terça-feira, 25 de março de 2014

Serviços de polinização representam 10% do valor da produção agrícola mundial




Serviços de polinização representam 10% do valor da produção agrícola mundial


25/03/2014 - Por Karina Toledo

Agência FAPESP



A humanidade tem explorado colônias de abelhas produtoras de mel desde a pré-história, mas somente nos últimos anos se deu conta de que a importância desses insetos para a sua alimentação vai muito além da fabricação do poderoso adoçante natural.

“O mel é, na verdade, um subproduto pequeno quando comparado ao valor do serviço de polinização prestado pelas abelhas, que corresponde a quase 10% do valor da produção agrícola mundial”, destacou a professora da Universidade de São Paulo (USP) Vera Lúcia Imperatriz Fonseca, durante palestra no segundo encontro do Ciclo de Conferências 2014 do programa BIOTA-FAPESP Educação, realizado no dia 20 de março, em São Paulo.

Cientistas estimam que no ano de 2007, por exemplo, o valor global do mel exportado tenha sido de US$ 1,5 bilhão. Já o valor dos serviços ecossistêmicos de polinização em todo o mundo era calculado em US$ 212 bilhões. Os dados foram levantados em diversos estudos e estão reunidos no livro Polinizadores no Brasil: contribuição e perspectivas para a biodiversidade, uso sustentável, conservação e serviços ambientais, um dos vencedores do Prêmio Jabuti de 2013.

A obra é fruto do Projeto Temático FAPESP “Biodiversidade e uso sustentável de polinizadores, com ênfase em abelhas Meliponini”, coordenado por Fonseca no âmbito do Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Recuperação e Uso Sustentável da Biodiversidade de São Paulo (BIOTA).

As verduras e frutas lideram as categorias de alimentos que necessitam de insetos para polinização (cada uma das produções tem valor estimado de € 50 bilhões. Seguem as culturas oleaginosas, estimulantes (café e chá), amêndoas e especiarias. Em média, segundo os estudos, o valor das culturas que não dependem da polinização por insetos é de € 151 bilhões por ano, enquanto o das que dependem da polinização é de € 761 bilhões.

“Cerca de 75% da alimentação humana depende direta ou indiretamente de plantas polinizadas ou beneficiadas pela polinização animal. Dessas, 35% dependem exclusivamente de polinizadores. Nos demais casos, insetos como as abelhas ajudam a aumentar a produtividade e a qualidade dos frutos”, afirmou Fonseca, que atualmente é professora visitante na Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa), no Rio Grande do Norte.

Pesquisas recentes, contou Fonseca, mostraram que mesmo culturas como a canola (polinizadas pelo vento) e a soja (considerada autofértil) produzem entre 20% e 40% a mais por hectare quando recebem apoio de colônias de abelhas da espécie Apis mellifera ou quando a plantação é feita ao lado de áreas com remanescentes de vegetação nativa.

“Quando se usam abelhas, jataí por exemplo, na polinização do morangueiro em ambientes protegidos, diminui em 70% o número de frutos malformados em alguns cultivares. Outra cultura que se beneficia da polinização em ambientes protegidos é a do tomateiro, que precisa de abelhas que vibram nas flores, como as do gênero Melipona. Em geral, as abelhas aumentam a produção de sementes, atuam na qualidade do habitat, tornam os sistemas agrícolas mais sustentáveis e trazem benefícios amplos ao meio, favorecendo outros serviços ecossistêmicos que permitem a preservação da biodiversidade e dos recursos hídricos”, disse Fonseca.


Mudanças climáticas

Embora a demanda pelos serviços de polinização das abelhas cresça na mesma medida em que cresce a produção agrícola mundial, os habitats favoráveis à manutenção desses insetos diminuem a cada ano. Tal descompasso tem resultado em um fenômeno recente batizado pelos cientistas como desordem do colapso das colônias (CCD, na sigla em inglês).

De acordo com Fonseca, a síndrome do desaparecimento das abelhas foi detectada pela primeira vez em 2007 no Hemisfério Norte. Atualmente, naquela região, a perda tem sido em torno de 30% das colônias por ano e tem se tornado necessário importar abelhas de outros locais para promover a polinização agrícola. A Europa também sofre com o fenômeno, que começou a ser detectado no Brasil em 2011.

“O aluguel de uma colônia de abelhas para fazer a polinização chega a US$ 200 nos Estados Unidos, pois os produtores sabem que o lucro gerado pelo serviço prestado será muito maior. E não há abelhas suficientes. Esta é uma tendência mundial, pois cada vez mais plantamos culturas que dependem das abelhas para sua produção”, contou Fonseca.

Entre os fatores apontados como causa do desaparecimento das abelhas estão o uso inadequado de herbicidas e pesticidas, o desmatamento seguido pela ocupação do solo por extensas monoculturas e a migração de colônias para promover a polinização agrícola.

“O pesticida, quando não mata a abelha num primeiro momento, a deixa fraca e reduz o tempo da atividade forrageira (busca de alimento). Por outro lado, as abelhas têm de percorrer distâncias cada vez maiores em busca de comida quando ocorre a substituição da vegetação nativa por monocultura, pois há menor diversidade de flores. A migração de colônias, por sua vez, pode aumentar a competição por comida entre as espécies e favorecer a disseminação de doenças”, explicou Fonseca.

O cenário, já nada animador, tende a piorar com a chegada de um novo problema: as mudanças climáticas globais. Isso porque os polinizadores, assim como as plantas que os mantêm, têm um raio de distribuição geográfica influenciado pela temperatura e pelas chuvas.

“As previsões do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas] para o Nordeste brasileiro, por exemplo, são de aumento de 4º C na temperatura nos próximos 50 anos. Isso deve impactar fortemente na área de ocorrência das abelhas. Temos feito trabalhos de modelagem de distribuição de espécies e estudos com a metodologia da análise polínica do alimento coletado por elas para saber quais plantas as abelhas visitam. Essas ferramentas permitem fazer uma análise da utilização de recursos florais e, com o auxílio do herbário da flora do Brasil, modelamos as fontes principais de alimento. Cruzando os dados, é possível identificar as áreas naturais mais importantes para serem reconstruídas e preservadas e planejar um programa de mitigação. Isso para que daqui a 40 ou 50 anos as abelhas tenham algum lugar para viver”, contou Fonseca.


A dieta das abelhas

Também com o objetivo de preservar as áreas naturais importantes para a atração e manutenção de abelhas usadas na produção agrícola, a pesquisadora Cláudia Inês da Silva, da Universidade Federal do Ceará (UFC), tem se dedicado a estudar os hábitos alimentares de mamangavas (gênero Xylocopa) e de outras abelhas importantes para a polinização do maracujá. Parte dos resultados foi apresentada durante sua palestra no segundo encontro do Ciclo de Conferências 2014 do programa BIOTA.

“Escolhemos o maracujá porque essa frutífera tem uma importância econômica grande para o Brasil, que responde por mais de 60% da produção mundial. A fruta é tipicamente cultivada em propriedades familiares e ocorrem grandes flutuações na produção principalmente por causa dos custos com manejo e insumos. E a polinização influencia diretamente nesses custos de produção”, disse Silva.

Segundo a pesquisadora, há muito desconhecimento por parte dos produtores rurais sobre os insetos que visitam as flores do maracujazeiro, a biologia das plantas e seu sistema reprodutivo, que é completamente dependente da polinização feita por abelhas.

“No caso do maracujá, nem todas as abelhas são benéficas. Algumas, como é o caso da Apis mellifera, são muito pequenas e apenas pilham o néctar e o pólen sem conseguirem promover a polinização. É preciso entender as necessidades de cada cultura e preservar o polinizador mais adequado”, disse Silva.

Um estudo desenvolvido no Departamento de Economia Rural da Universidade Federal de Viçosa estimou que os serviços prestados por abelhas mamangavas diminuem os custos de produção do maracujá em torno de R$ 33 mil reais por hectare a cada três anos.

Mas, apesar de sua importância, as mamangavas são muitas vezes mortas pelos produtores por serem consideradas agressivas, contou Silva. “Eles temem que elas comam as flores, destruam a lavoura e estraguem as cercas, onde costumam construir seus ninhos”, afirmou.

Durante seu doutorado, realizado na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) sob orientação de Paulo Eugênio de Oliveira, Silva identificou 112 espécies de plantas usadas na alimentação das mamangavas. Algumas das mais importantes são consideras pelos produtores como mata-pasto e são, muitas vezes, retiradas do entorno.

“Com base nesse estudo elaboramos uma proposta de enriquecimento e restauração da flora que fosse importante para a atração e manutenção dessas abelhas. A partir do estudo da dieta, desenhamos o cenário atual e futuro para identificar áreas potenciais para cultivo do maracujá”, contou Silva.

As informações ajudaram a compor o livro Manejo dos Polinizadores e Polinização de Maracujá, que deverá ser lançado em breve com apoio do Ministério do Meio Ambiente.

Os protocolos desenvolvidos por Silva durante seu doutorado para avaliação das áreas do entorno dos cultivos (composição florística, distribuição espaço-temporal dos recursos florais usados pelas abelhas, avaliação da dieta das abelhas adultas e das larvas por meio da morfologia dos grãos de pólen amostrados nas fezes e outros métodos) estão sendo adotados em estudos de diversas culturas, como morango, caju e acerola.

Sistemas diversos

As abelhas são consideradas polinizadoras profissionais por terem estruturas corporais especializadas na coleta e transporte de pólen. Há, no entanto, outros diversos animais que contribuem para esse importante serviço ecossistêmico, como besouros, borboletas, mariposas, moscas, pássaros e morcegos.

Este foi o tema abordado durante a palestra de Kayna Agostini, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em Araras. “Todos os sistemas de polinização conhecidos estão presentes no Brasil, por ser um país de clima tropical. Alguns desses sistemas são abióticos, como é o caso da polinização pelo vento, mas a grande maioria é por agentes bióticos”, afirmou Agostini.

Embora grande parte das interações entre os animais e as plantas seja do tipo mutualista (com benefício para ambas as partes), estudos recentes têm mostrado que isso não é uma regra válida em todos os casos. Um dos exemplos citados por Agostini é o da planta conhecida como papo-de-peru ( Aristolochia gigantea).

“A aparência e o odor da flor faz com que a mosca acredite se tratar de um pedaço de carne. Ao chegar perto para botar seus ovos, ela percebe o engano, tenta passar para o outro lado e acaba ficando presa. Depois que o pólen é liberado a mosca consegue sair, sem nenhum benefício com essa interação”, afirmou Agostini.

Além de pólen – fonte de proteínas – e de néctar – rico em açúcar –, os animais visitam as flores em busca de recursos como óleos, fragrâncias e resinas.

Biota Educação

O ciclo de conferências organizado pelo Programa BIOTA em 2014 tem como foco os serviços ecossistêmicos. Outros três encontros estão programados para este semestre, com temas como proteção de recursos hídricos de rios, riachos, lagos e reservatórios; mudanças climáticas (relacionadas à perda de biodiversidade); e ciclagem de nutrientes (um exemplo é a influência da biodiversidade sobre a poluição e o equilíbrio de dióxido de carbono e oxigênio na atmosfera).

A iniciativa é voltada à melhoria do ensino da ciência da biodiversidade. Podem participar estudantes, alunos e professores do ensino médio, alunos de graduação e pesquisadores.

Mais informações sobre os próximos encontros estão disponíveis em http://www.fapesp.br/8441




quarta-feira, 19 de março de 2014

Descompassos entre política e ecologia - entrevista com o sociólogo britânico Steven Yearle




Sociólogo britânico Steven Yearley aponta os descompassos entre a política e a ecologia


Referência no estudo da sociologia ambiental, pesquisador cobra maior presença do ambientalismo no debate global e defende maior participação do público em pautas controversas


Publicado no jornal O Globo em 11/03/14



RIO - O diálogo entre a ciência e o social está no centro da trajetória acadêmica do britânico Steven Yearley. Professor de Sociologia do Conhecimento Científico na Universidade de Edimburgo e um dos expoentes do Science Studies (campo de pesquisa interdisciplinar que visa elucidar o funcionamento concreto da ciência e sua articulação com o resto da sociedade), o sociólogo é uma das principais referências no estudo das tensões entre ciência, ambientalismo e política — e as controvérsias e incertezas provocadas pelos descompassos entre estas diferentes esferas. Analisando a dinâmica científica dentro de uma ordem democrática, busca entender como se negociam decisões sobre temas que ainda não apresentam uma solução definitiva, como o aquecimento global e os organismos geneticamente modificados (OGM). Em entrevista à Revista Amanhã, Yearley lamenta a presença limitada do debate ambiental na agenda global, e defende uma maior participação do público em pautas polêmicas, que transcendem a área científica.


O meio ambiente está recebendo a atenção necessária no debate da globalização?

Acredito que a resposta seja não, o que é algo admirável. Por um lado, o movimento ambiental foi muito bem sucedido na promoção de uma consciência do ambiente global. O conhecido nome “Amigos da Terra”, por exemplo, mostra como facilmente pensamos “a Terra” como parte de uma perspectiva ambiental. Mas o processo de globalização tem focado em mercado, comunicação e finanças. Até mesmo a globalização cultural tem sido mais discutida do que a globalização ambiental. Vejo aí uma ironia: já pensamos “o Planeta” como um objeto frágil, mas a globalização mainstream deixou esta imagem quase completamente fora dos seus discursos. Às vezes, é claro, as duas coisas se encontram. Aconteceu de forma surpreendente com a Organização mundial do comércio (OMC) e outras entidades, como o Tratado norte-americano de livre comércio (NAFTA).

Até agora, qual foi a importância de uma entidade como a OMC?

Quase todos os acordos ambientais (proteção da camada de ozônio ou o comércio de espécies ameaçadas de extinção, por exemplo) têm implicações para o comércio livre. Por isso, a OMC foi muitas vezes obrigada a considerar os direitos de comércio global em função das necessidades ambientais globais. Nem sempre o comércio foi colocado em primeiro lugar, mas é surpreendente para muitas pessoas a importância que a OMC passou a ter como um regulador ambiental.

Como a questão ambiental pode se tornar prioritária na agenda global?

É uma pergunta difícil, e os ambientalistas sofrem com ela há décadas. Tenho uma lembrança muito forte do início dos anos 1990, quando os ambientalistas viam esta década como a sua última chance de fazer algo a respeito da poluição do ar, aquecimento global, e conservação da biodiversidade. Mas o novo século chegou sem grandes realizações. Em muitos aspectos, o grande desenvolvimento dessa década não foi o surgimento de acordos ambientais, mas sim o surgimento da China (e, em certa medida, da Índia) como grandes potências econômicas e um enorme aumento da produção econômica mundial. A recusa do EUA em se inscrever em Kyoto e, em seguida, a rejeição de George W. Bush à ideia de que o Norte deve assumir a liderança decisiva sobre a mudança climática, marcou o fim de uma abordagem possível para o problema. Em meados da década de 2000, as emissões da China haviam ultrapassado as dos Estados Unidos e os membros do “clube” dos grandes poluidores se alterou de forma decisiva. Ainda estamos pesquisando um novo tipo de abordagem para os principais problemas ambientais globais — um que combine justiça e eficácia.

A ciência tem sido mais questionada agora do que no século passado? Quais são as questões ambientais mais controversas no momento?

As mudança climática ainda é “controversa” em algum sentido. Alguns grupos, certamente, fazem muito esforço para que ela pareça controversa. Mas há outras questões ambientais em que o papel da ciência ainda é genuinamente polêmico. Um caso recente tem sido o das abelhas. Ainda hoje, as abelhas são muito importantes para o trabalho de polinização; nos Estados Unidos, fazem parte de um grande negócio. Mas as abelhas estão em declínio e a causa não é clara. Na Europa, há um grande debate sobre se inseticidas específicos deveriam ser proibidos — aqueles conhecidos como neonicotinóides. Todos parecem concordar que deve haver uma resposta científica à pergunta sobre o que está causando o declínio na quantidade de abelhas e sobre qual a responsabilidade dos neonicotinóides nesta questão. Mas não há consenso sobre a forma de avaliar as evidências disponíveis. É claro que, a longo prazo, uma resposta provavelmente será acordada, mas até lá as abelhas podem ter se tornado raras ou até mesmo extintas.

Seria um exemplo clássico de uma controvérsia sobre o quanto se deve esperar por certezas científicas antes de tomar providências?

Exato. Ambientalistas têm tendência a afirmar que os cientistas e funcionários não estão dispostos a dar às abelhas o “benefício da dúvida”. Pelo menos no Reino Unido, cientistas do governo argumentam que a proibição os produtos químicos também podem causar problemas, porque os agricultores terão que usar outros inseticidas em suas áreas e estes seriam ainda piores para a vida selvagem e para o meio ambiente em geral. Mas parece- me que este tipo de debate, em que as pessoas querem apelar para a objetividade da ciência, mesmo sendo difícil saber quais são as implicações da ciência, acabe se polarizando. E isto pode trazer problemas com a opinião pública e com a abordagem oficial do conhecimento científico.

De acordo com a Nasa e a Scientific American, existe um consenso entre pelo menos 97% dos artigos de que o aquecimento global é real e tem origem antropogênica. Mas ainda se vê ceticismo em alguns setores. Há forças políticas e econômicas por trás da controvérsia?

Acho que a resposta é certamente sim, e muitos dos céticos do clima têm usado argumentos fracos e inconsistentes na tentativa de defender a posição deles. Mas é claro que existem características específicas na ciência da mudança climática que estão abertas à controvérsia.

E quais seriam elas?

Em primeiro lugar, o clima é naturalmente muito variável e imprevisível, por isso é impossível dizer que um furacão ou um clima excepcionalmente úmido é consequência da mudança climática. Alguns anos foram muito úmidos ou quentes no passado e nem tudo tem explicação no aquecimento global. Tivemos agora o inverno mais chuvoso na Inglaterra em mais de cem anos. Isto se encaixa com as previsões de modelos climáticos para mais chuva no Reino Unido nos meses de inverno. Mas ninguém pode dizer ainda que as mudanças climáticas correspondem à, por exemplo, 60 por cento destas chuvas. Poderia ter acontecido de qualquer maneira. As pessoas estão trabalhando duro na questão de “atribuição” para ver quais métodos poderiam ser usados para colocar números nestes casos. No entanto, há alguns fenômenos recentes, como o derretimento rápido e grande do gelo marinho no Ártico durante os meses de verão, extremamente improvável e chocante, que estavam previstos por modelos climáticos e que continuam acontecendo ano após ano. Casos como estes parecem provas das mudanças climáticas. E isto cria espaço para a controvérsia. Na média, a temperatura global do ar subiu menos nos últimos 15 anos do que a maioria dos cientistas anteciparam, embora a extensão do aumento dependa muito do ano em que se começa a contá-lo. Esta aparente abrandamento do aquecimento talvez aconteça porque os oceanos estão absorvendo cada vez mais calor da atmosfera e armazenando-o em sua profundidade. Só que esta evolução não foi prevista. Assim, os céticos do clima foram capazes de apontar para a falta de aquecimento global no passado recente para tentar lançar dúvidas sobre as alegações dos cientistas. Os cientistas, por sua vez, salientam que o nível do mar continua subindo e que os oceanos estão se tornando mais ácidos.

Pensando nisto, qual seria a melhor estratégia para persuadir os negacionistas das mudanças climáticas?

Está claro que os negacionistas do clima são indiferentes ao fato de que 97% ou 99% dos estudos comprovam as mudanças climáticas. Suspeito que a forma inteligente não é procurar 100% de provas, pois isso não irá funcionar. É preciso encontrar uma maneira de contornar o argumento. Se grandes fabricantes, grandes bancos e seguradoras — empresas profundamente capitalistas com as quais muitos dos negacionistas se identificam — começarem a tratar as mudanças climáticas como um problema real e com implicações comerciais, isto terá muito mais persuasivo do que os mais inteligentes pontos de vista científicos.

Em temas controversos como os dos organismos geneticamente modificados (OGM), como se dá a negociação entre os diferentes agentes?

Há uma bela ironia na comparação entre os casos dos OGM e as mudanças climáticas. Muitos ambientalistas argumentam que a mudança climática é real porque foram oferecidas provas científicas, ao passo que são céticos em relação às garantias dos cientistas sobre a segurança dos OGM. Negacionistas do clima, por outro lado, tendem a expressar muita fé em reivindicações dos cientistas sobre a inofensividade dos OGM ao mesmo tempo em que ignoram provas científicas das tendências dominantes no clima e os perigos associados a elas. Às vezes, alguém quebra o padrão. Um razoavelmente bem conhecido ativista ambiental britânico mudou publicamente a sua opinião sobre os OGMs pouco mais de um ano atrás. Segundo ele, a mudança climática era uma questão tão enraizado na ciência que se tornou impossível falar em nome da ciência do clima a menos que também aceitasse os argumentos científicos sobre os OGMs. Mas as duas questões não são paralelas. No caso dos OGM , é mais fácil aceitar as diferenças de opinião. Se os agricultores e as autoridades americanos pretendem utilizar os OGMs e os da Europa não fizerem isso, os dois sistemas poderão operar razoavelmente bem mesmo assim. O mesmo não é verdade para as mudança climáticas na medida em que as emissões chinesas e americanas afetam o mundo inteiro. Por isso a necessidade de que todos os grandes emissores adotem uma posição coletiva.

Como a participação pública pode influenciar modelos científicos?

A ideia de que existe um papel para a participação pública na formação do conhecimento científico do mundo natural se tornou bastante popular nos últimos 20 anos. Como eu mencionei antes, em relação à questão das abelhas e inseticidas, muitas vezes há uma pergunta sobre como equilibrar as descobertas científicas com outros problemas (a saúde das próprias abelhas ou a produtividade agrícola). São julgamentos que envolvem a avaliação científica, mas não é simplesmente uma questão científica. De certa forma, é uma questão política. Nas sociedades democráticas, é de se esperar que os cidadãos tenham uma palavra a dizer sobre tais assuntos. Não significa que só as ideias dos cidadãos contam, mas as pessoas devem, sim, ser ouvidas.

Existe hoje um abismo entre ciência e política? Como deveria funcionar esta dinâmica entre política, ciência e economia?

Bruno Latour (filósofo francês, um dos fundadores dos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia) ficou famoso ao defender esta teoria, mas eu acho que sua visão está equivocada. Não creio que haja uma solução simples aqui. As opiniões científicas são necessárias para decidir políticas ambientais, mas elas não são a única informação relevante — elas não são sequer a única informação relevante sobre o estado do conhecimento ambiental. Claramente, porém, há coisas que precisamos fazer, como a promoção da participação pública no fazer ambiental onde ela é adequada.

Atualmente, o senhor trabalha em um programa para a diversidade nos zoológicos europeus. O que achou da recente polêmica sobre o sacrifício de uma girafa saudável em um zoológico da Dinamarca?

Foi algo muito triste. Existe um grande problema nos zoológicos quando se quer produzir novas gerações de animais. Os administradores precisam impedir o acasalamento entre indivíduos próximos para evitar uma deterioração genética dos animais. Uma maneira de resolver este problema é trocar ou vender animais para outros zoos, mas há regras rigorosas para que estes animais não acabem em parques de baixa qualidade. E, pelo que entendi, nenhum zoo de qualidade precisava de uma girafa extra. Teria sido cruel deixá-la à sua própria sorte ou segregada. Mas talvez o zoo pudesse ter feitos maiores esforços para colocar a girafa em outro lugar.






segunda-feira, 17 de março de 2014

Das democracias totalitárias ao Pós-Capitalismo - entrevista com David Harvey





Das democracias totalitárias ao Pós-Capitalismo


14 DE MARÇO DE 2014 - Entrevista a André Antunes, no Blog da Boitempo

David Harvey afirma: nova oligarquia controla riquezas globais. Para superá-la, é preciso compreender que Revolução é processo, não evento




Um dos mais influentes pensadores marxistas da atualidade, o geógrafo britânico David Harvey esteve no Brasil em novembro para divulgar o lançamento de seu livro Os limites do capital. Escrita há mais de trinta anos, a obra ganhou sua primeira versão em português, mas, segundo Harvey, isso não significa que tenha ficado ultrapassada – pelo contrário. Pioneiro em sua análise geográfica da dinâmica de acumulação capitalista descrita por Marx, o livro, assim como grande parte da obra de Harvey, tornou-se mais relevante para entender os efeitos da exploração econômica dos espaços urbanos e suas consequências para os trabalhadores, ainda mais numa conjuntura marcada pela eclosão de protestos contra as condições de vida nas cidades, não só no Brasil, mas também na Europa, América do Norte e África. Nesta entrevista, Harvey faz uma análise dos levantes urbanos que ocorrem em todo mundo, aponta que não será possível atender às reivindicações por meio de uma reforma do capitalismo, e defende: é preciso começar a pensar em uma sociedade pós-capitalista.

Os limites do capital foi escrito há mais de 30 anos. Desde então o capitalismo sofreu mudanças profundas. Qual é a atualidade dessa obra para entender o modelo de acumulação capitalista hoje?

O livro explora a teoria de Marx sobre acumulação de capital para entender as práticas de urbanização ao redor do mundo em vários lugares e momentos históricos diferentes. Minha investigação sobre as ideias de Marx se estenderam para uma análise de coisas como a renda fundiária, preços de propriedades, sistemas de crédito.

Uma coisa curiosa aconteceu: a análise de Marx era sobre o capitalismo praticado no século 19. Na época em que comecei a escrever Os limites do capital, havia muitos aspectos do mundo ao meu redor que não se encaixavam com a descrição de Marx: tínhamos um Estado de Bem-estar Social, os Estados estavam envolvidos na economia de diferentes formas, havia arranjos de seguridade social e movimentos sindicais fortes em muitos países. Mas aí veio a chamada contrarrevolução neoliberal depois dos anos 1970, com Margareth Thatcher, Ronald Reagan, as ditaduras na América Latina, e o capitalismo regrediu para sua forma do século 19. Por exemplo, houve o desmantelamento de muito da rede de seguridade social em boa parte da Europa e América do Norte; o capital se tornou muito mais feroz em sua relação com movimentos trabalhistas; as proteções que vinham de Estados que eram em algum grau influenciados por movimentos políticos de esquerda foram desmanteladas em boa parte do mundo. O que vimos desde os anos 1970 é um aumento da desigualdade social, que é precisamente o que Marx disse que aconteceria caso adotássemos um sistema de livre mercado. Adam Smith postulava que se tivéssemos um livre mercado seria melhor para todos. O que Marx mostra no O Capital é que quanto mais perto de um livre mercado mais provável é que os ricos fiquem cada vez mais ricos e os pobres mais pobres. E essa tem sido a tendência por grande parte do mundo desde os anos 1970 por conta do neoliberalismo.

De uma maneira curiosa, por essa razão, Marx se tornou mais relevante para entender o mundo hoje do que era na época em que escrevi o livro. Ao mesmo tempo, muitas das lutas que vemos ao nosso redor agora são lutas urbanas em vez de lutas baseadas em unidades fabris, de modo que ligar a dinâmica do que Marx descrevia com a dinâmica da urbanização se tornou mais relevante.

E o papel dos centros urbanos na dinâmica de acumulação capitalista, como mudou ao longo desse período?

O capital produz constantemente excedentes, e uma das coisas que aconteceu é que a cidade se tornou um local para a absorção de capital excedente. Muito desse dinheiro foi para construção de estruturas, em alguns casos para a construção de megaprojetos. O capital adora esses megaprojetos, como os envolvidos em Copas do Mundo e Olimpíadas, porque são uma ótima oportunidade para gastar muito dinheiro na construção de novas infraestruturas, o que levanta uma questão interessante: essas novas infraestruturas acrescentam algo à produtividade do país? Se você for para a Grécia, vai ver um país essencialmente falido, com esses estádios vazios ao redor, que foram construídos para um evento que durou algumas semanas. A maioria dos lugares que sediam esses eventos tem problemas financeiros sérios depois mas, no processo, as empreiteiras, construtoras e financiadoras ganham muito dinheiro. Ao longo dos últimos 40 anos, o capital excedente foi cada vez mais canalizado para mercados de ativos, como os direitos de propriedade intelectual, em que você investe no controle de patentes e vive da renda, sem fazer nada. E, da mesma forma, as cidades, as propriedades urbanas, se tornaram ativos muito lucrativos. O que vemos hoje nos mercados imobiliários é que é quase impossível para a maioria da população encontrar um lugar para viver que não absorva mais da metade de sua renda. Esse é um processo mundial: tivemos uma crise na habitação nos Estados Unidos, na qual o mercado de propriedade entrou em colapso. Em Nova York, Los Angeles e São Francisco os preços estão subindo, e vemos o mesmo fenômeno na Europa: tente achar um lugar para morar em Londres, em Paris. Mais e mais dinheiro está sendo extraído das pessoas na forma de aluguel. Isso é interessante, porque há um deslocamento da exploração do trabalho e da produção para explorar as pessoas em termos de extração de aluguel de seu local de moradia. O capital consegue inclusive fazer concessões aos trabalhadores e recapturar esse dinheiro que o trabalhador ganha aumentando o valor do aluguel.

Você trabalha atualmente em um livro que lista 17 contradições do capital: pode falar um pouco sobre elas a partir da crise de 2008?

A forma como as contradições funcionam é que elas estão interconectadas. O que houve em 2008 foi uma serie de contradições: entre valor de uso e de troca, entre a forma do dinheiro e o valor que ele deveria representar e entre aspectos da propriedade privada e o poder do Estado. Todas essas contradições se juntaram para criar um ambiente propício ao acontecimento da crise na habitação. Por exemplo: você olha uma casa, e há uma contradição entre encará-la em termos de valor de uso e valor de troca. Em algum ponto a casa se torna uma forma dupla de valor de troca, porque as pessoas que compram a casa a veem como uma forma de poupança. E mais tarde eles compram uma casa como uma forma de investimento, uma forma de ganhar dinheiro. Em vez de comprar uma casa para morar, as pessoas compram casas para reformá-las e vendê-las, para ganhar dinheiro em cima disso. Então se o mercado imobiliário está em alta, é possível ganhar muito dinheiro muito rápido com esse processo, e o resultado disso é que as vizinhanças se tornaram instáveis, porque ninguém mora e cuida do local, só usam a casa para ganhar dinheiro. E ao mesmo tempo, há muita especulação para tentar elevar o valor da casa por meio de ajustes superficiais, o que não é um problema em si, até que o mercado imobiliário despenque, porque as coisas não podem subir para sempre. Se começa a cair, todo mundo vende rapidamente e você tem o crash que vimos nos Estados Unidos em 2007-2008, e também na Espanha, Irlanda e em muitas partes do mundo. Essa tensão entre valor de troca e de uso é importante, mas é importante olharmos também para a forma como tudo é monetarizado. Há uma forma interessante com que o dinheiro começa a gerar mais dinheiro, esse aspecto especulativo do dinheiro. Eu poderia ter uma casa em Nova York sem a menor ideia de quem é o proprietário porque as hipotecas são divididas em pedacinhos e uma parte dela está na Alemanha, outra em Hong Kong e ninguém consegue descobrir de quem é a dívida. Isso é uma ficção que aconteceu por causa da maneira como o sistema monetário evoluiu.

A outra contradição é entre o Estado e a propriedade privada. O que vemos é que, em países como os Estados Unidos, o Estado vem incentivando a compra de casa própria nos últimos 40 anos, criando novas instituições financeiras para apoiar a aquisição da casa própria, dando isenções de impostos se você é proprietário, a um ponto que todo mundo tem que se tornar um proprietário, quando isso não é economicamente racional em mercados especulativos desse tipo. Entre quatro e seis milhões de pessoas foram despossuídas de suas casas nos Estados Unidos através dessa crise de execução de hipotecas. Quando perguntaram para as pessoas por que elas achavam que isso tinha acontecido, quem elas culparam? Elas mesmas. É exatamente o que os neoliberais dizem que você deve fazer. Vivemos num mundo em que o modo de pensar neoliberal se tornou profundamente arraigado: essa ideia de que nós como indivíduos somos responsáveis por sermos pobres. Como dizer para as pessoas que não é culpa delas, que é um problema sistêmico? É como o capital funciona, especialmente na sua forma de livre mercado, e se você é pobre você é um produto deste sistema. A única maneira de solucionar isso é mudando o sistema, o que quer dizer que é preciso tornar-se anticapitalista.

Na sua avaliação, as manifestações que acontecem no Brasil apontam uma insatisfação da população brasileira aos efeitos concretos dessas contradições?

Eu acho que em vários lugares do mundo atualmente você vai encontrar um sentimento de profunda insatisfação. Há um grande descontentamento, mas acho que em nenhum desses lugares emergiu um movimento consolidado em termos de um entendimento de para onde esse descontentamento deve ser canalizado e o que deve ser feito para mudar esse quadro. Como resultado, o que você vê são essas erupções contínuas ao redor do mundo. Eu vejo que há um sentimento de descontentamento mundial que não está sintetizado, mas é interessante notar como ele entra em erupção e ninguém espera.

Ninguém esperava o que aconteceu no Brasil, foi uma surpresa. Ninguém esperava o que aconteceu na Praça Taksim, em Istambul, em Estocolmo, em Londres. O que se vê é um padrão global de expressões de descontentamento, que não localizaram o problema central, mas que são indicações de um descontentamento profundo com a maneira como o mundo caminha. Para mim, a melhor forma de se analisar isso é olhar quão bem o capital está indo. A maneira mais simples de ilustrar isso é olhando para a desigualdade de renda. Dados de vários países ao redor do mundo mostram que os 2% de maior renda entre a população saíram da crise muito bem e na verdade ganharam muito dinheiro com ela, enquanto o padrão de vida do resto encolheu.

Isso varia de um país para outro, mas dados da Oxfam apontam que os 100 maiores bilionários do mundo aumentaram sua riqueza em US$ 240 bilhões só em 2012. O número de bilionários aumentou dramaticamente nos últimos cinco anos, não só nos Estados Unidos: esse número dobrou na Índia nos últimos três anos, há muitos bilionários no Brasil, o mais rico do mundo é Carlos Slim, do México, há bilionários surgindo na Rússia, na China. Os dados mostram que o capital está indo extremamente bem.

É possível atender às reivindicações das ruas com uma reforma no capitalismo?

As opiniões variam na questão de o quanto podemos extrair das dificuldades atuais e ainda termos um capitalismo dinâmico. Minha análise é que será muito difícil desta vez. Certamente é possível acabar com alguns dos excessos do capitalismo neoliberal e certamente podemos ter um tipo de capitalismo mais socialmente justo, com redistribuição modesta de riqueza das classes abastadas para as classes médias e baixas. Há possibilidades de reforma do sistema e eu obviamente as apoiaria. Mas não acho que elas vão resolver o problema. Acho que a quantidade de riqueza que pode ser redistribuída é relativamente limitada. Em segundo lugar, falta poder político para fazê-lo. Temos uma situação agora em que essencialmente o poder político, a mídia, estão completamente capturados pelo grande capital, e a barreira política para fazer algo além de medidas pontuais é imensa. Temos uma oligarquia global que controla essencialmente toda a riqueza mundial, a mídia, os partidos políticos, o processo político.

Vivemos hoje no que eu chamaria de democracias totalitárias, e acho que é muito difícil quebrar isso porque a oligarquia não está interessada em abrir mão desse poder. Então há uma barreira política e há também uma barreira econômica, porque se você realmente começa a redistribuir riqueza no modo que precisaríamos para resolver esses problemas e ter educação, saúde e transporte público decente para todos, se realmente fôssemos fazer isso, teríamos que tirar muito do dinheiro que hoje vai para os projetos que interessam ao grande capital.

Por que você acha que vai ser difícil sair da crise atual?

O capital tem que crescer, e crescer a uma taxa composta, que tem uma curva de crescimento exponencial. Isso significa que cada vez mais somos empurrados a encontrar oportunidades de investimento lucrativas, mais e mais. Meu cálculo, de maneira grosseira, é que nos anos 1970, globalmente, era preciso achar oportunidades de investimento lucrativas para algo em torno de US$ 600 bilhões. Hoje é preciso encontrar canais lucrativos para investimentos na ordem de US$ 3 trilhões. Em 20 anos, falaremos em canais lucrativos de investimento para US$ 6 trilhões e assim por diante. Acho que manter o capital ativo tornou-se um sério problema, e se houver um crescimento zero, há uma crise. O crescimento composto se torna cada vez mais problemático. Temos tido esse problema desde os anos 1970 e é por isso que mais e mais capitalistas estão vivendo de renda ao invés de procurar oportunidades de investimento lucrativas produzindo coisas materiais, que já não é tão lucrativo. E se todo mundo investe no rentismo, ninguém produz nada, o que também é um problema.

Você fala da importância de uma imaginação pós-capitalista. Fale sobre a sua visão do que seria uma sociedade pós-capitalista.

É preciso haver uma revolução nas percepções, nas práticas, nas instituições. E essas revoluções levam muito tempo para se concretizarem. Quando você pensa na história do neoliberalismo, vê que foi uma transformação revolucionária que aconteceu num período de 30, 40 anos. Se foi possível mudar daquilo para isso, por que não podemos mudar do que vemos hoje para outra coisa? Mas temos que pensar não simplesmente em termos de fazermos barricadas, mudarmos governos. Temos que pensar nisso como um processo de 40 anos de mudança de mentalidades, concepções. Por exemplo, como as pessoas pensam a solidariedade social com seus vizinhos. Nos anos 1970 havia muito mais solidariedade social, e hoje o mundo se tornou muito mais individualista. Uma revolução é um processo, não um evento, estamos falando de transformações de longo prazo, e isso requer que as pessoas comecem a formular ideias sobre como mudar o mundo. Há muitos elementos que estão sendo praticados atualmente, o problema é que a maioria em pequena escala. Por exemplo, economias solidárias sendo praticadas ao redor do mundo, no Brasil, nos Estados Unidos. Há grupos tentando desenvolver modos de vida alternativos, ambientalistas, por exemplo, o movimento de recuperação de fábricas por trabalhadores na Argentina, há muitos movimentos desse tipo acontecendo, alguns em meio à crise. Na Grécia vemos o desenvolvimento de sistemas monetários alternativos e por aí vai. Há muitas coisas acontecendo atualmente que podem ser consideradas experimentos-piloto. Acho importante olhá-las e analisar quais são os elementos para se pensar um tipo diferente de sociedade no futuro.






quinta-feira, 13 de março de 2014

O campo revelado - entrevista com Carlos Armenio Khatounian




O campo revelado


Revista Página22 – 10.11.2011

Por Carolina Derivi



Seja na escala planetária, seja naquela da nossa vida cotidiana, velhos hábitos são difíceis de contestar. Depois de estabelecido, um modus operandi pode se transformar numa espécie de transe, em que qualquer variação da norma se assemelha a uma excentricidade. E é a nos acordar desse transe, quando a o assunto é a sustentabilidade no campo, que se dedica o professor da Esalq-USP, Carlos Armenio Khatounian.

Um dos maiores nomes da agroecologia no Brasil, Khatounian contesta a ideia de que só a agricultura empresarial é eficiente e bem-sucedida. Lembra que as propriedades menores e de trabalho familiar ainda são predominantes no mundo, com grande capacidade de adaptação aos soluços da economia e ao aproveitamento racional dos recursos naturais.

Mais que espaço e oportunidade, há necessidade de uma agricultura de base ecológica, especialmente em tempos de superpopulação, em que a segurança alimentar ascende ao topo dos problemas globais. No entanto, diz o professor, nenhuma inovação no âmbito das lavouras dará conta do recado se a humanidade não reformular, urgentemente, os padrões de sua própria dieta.



Existe um receituário de agricultura sustentável capaz de alimentar o mundo todo?

Vou começar numa perspectiva histórica mais longa, para ser mais preciso. A nossa aventura enquanto espécie biológica começa há 150 mil anos atrás. Nessa trajetória, nós fomos sobretudo caçadores coletores. Só passamos a ser agricultores, em alguns lugares do mundo, entre 10 mil e 12 mil anos atrás. Então, a agricultura é uma maneira relativamente recente de nos relacionarmos com o meio ambiente.

Os vestígios da agricultura mais antiga revelam um sistema de derruba-e-queima. Muito antes de começarem as civilizações antigas, que desenvolveram a escrita, fizemos 5 mil anos pelo menos de derruba-e-queima. E foi só quando as áreas disponíveis nessas regiões tinham sido completamente degradadas é que nós passamos para a beira do rio. Para uma civilização primitiva, era praticamente impossível enfrentar a força de um rio, não tinha controle das cheias, que podiam levar todo um ano de trabalho.

Acontece que, nessas regiões onde surgiu essa agricultura hidráulica, a floresta não se recompunha. Então a agricultura ia deixando atrás de si um deserto. E, quando chegou o momento que não tinha mais área para fazer derruba-e-queima, eles não tiveram outra saída que não fosse descer para a beira dos rios. Então, o início da História já é marcado por uma crise ambiental derivada da agricultura, uma crise de desmatamento e desertificação.

O seu ponto é que a agricultura nasceu acoplada à degradação ambiental e permanecerá assim?

Então, o “permanecerá assim” é que é a pergunta. Agricultura e degradação ambiental caminharam juntas na História, inclusive nos países que hoje nós chamamos de desenvolvidos. É importante falar disso, porque existe uma ideia, mais ou menos disseminada, de que a agricultura que nós fazíamos 100 anos atrás era sustentável. Mas isso não é verdadeiro. Na verdade, a agricultura que nós estamos fazendo desde 10 mil anos é uma agricultura insustentável.

Vou colocar a pergunta de outra maneira: é verdade que só a grande escala e a monocultura são eficientes o bastante para alimentar um cenário de 9 bilhões de pessoas em 2050?

Essa pergunta é bem mais fácil de responder. Se você olhar a história da agricultura, o que predomina é a agricultura familiar. No livro História das Agriculturas no Mundo (de Mazoyer e Laurence Roudart), o professor da Universidade de Paris, Marcel Mazoyer, quantificou o número de agricultores do começo ao fim dos Novecentos. Em 100 anos, o número de agricultores na Europa foi reduzido a 10%. De cada 100 propriedades, apenas 10 restaram no ano 2000. No entanto, apesar de ter havido uma diminuição no número de propriedades, essa agricultura é essencialmente familiar. Nos Estados Unidos e no Brasil também.

Quando a gente fala de Paraná, você pensa em agricultura familiar predominante. Mas, quando se fala em Mato Grosso, você pensa que é agricultura empresarial. Eu achei que isso seria parte da nossa conversa e levantei os dados do Censo. No Paraná, coisa de 75% a 80% das propriedades são tocadas com mão de obra familiar. E no Mato Grosso? Quanto você acha que seria? Dá um chute.

Quarenta por cento?

Vou te dar os dados do Censo: 75%. Isso porque as grandes unidades, com regime de mão de obra capitalista, são altamente instáveis. Nesse livro que eu menciono, o autor se propõe a seguinte pergunta: por que a agricultura europeia neste último século diminuiu em número, mas ao mesmo tempo continuou essencialmente familiar no uso da força de trabalho?

A resposta é relativamente simples. A agricultura passa por altos e baixos, como qualquer setor econômico, mas tem ciclos de preços mais ou menos previsíveis. Imagine que estamos falando de café. O café, hoje, está numa fase de preço alto, e nessa fase você consegue manter uma relação trabalhista de assalariamento sem problemas. Mas nós podemos voltar daqui a dois anos a um preço de café, não na faixa dos R$ 500, mas na faixa dos R$ 250, que é um valor histórico realista.

Quando bater nesses R$ 250, digamos que vai sobrar um limite de R$ 50 por saca para a família sobreviver. Ela não vai ganhar muito nesse ano, mas vai manter o negócio, enquanto aquele sistema empresarial não tem como comprimir despesas. Não tem como dizer para o empregado que ele não vai receber décimo terceiro salário, porque o café baixou de preço. Na propriedade familiar, se o pessoal conseguir manter o negócio e pagar as despesas, mesmo que não sobre nada, está no positivo.

Por isso os empreendimentos de agricultura familiar são mais numerosos?

Por isso a agricultura familiar é uma atividade que reúne muito mais sustentabilidade do que a empresarial.

Inclusive econômica.

Sim. Esse é um ponto pacífico. A agricultura empresarial depende de preços mais elevados para se manter viva. E não é uma observação para um único país. É a observação do conjunto dos países hoje. Agora, isso não quer dizer que qualquer esquema de agricultura familiar seja melhor que qualquer esquema de agricultura empresarial. O modelo familiar num padrão tecnológico muito baixo vai ter mais dificuldade.

Olhando a história da Europa, podemos refletir sobre a nossa. Nove em cada dez agricultores desapareceram. Esses foram os menos eficientes nessa estrutura de agricultura familiar. Menos eficientes porque ocuparam áreas marginais, com menor potencial de produção, ou porque não conseguiam uma reserva para aplicar na tecnologia. Enfim, as razões mais diversas. E esses acabam sendo assimilados pelos mais eficientes. Isso remete para uma grande questão, nas políticas públicas do Brasil. A gente deve estimular a agricultura familiar a se tornar mais eficiente enquanto tal, ou a gente deve estimular a agricultura empresarial?

O senhor tem essa resposta?

Não sou eu que tenho a resposta, é a História que dá. A História diz assim: é mais confiável aplicar na agricultura familiar.

Porque é mais adaptável, mais resiliente?

Sim. O Oeste do Paraná é uma agricultura modernizada e intensiva. Se você for para aquela região, você vai olhar e pensar: “Isso não é agricultura familiar”. Não é aquilo que você imagina, o sujeito passando fome e pedindo ajuda do governo. É uma agricultura familiar mais capitalizada, mais tecnificada, capaz de se desenvolver e passar por crises que a agricultura empresarial não consegue.

A origem da confusão que leva à pergunta que você fez – o que é mais sustentável, a agricultura empresarial ou a agricultura familiar? – é que normalmente nós associamos modernização ao modelo empresarial e o modelo familiar a um processo tecnológico aparentemente mais rudimentar. Mas os dados do Censo não embasam essa perspectiva. O Censo mostra que o grosso da agricultura brasileira é familiar, inclusive nos estados que a gente imagina que são da agricultura empresarial.

Então, quando se fala em agricultura sustentável, a questão é menos a escala e mais a técnica aplicada?

São as duas coisas. Essa pergunta poderia ser desmembrada assim: é possível fazer agricultura ambientalmente melhor em grande escala, ou isso tem de ser na escala dos pequenos? De novo, eu vou responder não o que eu acho, mas o que o mundo me apresenta. Se você for olhar agricultura de base ecológica, você vai encontrar desde propriedades medidas em vários milhares de hectares até propriedades medidas em poucos hectares.

A maior iniciativa de produção de açúcar orgânico no mundo é aqui no estado de São Paulo, em Sertãozinho, a Usina São Francisco (da empresa Native). Se não me engano, tem 13 mil hectares de cana orgânica. No Pará, a Agropalma tem 4 mil e poucos hectares de dendê orgânico. E assim há outros exemplos. Não são muitos, porque as propriedades destes tamanhos também são menos numerosas. Mas esses exemplos mostram que é possível fazer agricultura tecnologicamente melhor, no sentido do meio ambiente, em escala ampliada. Não tem nenhuma incompatibilidade.

Agora, para cada cultura existem os problemas específicos. Para algumas culturas nós dispomos de um estoque tecnológico que permite fazer isso bem. Pra outras, o estoque tecnológico não é suficiente para ampliação de escala.

Tem outra coisa: na hora em que você amplia a escala, surgem problemas de administração. Uma área agrícola nunca é homogênea. Imagine um agricultor que tem uma terra mais seca em cima do morro, depois vem uma mais ou menos úmida, depois outra, abaixo, mais sombreada. Um agricultor pequeno consegue aplicar em cada pedaço desse terreno uma cultura mais adequada. Na parte mais sombreada e mais úmida, ele poderia plantar inhame. Na parte intermediária, feijão, milho. E, na parte mais seca, onde bate mais sol, talvez pudesse fazer um reflorestamento com eucalipto.

Em um sítio de 5 ou 10 hectares é lógico fazer isso. O agricultor tem condição de administrar e tem mais rendimento se fizer isso. Mas, se nós estivermos dentro de uma propriedade de 5 mil hectares de uma produtora de polpa de celulose, aí é impossível para ela, dada a sua dimensão, fazer essa administração de microssítios. Essa empresa vai plantar eucalipto em tudo, por uma necessidade de simplificação administrativa. Por conta disso, as propriedades familiares que trabalham em menor escala têm mais possibilidade administrativa de fazer um uso mais eficiente dos recursos naturais. Eu gostaria que houvesse centenas de usinas como a São Francisco no Brasil, em vez de uma só. Mas é mais fácil fazer isso numa escala de agricultura familiar.

Falta conhecimento, pesquisa?

A pesquisa agrícola organizada é um fato de 100 anos na história da humanidade. Os conhecimentos para utilização de adubos químicos estavam bem formatados em meados dos Oitocentos, mas até o fim daquele século praticamente não foram utilizados. Isso é um fenômeno do século XX. E, nesses 100 anos, o grosso da pesquisa agrícola foi direcionado aos insumos químicos.

A pesquisa de foco mais biológico tem uns 30 anos. Quando eu era estudante desta escola aqui (Esalq-USP), se você falasse de controle biológico de pragas, isso era filosofia. Um professor chegou a escrever isso numa prova minha, “o senhor é um filósofo”. E hoje não existe praticamente nenhuma cultura no Brasil sem alguma técnica de controle biológico de pragas.

Mas isso foi fruto de investigação. A cada dia estão surgindo coisas novas. Hoje você encontra insumos para uma série de coisas. Hoje tem um fungo, chamado “tricodermo”, que é comercializado para controlar doenças de raiz de planta, em lugar de aplicar um fungicida. Essas tecnologias vêm aumentando muito, mas elas ainda são muito poucas em face do tamanho do desafio.

Parece que o senhor está dizendo que, a depender de empenho em P&D, no futuro seria possível produzir todos os alimentos livres de agrotóxicos…

Sim e não. Se você for comparar hoje o rendimento quilos-por-hectare de culturas orgânicas e tradicionais, é quase o mesmo. Em alguns casos colhe-se mais, em outros um pouco menos. Em um levantamento feito nos Estados Unidos, uns cinco anos atrás, mostrou-se que a diferença era 5% a menos para os cultivos orgâni- cos, em média. O que é surpreendente, dada a falta de investigação.

Agora vamos voltar à questão de alimentos versus população. A FAO faz previsões de que nós vamos chegar em meados do século ao redor de 9 bilhões de habitantes. Nós já passamos dos 7. Fazendo as contas, na virada dos anos 2030 para os 2040, seria necessário dobrar a produção de grãos para alimentar essa população. Acontece que nós não temos recursos – nem de solo, nem de água, nem de energia – para duplicar a produção.

Simplesmente esses recursos não existem. Só tem um continente com grande possibilidade de expansão, que é a América do Sul, sobretudo no Brasil. Na Europa não tem, na América do Norte não tem, e na Ásia tem muito pouco. Quase toda a África, ao Sul do Saara, é semiárida. Para fazer produção nessas regiões, seria preciso irrigar. Podemos fazer um poço profundo e retirar água dali, ideia levada a cabo na China, na Índia e nos Estados Unidos, que são os três países que mais irrigam em regiões de semiárido.

Acontece o seguinte: a água que esses países estão extraindo do solo acumulou-se em tempos geológico passados. No tempo presente, chove pouco, então os aquíferos não são alimentados. O resultado é que a água é como um poço de petróleo. Vai-se esgotar.

E isso já está acontecendo nesses três países. Não tem como. E a agricultura, à medida que se tecnifica, consome mais e mais energia do petróleo. E, se você tem hoje qualquer flutuação no preço do petróleo, também há uma flutuação imediata nos preços dos alimentos. E os fertilizantes nitrogenados são totalmente dependentes do petróleo.

Fora todo o consumo energético com transporte, armazenamento…

Fora tudo isso. Nós podemos, num esforço, ampliar momentaneamente a produção, mas não temos como fazer esse salto enorme sustentavelmente. Pra piorar, estamos falando de incorporação de áreas agrícolas, mas o mundo também perde áreas agricultáveis anualmente. Se não me falha a memória, é da ordem de 5 milhões de hectares por ano. Não apenas temos capacidade limitada de avançar, mas estamos testemunhando a perda das áreas que antes eram utilizadas.

E por quê?

Por causa da sanilização e da desertificação.

Como consequência da agricultura convencional?

Sim.

Então, quais são as opções de que o mundo dispõe? Seria preciso rever o consumo de alimentos de origem animal, que puxa o consumo de água e grãos?

Então, este é o outro ponto. A Dinamarca consumia, na virada do milênio, na ordem de 1.400, 1.500 quilos de grãos por habitante ao ano. Isso significa quase 3 quilos de grão por dia. Não tem jeito de uma pessoa comer isso. Aqui no Brasil, a gente come cerca de 150 gramas de arroz por dia, comendo bastante. Essa produção está embutida no consumo animal.

Os dados médios da produção animal dos Estados Unidos – semelhante ao Brasil – mostram que para 1 quilo de frango são necessários mais ou menos 11 quilos de grãos. E, para 1 quilo de porco, são 22 quilos de grãos. O pessoal da indústria fala que gasta, em média, 2 quilos de ração para fazer 1 quilo de frango. Mas isso é o animal vivo. Você não come pena, bico, osso, tripa.

Outra coisa: a ração tem 12% de umidade. E a carne tem 80%. A comparação correta, então, seria se fosse eliminada a água. Quando você elimina a água, 1 quilo de matéria seca da parte comestível do frango custa 11 quilos de ração. É um custo absurdamente elevado.

Com esse padrão alimentar não dá para saciar o mundo?

De jeito nenhum. Nem com transgênico, nem com convencional, nem com orgânico. O resultado é que, queiramos ou não, nós seremos obrigados a mudar a nossa dieta.

Por isso o senhor respondeu “sim e não”.

Exato. A primeira parte era sim, é possível manter um nível bom de produtividade com a agricultura de base ecológica. Mas não tem jeito, nós vamos ter que mudar as nossas dietas. A pergunta que se pode colocar é quando isso acontecerá e se a humanidade vai enfrentar isso com guerra ou de uma forma discutida, negociada.

Uma guerra da carne?

Não é bem isso. Imagine que você está num churrasco. Tem lá uma saladinha de alface, tem vinagrete, tem pão, e alguém tirou um pedaço de picanha da churrasqueira e começou a fatiar. Para onde vai o pessoal? Para a picanha. Por que é que nós gostamos mais de carne? Se você olhar os problemas de saúde humana que nós enfrentamos hoje, estão bem ligados ao hábito alimentar. O consenso dos nutricionistas é o seguinte: estamos comendo muito produto de origem animal, muita gordura, muito açúcar e muito sal. Porque nós comemos mais essas coisas? A resposta é: porque é mais gostoso. Porque, evolutivamente, a gente tinha que desenvolver um pagamento fisiológico para uma necessidade da espécie.

Um pé de mandioca não corre. Um pé de tomate também não corre. Mas bicho corre. Para nós, era importante consumir carne, em determinado momento da nossa história evolutiva, porque a carne é um alimento mais completo do ponto de vista protéico. Mas para ter carne era preciso se esforçar muito mais. Então o pagamento fisiológico era um prazer maior. A mesma coisa vale para a gordura, para o sal e para o açúcar. Era muito menos disponível. Até 50 anos atrás, quase ninguém enchia a barriga de carne ou se empanturrava de doce.

Agora, imagine que você está em qualquer país democrático e um governante, entendendo os problemas que são advindos do consumo crescente de carne, decide impor restrições ao consumo, por impostos. Quando ele se elege de novo? Nunca. Em nenhum país democrático essa proposta passaria. Os chineses, há 40 anos, consumiam quatro quilos de produtos de origem animal ao ano por cabeça. E hoje estão consumindo na ordem de 75, de 80 quilos. Quem vai falar para os chineses que não devem consumir carne? Um inglês, que já consome quase 150 quilos? Nenhum país, ou extrato social, tem reserva moral para impedir os outros.

Não tem saída para esse impasse?

Tem um grupo na Inglaterra que chegou à conclusão de que a única maneira de resolver esse problema é com o conhecimento do problema, com a redução voluntária do consumo de carne. É o Eat Less Meat.

Se chegar num momento em que determinado povo não consegue ter acesso a carne e outros continuam tendo acesso a quantidades maiores, você pode esperar que isso estoure na forma de conflito. Esse conflito pode ser, por exemplo, por causa de água. Para produzir grãos, para então converter em carne, você precisa de muita água. Em média, para 1 quilo de grão, você precisa entre 500 e mil litros de água. Porque as plantas também transpiram, não fazem fotossíntese sem transpiração.

Tudo isso não é só catástrofe. Eu acho que tem luz no fim do túnel, e bastante luz. Porque hoje a percepção é a seguinte: a mesma dieta que faz bem para o meio ambiente é a dieta que faz bem para a nossa saúde. Cereais integrais, um pouco de leguminosas, hortaliças e frutas, quantidades moderadas de produtos de origem animal, e quantidades limitadas de açúcar e de álcool. Essa dieta é perfeitamente compatível com uma situação de produção orgânica. Então, o desafio que se coloca é o seguinte: nós não resolvemos a segurança alimentar sem mudar os hábitos. E, ao resolver a questão alimentar, nós resolveremos também as questões de saúde.

Redirecionar a nossa dieta para produtos locais também faz parte dessa solução?

Claro. Vamos imaginar que a gente vai ficar nessa dieta recomendada pelos nutricionistas. Se o seu cereal integral for aveia produzida no Canadá e trigo produzido na Argentina, se as sua leguminosas são grão-de-bico produzido no México e lentilha no Chile, se as suas frutas são peras importadas de Portugal… Bom, você já viu onde eu estou querendo chegar. Pode até ser orgânico, mas o gasto energético de transporte com isso é absurdo.

Tem toda a poluição da siderurgia para fazer esses meios de transporte. E comida humana é essencialmente perecível. Algun cereais, menos. Mas para frutas e hortaliças, a escala é de dias, às vezes nem isso. Exige refrigeração, fungicidas e bactericidas para que esse transporte de longa distância se realize. Ao passo que, se você faz as coisas em esquema local, tudo isso se resolve com mais facilidade. Se você comer hortaliças da região, frutas da época, isso vai mudando. Esse é o padrão da cultura orgânica de base local.

Mas isso envolve também o que se chama de “alimentos da terra”, propícios para a realidade ecológica de cada local?

Sim, são aqueles que naturalmente crescem melhor em determinado local. Uma cultura própria da região pede menos adubo e pode sair sem nenhum veneno. Porque essa cultura está adaptada àquela condição. Para produzir 20 toneladas de mandioca aqui no Brasil, o que a gente precisa? Nada. Precisa de trabalho. Mas, de insumos externos, nada. Então, para o ajuste da composição da dieta ao que é localmente possível de produzir, este é um passo fundamental. Mas isso só acontece quando a gente gosta de ser como a gente é.

No artigo “Breve história ambiental e sociocultural da alimentação no Brasil”, o senhor argumenta que a maior perda com a inserção de novas variedades agrícolas por aqui foi cultural…

É. E o lugar onde essa perda é mais forte no Brasil é a cidade de São Paulo. Eu sou paulistano. A cidade de São Paulo é o lugar em que os imigrantes recentes fizeram todo o esforço para negar as influências tropicais, a influência negra e nordestina, que de alguma forma era identificada como cultural e socialmente inferior.

Quando eu era criança, eu ia para o Nordeste e sentia falta de pão. Porque sou de origem armênia e lá o cereal de base é o trigo, tudo se come com pão. Mas no Nordeste o pessoal comia tapioca, comia inhame com manteiga, comia cuscuz de milho, bolo de mandioca. Se nós paulistas quisermos uma dieta tropical mais adaptada, teríamos que olhar mais para o vizinho.

Mas, hoje, se você for a uma capital nordestina qualquer, o pessoal come pão com manteiga no café da manhã. O trigo foi-se introduzindo fortemente. E continua avançando. O Brasil é o maior importador de trigo. O nosso consumo é da ordem de 8 milhões de toneladas, e só produzimos entre 2 milhões e 3 milhões.

Se a globalização é irreversível, então esse nosso apetite por alimentos do mundo todo que a gente descobriu e passou a gostar não é também irreversível?

Eu acho que é irreversível. Mas a questão essencial é quantitativa. Quando eu como determinados produtos, eu me remeto a experiências minhas de vida. Quando digo que a gente precisa de uma readaptação ao biorregionalismo, não quero dizer que a gente tem de negar a diversidade das nossas origens. Mas que a gente tem de colocar essas necessidades culturais dentro da perspectiva da sustentabilidade.

A interação entre povos e culturas é desejável e o comércio é uma forma importante de interagir. Então, fazer uma macarronada uma vez a cada mês é uma coisa. Mas comer uma macarronada três vezes por semana é outra coisa. E comer todos os dias de manhã o pão de trigo que a gente tem que trazer de fora também.

Mas isso é outra história. Se, nesta conversa, você conseguir quebrar a mentira, o mito de que a eficiência está ligada à agricultura empresarial e de que a agricultura de sucesso no mundo é a empresarial, acho que já está de bom tamanho.