Greenpeace
defende mudanças no agronegócio
Daniela
Chiaretti
Valor
Econômico Abril 2014
Kumi
Naidoo, diretor-executivo do Greenpeace International, espera que o
próximo relatório do IPCC "tire da letargia as negociações
internacionais de clima"
Kumi
Naidoo, ativista sul-africano que lutou pelo fim do apartheid e há
cinco anos é o diretor-executivo do Greenpeace International, espera
que o próximo relatório do IPCC (o braço científico das Nações
Unidas), que está em discussão esta semana em Berlim, na Alemanha,
"tire da letargia as negociações internacionais de clima".
O sumário para tomadores de decisão do IPCC, que será divulgado
domingo, versa sobre a mitigação dos gases-estufa no mundo.
"Vamos
ser honestos: o IPCC é fundamentalmente uma organização
conservadora", disse. "Os cenários que colocam sobre a
mesa não são os piores possíveis. Ou seja, qualquer coisa que o
IPCC disser é preciso multiplicar por quatro para se ter um quadro
genuíno das ameaças climáticas."
Naidoo
esteve em São Paulo há poucos dias para falar no Global
Agribusiness Forum, megaevento promovido por entidades do
agronegócio. Colocou sua perspectiva da mudança do clima sobre a
agricultura e produziu, segundo ele, reações hostis na plateia.
Disse que as grandes fazendas industriais são menos resistentes aos
impactos do clima que as pequenas culturas ecológicas, que grandes
terras tomadas por monoculturas e dependentes de fertilizantes e
agrotóxicos não são sustentáveis e que é preciso mudanças
urgentes e radicais. "A natureza está nos dando fortes sinais
de que estamos correndo contra o tempo e que já ultrapassamos vários
limites planetários." A seguir, trechos da entrevista:
Valor:
O sr. faz distinção entre a produção de commodities e a de
alimentos. Pode explicar?
Kumi
Naidoo: O agronegócio costuma dizer ao mundo 'somos importantes,
porque somos fundamentais para a segurança alimentar'. Mas o que
acontece, e no Brasil também, é que a maior parte da comida é
produzida por pequenas fazendas familiares. A abordagem do setor
costuma ser o da monocultura voltada ao mercado de commodities e ao
consumo animal. Fomos a essa conferência para dizer que os
combustíveis fósseis - e não estou falando do transporte, mas dos
fertilizantes e agrotóxicos - contaminam o solo, os recursos
hídricos e os oceanos. Essa forma de agricultura é disruptiva.
Valor:
Mas, por enquanto, não é possível desistir dos combustíveis
fósseis, não é?
Naidoo:
Não podemos migrar para energias renováveis num piscar de olhos, há
que haver uma fase de transição. Assim como a co-existência das
grandes fazendas industriais com os pequenos fazendeiros ecológicos,
que estão aumentando no mundo, inclusive no Brasil. O que o setor
não entende é a própria vulnerabilidade, tanto ambiental como
financeira. Na Europa, a consciência está aumentando em relação a
essa forma de produção e na China as pessoas começam a reclamar
dos pesticidas nos rios. As grandes fazendas industriais são mais
vulneráveis aos impactos da mudança do clima do que as pequenas.
Valor:
Por quê?
Naidoo:
O tipo de semente usado para se ter safras mais produtivas é
dependente de climas específicos e estáveis. Se o clima vira
inadvertidamente, agricultores observam o tempo e buscam uma opção
de cultura que se adapte, mas as grandes fazendas industriais não
trabalham com diversidade de plantio. Isso não faz nem sentido
econômico. Eu disse que a maioria dos nossos líderes está sofrendo
de uma doença cognitiva - todos os fatos estão aí, mas estamos nos
atrasando nas ações urgentes que precisamos tomar.
Valor:
O que quer dizer?
Naidoo:
Não precisamos do IPCC para nos dizer que o clima está mudando. Nos
últimos dez anos foi o que todo mundo viu, tivemos 100% a mais de
eventos extremos em todas as partes, secas intensas na Austrália,
invernos rigorosos nos EUA. São Paulo está ficando sem água, há
fortes secas no Brasil. Se não houvesse Copa do Mundo e eleições,
talvez os governos fossem mais abertos com a situação atual.
Valor:
O que o agronegócio deveria fazer?
Naidoo:
É uma escolha. Os grandes atores do agronegócio têm o poder de
mudar o modo de produzir e investir seriamente em uma forma
ecológica. Agricultura ecológica significa produzir com
diversidade. Também há que ver a questão da escala. Tudo isso
exige uma mudança de mentalidade.
Valor:
Como a plateia reagiu a esses pontos que o sr. levantou?
Naidoo:
Sabíamos que seria como entrar na caverna dos leões, que seria
duro. O Greenpeace foi convidado e decidimos ir, queríamos
apresentar a nossa visão. Os organizadores me disseram que, a
despeito do clima hostil, minha presença tinha sido importante e que
o setor tem que lidar com essa perspectiva, que é preciso gerar esse
debate no agronegócio.
Valor:
E os mais jovens?
Naidoo:
A audiência parecia dividida, foi muito interessante. Os mais
jovens, que estão chegando ao agronegócio agora, parecem mais
abertos a fazer essa transição.
Valor:
Qual era o teor da crítica que o sr. recebeu?
Naidoo:
Foram críticas duras, do tipo 'não precisamos de estrangeiros nos
dizendo o que fazer'. O que estamos dizendo é do interesse de quem
quer ter a longo prazo um negócio sustentável. É o mesmo que
discutimos com as grandes empresas que se engajam nas campanhas de
pesca sustentável. Em 40 anos, por causa da exploração predatória,
a poluição dos oceanos, a acidificação das águas, haverá mares
com imensas zonas mortas. Mas há formas de pescar que não causarão
zonas mortas no futuro. É preciso pensar no longo prazo, e é o
mesmo com a agricultura. Esse modelo industrial é o da agricultura
fácil: uma única cultura, uma grande safra. Parece muito
conveniente e faz muito dinheiro no curto prazo. Nós entendemos que
a economia brasileira é muito dependente das receitas agrícolas.
Valor:
Vocês são contra o lucro?
Naidoo:
O que estamos dizendo é que é preciso trabalhar com o padrão
natural e ecológico de produção agrícola. Há vantagens na
agricultura ecológica, como o manejo natural das pragas, por
exemplo. Quando há diversos cultivos crescendo, você tem 67% mais
biodiversidade. Há mais abelhas, mais insetos e os danos das pragas
são mais controlados. Se você tem uma única cultura, a
biodiversidade se foi e não há a proteção natural da
biodiversidade, os riscos são muito maiores. A produção ecológica
é mais capaz de resiliência quando há ameaças fora do padrão.
Valor:
Essas mudanças são urgentes?
Naidoo:
Se queremos ser sérios diante da mudança do clima e tomar medidas
solidárias com as gerações futuras, a coisa certa a fazer é
desenvolver um plano de transição agressivo da monocultura
industrial e dependente de fertilizantes e agrotóxicos para uma
agricultura ecológica.
Valor:
E a resistência a abandonar os combustíveis fósseis?
Naidoo:
Os lucros que as companhias de combustíveis fósseis estão fazendo
hoje as tornam resistentes à realidade que está sendo apresentada
pela comunidade científica, de que nosso tempo para agir está
acabando. O IPCC irá provavelmente dizer que precisamos deixar entre
60% e 80% das reservas conhecidas de combustíveis fósseis sem
explorar, se quisermos ter a chance de evitar mudança climática
catastrófica. E mesmo se a ciência não fosse tão clara assim, a
natureza está nos dando fortes sinais de que estamos correndo contra
o tempo e que ultrapassamos vários limites planetários.
Valor:
Quais limites?
Naidoo:
Muitos. Chegamos a 400 ppm [partes por milhão] de concentração de
carbono na atmosfera em 2013, registrou-se o menor nível de gelo
marinho no verão do Ártico em 2012 e tivemos um aumento de 100% no
número de eventos climáticos extremos na última década. Se
olharmos para a resposta de quem está no poder, nos governos e nas
empresas, infelizmente, há uma negação da urgência e as coisas
continuam como sempre foram. Se esta tendência continuar, temo que a
previsão feita por Paul Gilding, ex-diretor do Greenpeace, em seu
livro "A Grande Ruptura", se confirme. Ele diz que só
vamos agir de acordo com o que a ciência recomenda quando estivermos
completamente contra a parede e só depois de grandes impactos como
os que já estamos vendo agora, em todos os continentes.
Valor:
Como o tufão das Filipinas em 2013?
Naidoo:
Nas negociações internacionais de clima todos concordaram, em
Copenhague, que temos que limitar o aumento da temperatura a 2° C do
período pré-industrial, quando começamos a queimar petróleo,
carvão e gás até o fim do século. E onde estamos agora? A
temperatura já aumentou 0,8° C e com isso já tivemos eventos
extremos, como o tufão das Filipinas. Falando como um africano, a
África está nesse momento pagando o pior preço dos impactos
climáticos. Mas as pessoas não se dão conta.
Valor:
Por que não?
Naidoo:
Porque não se trata de eventos como os tufões, que arrasam tudo em
um segundo. Seca, como a africana, é uma tragédia que vai se
desenvolvendo aos poucos, silenciosamente. Não é visual até o
final, quando há animais mortos e gente faminta. Em janeiro, Ban Ki
Moon [secretário-geral da ONU] falou para 10 chefes de Estado e 12
ministros do ambiente. 'Gente, nosso tempo está acabando, temos que
agir', disse. Haverá essa reunião especial em setembro, em Nova
York, que ele convocou. Ban Ki Moon dizia: 'Temos que conseguir ali
erguer as chances de um acordo em 2015'.
Valor:
Quais são suas expectativas para esse evento?
Naidoo:
Em setembro, no encontro climático de Nova York? Duas coisas. Seria
patético se, pelo menos, não conseguíssemos um acordo para banir a
produção de HFCs, um gás estufa pior que o CO2 e que vai para
refrigeradores. São pequenos volumes, mas é importante.
Valor:
China e EUA estiveram falando sobre isso em 2013?
Naidoo:
Houve conversas interessantes entre os dois, mas nada na prática. O
Greenpeace pressionou para que todas as grandes empresas concordassem
com o fim da produção desses gases em 2020, mas há países
resistentes, como Índia e Arábia Saudita.
Valor:
E o outro ponto?
Naidoo:
É ter na COP [a conferência do clima deste ano] do Peru uma base do
texto do acordo de 2015, assim teremos um ano para negociar. Se não
tivermos um texto no Peru, não teremos nada para negociar em Paris
[quando deve ser fechado o novo acordo climático]. No Peru, temos
que ter o rascunho do acordo e aí teremos um ano para que tudo fique
pronto. Se isso não acontecer, teremos chances mínimas de ter algo
em Paris. Tem gente dizendo que nunca teremos um acordo em Paris. Se
olharmos as posições de negociação iniciais dos países
dominantes, parece que nada vai acontecer. Precisamos de uma mudança
radical e urgente, e é isso que os relatórios do IPCC estão
repetindo. E a consciência do público dobrou agora.
Valor:
Cresceu?
Naidoo:
Cresceu muito desde a conferência do clima de Copenhague, em 2009,
principalmente entre os jovens. Fiquei empolgado no evento do
agronegócio vendo que havia divisão de opiniões na plateia. Os
mais jovens, que estão chegando ao setor, começam a contestar a
ortodoxia das gerações anteriores.
Valor:
E sobre o Ártico? É verdade que 25% das reservas de petróleo
globais estão ali?
Naidoo:
É o que dizem. Mesmo depois da prisão dos nossos ativistas na
Rússia, a Gazprom está começando a extrair o petróleo no Ártico
e o primeiro lote está para ser transportado. Iremos fazer campanhas
para dizer que aquele petróleo é do Ártico e tentar convencer os
consumidores a não comprarem. Até pelo ponto de vista de negócios
há riscos. Estive no Fórum Econômico Mundial, em Davos, e havia
várias discussões sobre 'stranded carbon assets'. É sobre o que
vai acontecer quando as empresas que pagaram pelos direitos de
explorar campos de petróleo, gás ou carvão, ficarem com ativos
encalhados, quando os políticos recuarem e disserem que não se pode
fazer nada com aquilo, porque o petróleo terá que ficar em terra.
Valor:
O que espera do relatório do IPCC?
Naidoo:
Espero que tire da letargia as negociações internacionais de clima.
Depende de quão forte será. Vamos ser honestos: o IPCC é uma
organização conservadora. Todos os governos estão envolvidos, é
um processo complicado de negociação. Os cenários que eles colocam
sobre a mesa não são os piores possíveis. Ou seja, qualquer coisa
que o IPCC disser é preciso multiplicar por quatro para se ter um
quadro genuíno das ameaças.
Valor:
Por que o Ártico é importante para quem vive no Brasil?
Naidoo:
O Ártico funciona como um ar-condicionado do planeta. Este ano,
durante os eventos extremos nos Estados Unidos, em dezembro e em
janeiro, pela primeira vez vi jornalistas falando do vórtex polar.
As pessoas começam a entender que todo esse sistema está
relacionado. Há uma possibilidade de, ainda nesta década, no verão,
o Ártico ficar totalmente sem gelo. Esperemos que não, mas as
piores projeções sugerem isso.
Valor:
O sr. falou sobre isso no evento do agronegócio?
Naidoo:
Sim, porque vai ter impacto no clima. O Ártico também é importante
porque tem uma biodiversidade única. No Golfo do México, com um
esforço enorme ainda não se conseguiu limpar todo o derramamento de
petróleo, imagine se isso acontece no Ártico. Quando estivemos lá,
em 2012, levou três dias para um navio russo chegar onde estávamos.
Um derramamento de petróleo no Ártico no fim do verão, quando o
oceano começa a congelar de novo, pode deixar aquele petróleo preso
por seis ou oito meses, provocando quem sabe qual dano. Por várias
razões o Ártico é importante. Ele é fundamental na luta contra o
aquecimento global.
Valor:
E há o metano na tundra, não é?
Naidoo:
Exatamente. Há a ameaça da liberação de gás metano da tundra. O
fato de o Ártico ficar muito longe da maioria das pessoas não
justifica que os líderes políticos e de negócios não entendam o
que está em jogo. Não precisam ler um livro inteiro, basta que
leiam um simples estudo.
Valor:
O sr. acha que os líderes estão mudando no discurso sobre mudança
do clima?
Naidoo:
Apenas nas palavras. Não estão mudando na ação para responder ao
desafio. É muito frustrante quando vou a eventos com chefes de
Estado. Porque não há nenhum desacordo sobre como é sério esse
problema. Claro, estamos preocupados, eles dizem. Depois, tudo
continua como sempre.
Valor:
Como acha que os países emergentes deveriam encarar o novo tratado?
Naidoo:
Brasil, Índia e China sozinhos produzem a maioria dos alimentos do
mundo e também a consomem. A economia global depende deles, os três
estão na lista das dez economias mais importantes do mundo. Nossos
governos têm uma escolha agora, e também os dos países emergentes:
ou continuam a gastar dinheiro em armas, corrida espacial e outras
coisas não fundamentais para a sociedade ou veem com seriedade como
podem ganhar a corrida verde. As empresas e os países bem-sucedidos
do futuro têm que dirigir seus investimentos para isso agora. É o
que estamos vendo em alguns países europeus, como a Dinamarca e a
Alemanha, que até 2050 pode ter 100% de energia renovável. O que me
surpreende no Brasil é o governo não investir em energia solar. Há
tanto potencial. Deus deu o Sol para este país e o presente não é
aberto.
Valor:
Sabe que no Brasil há o plano de se fazer quatro ou cinco usinas
nucleares?
Naidoo:
Isso foi decidido? Há quatro razões para que esse passo não tenha
sentido. É muito caro, muito perigoso e não há nenhuma solução
para o lixo nuclear que leva entre 200 e mil anos antes de deixar de
ser perigoso. E por fim, depois de Fukushima, você pensa que
cidadãos irão tolerar, sem brigar, usinas nucleares no quintal?
Valor:
Mas sem combustíveis fósseis e sem nucleares é possível...?
Naidoo:
Há estudos que mostram isso. O que é preciso é só vontade
política, que não está aí porque as nossas economias são
controladas pelos setores de combustíveis fósseis, militar e
nuclear. O nuclear não pode ser pensado como solução para a
mudança do clima, porque será muito pouco e muito tarde. Leva 20
anos para construir uma usina nuclear e nós não temos 20 anos. Há
1,6 bilhão de pessoas no mundo sem acesso à eletricidade. Estão em
pequenas comunidades remotas. Você acha que quando fizerem usinas
nucleares vão levar eletricidade a essas pessoas? Não. Se é
verdade que se quer tirar 1,6 bilhão de pessoas do escuro, o jeito é
descentralizar o fornecimento de energia. Como os governos dizem que
vão lutar contra a pobreza e falam em justiça social, e escolhem
opções energéticas que não servem para a maioria das pessoas?
Daniela
Chiaretti / Valor Econômico
http://www.valor.com.br/brasil/3511944/greenpeace-defende-mudancas-no-agronegocio#ixzz2yUQ51p6H