extraordinários.

Qual o senhor citaria?
É certo que o Congresso é outra coisa. Mas eu fico espantado como é que é possível, estando a frente do país alguém como Dilma Rousseff, como é possível abrir uma discussão sobre a semente Terminator no Congresso. É a semente que fica estéril, a suicida. Isso está suspenso. É ilegal para o mundo inteiro. É um escândalo, se aprovar. Ela foi suspensa no âmbito da convenção de biodiversidade exatamente porque coloca os camponeses nas mãos da Monsanto e das outras três ou quatro empresas que têm a patente. Isso é o fim da agricultura camponesa.
Em muitos países é a agricultura camponesa que alimenta as populações, pois a grande indústria produz soja e outros produtos de exportação. A diversidade da produção agrícola é feita por pequenas propriedades, a agricultura familiar, a camponesa. Portanto isso significa arrogância dessas empresas transnacionais que têm acesso ao parlamento para ditar sua lei. E se você olhar bem, há uma aliança entre os religiosos evangélicos e os ruralistas. Então aqui há uma convergência de forças, uns que vêm da tradição ruralista, outros que vêm de uma tradição religiosa de direita, que se armou contra o comunismo e contra a revolução na América Latina.
Então não considero a presidente Dilma um governo de direita por sua capacidade de distribuição, agora há uma grande insensibilidade, que não vem de agora.

Onde mais há problemas?
Basta ver quantas vezes foram recebidas a CUT e outras entidades antes desses protestos: zero. Portanto significa que a presidente Dilma tem uma grande insensibilidade social, que se tornou ainda mais evidente por conta da posição do Lula, ao estilo Lula, que era de muito mais aproximação com os movimentos sociais. Isso perdeu-se. Eu considero uma perda muito grave.

A ex-ministra Marina Silva tem um discurso mais próximo desses segmentos que o senhor mencionou, meio ambiente, indígenas. Ela serve para a esquerda?
Eu penso que não. Sou amigo da Marina Silva, estive em vários painéis com ela e comungo com ela muitas causas ambientalistas. Mas acho que não porque a influência religiosa no país iria nitidamente continuar a desequilibrar. A dimensão religiosa que está por trás dela é uma dimensão que, no meu entender, tem mais um potencial conservador do que um potencial da Teologia da Libertação. Portanto é um potencializador de uma interferência conservadora na sociedade.
Isso pode ter outras dimensões para os direitos das mulheres, dos homossexuais, para as diversidades sexuais.
Por outro lado, sua política econômica, por aquilo que tenho visto e pelos apoios que ela recorre, é realmente uma tentativa de, com uma cara nova, uma mulher, repor o sistema que estava antes. Seria desacelerar ainda mais as políticas de redistribuição social que foram aquelas que, no meu entender, mais caracterizaram o período Lula.
Não penso que a Marina Silva esteja muito sensível a isso tudo. Então eu penso que ela é uma cara nova para a direita. Não é uma cara para a esquerda, no meu entender.

Milhares de pessoas foram às ruas no Brasil para protestar por diversas causas. Tudo muito rápido e inédito. O senhor tem alguma reflexão sobre o que ocorreu no país?
Analiso os diversos movimentos que surgiram no mundo desde 2011: a primavera árabe, o ocuppy [Wall Street, nos EUA], o dos indignados no sul da Europa e na Grécia, o movimento "Yo soy 132", que é contra a fraude eleitoral no México, o movimento estudantil do Chile em 2012 e também os protestos no Brasil.
Considero que 2011-2013 é um daqueles momentos no mundo como nós tivemos em 1968, 1917, 1848. São momentos de movimentos revolucionários.
O que os caracterizam fundamentalmente hoje? São sinais de que, em muitos países, estamos a entrar num processo de guerra civil de baixa intensidade: uma grande agitação social porque as instituições não funcionam propriamente. Na Europa, a rua é o único espaço público que não está colonizado pelo capital financeiro. Nos EUA, a mesma coisa. Há uma deterioração das instituições, uma ideia de que a democracia foi derrotada pelo capitalismo. No sul da Europa isso parece muito claro, e as ruas e as praças são os únicos espaços onde o cidadão pode se manifestar.

Quem é esse cidadão?
É um cidadão diferente dos [cidadãos dos] processos anteriores. Um erro do pensamento político foi pensar em cidadãos organizados que fazem essas revoltas. De fato, não é assim. Essas revoltas são feitas, normalmente, por jovens que nunca participaram de movimento social, de partidos, que nunca votaram, nunca estiveram em nenhuma ONG. E de repente estão na rua. Isso não foi só aqui. Foi no Egito, na Europa, nos EUA. São movimentos que surgem a partir de momentos em que as instituições parecem não dar respostas às aspirações populares. Obviamente são diferentes. Não se pode pôr a primavera árabe ao lado do Brasil ou do occupy. São coisas distintas.
O movimento do Brasil tem uma genealogia, uma história, semelhante ao movimento dos indignados de Portugal, da Espanha e da Grécia. São jovens democracias onde houve uma expectativa de uma social-democracia, uma democracia com fortes direitos sociais, de educação, saúde, transporte. Havia uma expectativa de uma sociedade mais inclusiva. Essa era a promessa. A democracia não é simplesmente mero voto e a representação política, mas se traduz em direitos sociais e econômicos. Portanto nesses casos [Brasil e indignados], os movimentos surgem da ruína dessas aspirações. Democracias suficientemente jovens para ainda acreditar que eles têm esses direitos.
Os occupy já nem têm sequer essa ilusão, pois a democracia americana é cada vez mais restringida e eu nem acho mais que é uma democracia a sério nos EUA; eu vivo lá metade do ano, como você sabe, e conheço o país.

Uma crise da democracia?
Aqui [no Brasil], a juventude se dá conta que aquela democracia que ela acreditou não funciona, está sendo derrotada pelo capitalismo. Os países dão mais atenção aos mercados internacionais, aos grandes grupos transnacionais, do que dão aos seus cidadãos. Na Europa isso é muito claro. O meu governo [Portugal] está mais atento à agência de classificação Standard & Poor's, sobre o que ela dirá amanhã sobre a taxa de rating do crédito português, do que as demandas dos portugueses, as reivindicações. E quanto mais as pessoas vão para as ruas, mais abaixa a nota do crédito internacional. Ou seja: a democracia está sendo usada contra os cidadãos. A democracia é exercida hoje contra o bem estar. Tinha-se a ideia que caminhávamos para um estado de bem estar. De alguma maneira, hoje, o Estado é um Estado de mal estar. O que aconteceu no Brasil, no meu entender, é essa frustração.
Compartilha com os outros movimentos essa espontaneidade. E o fato de não ser ideologicamente unitária, é o mais diverso possível. E com demandas contraditórias. E com uma característica também comum em todos eles: prevalece o negativo sobre o positivo. Esses grupos, que eu nem chamo de movimentos sociais, chamo de presenças coletivas, sabem o que não querer, mas não sabem bem o que querem. Podem ter uma demanda, como foi o caso do Movimento Passe Livre, mas essa é uma demanda que rapidamente pode ser superada por grandes demandas de superação do Estado. Como aconteceu na Tunísia. O moço que se imolou na Tunísia queria apenas que legalizassem o seu comércio de rua, e de repente aquilo era uma luta contra a ditadura.
O que todos estão a dizer? Estão a dizer que o mundo está escandalosamente desigual. Essa não é uma questão da pobreza. É que nos países, internamente, a diferença entre ricos e pobres nunca foi tão grande. Em meio aos maiores sacrifícios da sociedade portuguesa, com cerca de 50% dos jovens até 25 anos sem emprego, o número de ricos aumentou em Portugal nos últimos anos. E os ricos ficaram ainda mais ricos.

Essa descrição não coincide exatamente com o que ocorreu no Brasil. A distribuição de renda brasileira medida pelo índice Gini ainda é uma das piores do mundo, mas melhorou.
Sim, está reduzindo [a desigualdade de renda], nunca tinha acontecido antes, isso é preciso reconhecer. O que nós temos que ver, isso é minha leitura, é que as políticas que foram criadas para essa redução ocorrer --e por isso que eu digo que [Dilma] não é um governo de direita-- são as que eu chamo de políticas de primeira geração. A segunda geração é que essa gente que agora come bem, agora que tem algum apoio, quer evoluir, quer ir para a universidade, quer outra qualidade dos serviços públicos. E aí estancou.

O senhor disse que esses grupos sabem dizer o que não querem, mas não sabem dizer bem o que querem. No Brasil, entre as coisas que eles diziam não querer estavam os partidos políticos. Teve até hostilidade, violência. O senhor vê isso com preocupação?
Sim, evidentemente. Mas ao mesmo tempo compreendo o que está ocorrendo. É aquilo que eu disse, que a democracia representativa liberal foi dominada e vencida pelo capitalismo, pela corrupção, pela presença do dinheiro nas eleições, nas campanhas eleitorais. Isso faz com que os representantes estejam cada vez mais distantes dos representados. É aquilo que a gente chama de patologia da representação: os representados não se sentem representados por seus representantes.
É um processo conhecido, pois há anos discute-se no Brasil a necessidade de se fazer uma reforma política, uma reforma do sistema eleitoral, do financiamento dos partidos. E todas essas reformas têm sido bloqueadas. Então essa negação não é propriamente a negação da democracia representativa. São duas ligações importantes: esta democracia participativa não serve, o dinheiro não pode ter o poder que tem hoje nas eleições; e a democracia representativa nas sociedades complexas não chega, ela precisa ser complementada pela democracia participativa.
Eu acho extraordinário que, no caso da primavera árabe --jovens de vários países que não tiveram democracia propriamente-- a grande bandeira é a democracia real. Portanto quando dizem que há luta contra os partidos, não é que eles estejam dizendo que, em princípio, eles não têm nenhuma validade. É esta forma de democracia, a do poder do dinheiro, que está derrotada. E se ela não se alterar, temos altos riscos para a sociedade. É por isso que eu digo, escrevi dois artigos sobre isso, que há uma grande oportunidade: a oportunidade de uma reforma política. Esse é grande tema com o qual o PT chegou ao poder, não podemos esquecer.

Mas nos protestos ninguém levantou uma plaquinha sequer pedindo reforma política.
(risos) É por isso que eu digo: as pessoas não sabem o que querem, sabem o que não querem. Como é que se faz formulação política? Para sair daquilo que elas não querem, é preciso uma reforma política. Obviamente. E é por isso que temos partidos.

Eu acho que cabe à classe política encontrar as soluções. Os jovens não têm que saber [como fazer]. Nem dá para exigir que eles saibam. Como é que vai fazer um serviço unificado de saúde suficientemente robusto? Não têm que saber. Há técnicos e há políticos que vão fazer isso. A reforma política é a mesma coisa. E a presidente Dilma deu uma certa esperança quando falou nas cinco medidas que seriam tomadas e incluiu a reforma política, mas, infelizmente, os poderes conservadores do Congresso...

Foi nesse contexto que surgiram os grupos "black blocs", com a tática de causar danos materiais para fazer suas denúncias. Eles aparecem em tudo, da greve de professores à ação para libertar cachorros de um laboratório de pesquisa médica. Qual é a opinião do senhor sobre esses grupos?
Esses grupos nasceram nos anos 70 na Alemanha, na luta contra a energia nuclear. Na década de 80, adquiriram uma ideologia autonomista. A ideia de que "temos que criar na sociedade espaços de autonomia que não dependem do capitalismo e que, portanto, podem oferecer outra maneira de viver". Tiveram muita repercussão.
No momento em que começam os protestos contra a globalização, Seatle (EUA) é o marco, eles começaram a assumir duas características de sua tática: de um lado a ideia de violência contra propriedades símbolos do capitalismo, que pode ser um McDonald's, um banco; de outro lado, a defesa dos manifestantes. Eles assumiram isso. Em muitas mobilizações, foram eles que, diante da violência policial, defenderam mais eficazmente os manifestantes pacíficos. Então a violência policial, no meu entender, é uma das grandes responsáveis pelo protagonismo "black bloc". Eles enfrentavam. E a notícia muitas vezes passava a ser o enfrentamento entre os "black blocs" e da polícia.
Um terceiro fator que complica, principalmente a partir do ano 2000, isso está documentado, é que a polícia infiltra o "black bloc" para depois justificar sua violência. Isso está demonstrado em vários países. E este é o contexto em que nós estamos.

Mas como entender o "black bloc"?
Não são grupos de extrema-direita. Eu penso que, acima de tudo, temos que entender por que surgem esses movimentos. E encontrarmos, através do diálogo, formas de ver se estas são as melhores formas de luta. No meu entendimento, como já disse, estamos num momento político daquilo que chamo de guerra civil de baixa intensidade. Numa guerra assim, queremos que cada vez mais gente venha para a rua. No meu entender, para fazer pressão pacífica sobre os Estados.
Quando o capital financeiro será cada vez mais influentes, quando as Monsantos conseguem pôr no Congresso a [semente] Terminator, quando os evangélicos dominam a agenda política, quando os ruralistas dominam a agenda política, os governos, mesmo que tenham uma orientação de esquerda, precisam ser pressionados de baixo. A partir de baixo. E essa pressão tem de ser pacífica. E tem de ser inclusiva. E para ser inclusiva tem de trazer para a rua as pessoas que nunca foram para a rua, os chamados despolitizados, as avós, os netos.
Ora bem, se é esse o objetivo, o "black bloc" é uma força contraproducente. As pessoas querem ir para a manifestação, mas com medo que haja violência, com medo da brutalidade e violência policial, dizem ao final "não vamos". Penso, portanto, que o "black bloc" deve analisar em que contexto nós estamos.

O ex-presidente Lula fez uma crítica direta ao uso das máscaras. Disse que participou de muita manifestação de rua, mas que nunca usou máscara porque não tinha vergonha do que fazia.
Eu acho que é uma posição legítima, mas não sei se é a única resposta que se pode dar. As pessoas têm suas formas de representação. Exemplo disso é o governo do Peña Nieto, o [partido] PRI, no México, que eu considero de direita. Nas últimas manifestações, o protesto de professores no México, teve a presença dos "black blocs" com as máscaras negras. E chegou ao ponto também em que o governo está para promulgar uma lei que proíbe as máscaras. Sabe qual foi a reação? Os homossexuais começaram a usar máscaras pink. Foram para os protestos com máscaras cor-de-rosa, máscara homossexual. Então a polícia vai prender? Eles não praticam nenhuma violência, usam máscara agora para afirmar a diversidade sexual.
Isso é para ver como a coisa é complicada. Criou-se uma solidariedade entre os homossexuais e o "black bloc". Então, por vezes, as autoridades se excedem na forma. Eu penso que essa não é a forma. Penso que a forma é de dialogar, de trazer para uma mesa de conversa. Obviamente é uma discussão muito difícil, mas é uma discussão que é preciso ter.


* BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS Sociólogo português, 72 anos

VIDA ACADÊMICA Doutor pela Universidade de Yale (EUA), professor da Universidade de Coimbra (Portugal) e da Universidade de Wisconsin (EUA)

LIVRO RECENTE "Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos" (Cortez Editora)