terça-feira, 15 de abril de 2008

SAFIYA – A história da nigeriana que sensibilizou o mundo

Livro: "EU, SAFIYA – A história da nigeriana que sensibilizou o mundo"

A jornalista italiana Raffaele Masto proporcionou conhecermos a história de vida de Safiya Hussaini Tungar Tudu, uma mulher africana que foi condenada a pena de morte por apedrejamento. Mas, salva por uma ampla mobilização mundial patrocinada por entidades de direitos humanos e pela imprensa ocidental – principalmente da Europa – que deu intensa cobertura ao caso, mobilizando a opinião pública que exerceu pressão pela absolvição.

Safiya foi condenada, recorreu da sentença e foi absolvida. A sua absolvição se deu devido à repercussão do caso no mundo todo. O que poderia ter sido apenas um caso isolado, de uma pessoa pobre, que vive no interior de um país africano se transformou num debate internacional sobre os direitos humanos, justiça, cultura, religião, condição da mulher no oriente, política e estado laico.

Nesse debate se encontram e se chocam o ocidente e o oriente. Pois, no centro da discussão está o mundo muçulmano, a religião islâmica, a relação entre sociedade, estado e religião. Está a gênese da cultura, os mecanismos que operam, a sua reprodução social e conseqüências.

A Nigéria é um país africano, habitado por diversos povos, que tem hábitos, tradições e visões de sociedade que divergem e que tem suas disputas. O país foi colonizado pela Inglaterra e somente conseguiu a sua libertação nos anos 60. Busca-se naquele país equacionar tradições regionais e religiosas, com desenvolvimento econômico e social e a organização de um estado moderno. Integrar-se ao mundo conservando as tradições religiosas e resolver seus conflitos internos. É o caso da justiça da Nigéria atual que tem uma base legal que tenta contemplar as tradições regionais, a religião islâmica e a legislação construída pelo poder estatal central.

A mulher Safiya, quando criança, era cheia de sonhos e apesar das dificuldades normais dos habitantes da região relata que foi uma menininha feliz. Mas, na medida em que foi crescendo conheceu a dura condição das mulheres na cultura de seu país. Com apenas 13 anos, sem nem ainda ter tido a primeira menstruação, seu pai aceitou o convite de casamento de um pretendente que ela não conhecia. Ela conta que na primeira vez que o viu estimou ter ele 50 anos. Ela o repugnou e não queria casar, não queria sair da casa de seus pais. Mas a decisão não estava com ela e sim com seu pai. Na cultura da sua sociedade as mulheres não opinam e muito menos decidem. Elas andam na rua atrás dos homens, porque são consideradas inferiores. E, se for do desejo do homem, elas devem conviver com outras mulheres sob o mesmo teto, ter o mesmo marido, pois é dado aos homens o direito de ter várias mulheres e todas viverem na mesma casa. Ele decide para qual delas dedica mais atenção. As demais não podem reclamar, devem aceitar, devem calar. Devem ser dedicadas ao marido, aos filhos e a casa.

Safiya, como as demais mulheres de seu país, quando criança teve seu clitóris extirpado. Na cultura da sua sociedade, isso é uma prática comum, porque as mulheres não podem sentir prazer sexual, isso as tornaria, segundo os homens de lá, mulheres não confiáveis, poderiam assim ceder ao desejo. Então se elimina toda a possibilidade do prazer sexual pela eliminação do clitóris. Devido essa prática muitas mulheres acabam morrendo.

Safiya teve quatro maridos e sete filhos. Dois filhos morreram e três ficaram com o pai. Duas meninas ficaram com ela, das quais uma chama-se Adama. Esta menina está na origem de sua condenação a morte, porque foi fruto de uma relação com um homem o qual ela não estava casada. Safiya foi denunciada por seu próprio irmão, que pertencia a um grupo de extremistas islâmicos. Um irmão que ela viu crescer, que ela ajudou a cuidar, que ela carregou no colo, ou melhor, carregou nas costas como é o costume local. Brincou com ele, lhe deu carinho e o amava e foi justamente ele por seu fanatismo religioso que a denunciou a justiça islâmica. Ela ainda teve dois filhos mortos em um curto período por uma doença típica dos países pobres - a catapora. Ela também foi repudiada por três dos seus quatros maridos. Repudiar a mulher é uma prerrogativa dos homens e é vergonhoso e humilhante para uma mulher islâmica.

Poderia a vida de Safiya ter sido apenas mais uma, junto a milhares de mulheres pobres, que sofrem caladas, vivem sem prazer e caminham sempre atrás dos homens pelas ruas de tantas localidades na Nigéria. Quis a vida que sua trajetória fosse diferente das demais. Nesta sua história se juntam fraquezas humanas, tragédias anunciadas, mas também belezas humanas e solidariedade que se colocam a serviço da liberdade e da justiça.

A condenação sofrida por Safiya foi por uma acusação de adultério. Segundo a história, um primo aproximou-se, lhe cercou e a seduziu, lhe prometendo casamento. Ela cedeu, eles se encontraram algumas vezes e ela engravidou. Ele então se recusou a casar com ela. Se ele a aceitasse, mesmo já tendo outra mulher, poderia ter a salvado da condenação, mas ele optou conscientemente deixá-la ser condenada a morte. Safiya não estava casada, tinha sido repudiada já há dois anos. Mas de acordo com a SHARIA, a lei islâmica, ter relações fora do casamento é crime de adultério e a pena pra isso é a morte. A morte por apedrejamento. A pessoa sendo mulher é enterrada até o peito e sendo homem deve ser enterrado até a cintura, com a cabeça coberta com um pano. A pessoa deve ser apedrejada com pedras de um tamanho que não a matem imediatamente, mas que a machuquem e que a façam sofrer antes de morrer, pra que a pessoa morra aos poucos, agonizando.

Após saber de sua sentença de morte Safiya ficou perdida e fugiu, vagou com sua filha bebê nas costas por alguns dias nas savanas africanas, com fome e sede. Foi convencida por um tio a voltar pra casa e lutar pra rever sua condenação. Ela retornou pra casa de seus pais e aí começou uma mudança drástica, não apenas na sua vida, mas na vida de sua família, na vida de sua aldeia. Seu pai, um chefe religioso da tradição islâmica já em avançada idade e a sua mãe a acolheram, lhe deram apoio, lhe ofereceram atenção, solidariedade e carinho. Colocaram-se ao seu lado e se dispuseram a lutar com ela para recorrer a outras instâncias da justiça. Safiya, diante da possibilidade iminente de morrer, pode sentir a mudança de atitude de sua família, unida e solidária em torno de sua salvação. Seu pai, antes distante e apegado a religião, se mostra mais próximo, mais carinhoso. Durante o processo todo ela recebe a solidariedade de vizinhas, de parentes e de pessoas distantes. Inclusive, surpreendentemente vê mulheres da aldeia que passaram a vida toda caladas romperem o silêncio e virem lhe visitar e demonstrar solidariedade, enfrentando seus homens, seus medos e suas tradições.

Tudo mudou na vida de Safiya quando um advogado, que se interessou pelo seu caso e traçou uma estratégia de aliar na sua defesa argumentos do livro sagrado dos muçulmanos, na leis do país, e principalmente uma forte e ampla articulação internacional de divulgação do caso, reunindo apoios em todas as partes do mundo, principalmente em movimentos e ONGs Européias de direitos humanos, que ao se interressarem pelo caso, proporcionaram divulgação e aporte de estrutura para ajudar no caso.

Safiya e sua aldeia foram notícias no mundo todo. Emissoras de televisão como a BBC de Londres e outras mídias acompanharam e deram notoriedade ao caso, isso contribuiu e foi decisivo para ativar a opinião pública internacional, que pediram a absolvição de Safiya ao governo e a justiça da Nigéria.

Depois de meses de processo o tribunal que julgou o caso inocentou Safiya. Essa absolvição foi mais que simplesmente absolver uma mulher. Criou-se uma referência política e uma jurisprudência para casos semelhantes posteriores. Foi uma vitória jurídica, mas foi sobretudo uma vitória política de um setor do país que propõe mudanças no país e quer separar a religião do estado. Foi uma vitória da mobilização e da solidariedade internacional, da comunicação social a serviço da liberdade humana e da justiça. Foi uma vitória das mulheres do mundo oriental que sofrem, são violentadas, são discriminadas e caladas por uma cultura autoritária que não separa tradições, religião, política, leis e estado. Foi uma vitória de todas as mulheres do mundo que, em casos como esses avançam na perspectiva da igualdade de direitos. Disso tudo, se tira muitos exemplos, mas pode-se concluir que às vezes diante das tragédias e da dor se restabelece a solidariedade e o carinho, e, que nas contradições as sociedades têm muitas vezes a chance de avançar. A vida e a liberdade de Safiya pela absolvição - uma mulher pobre e simples de uma aldeia africana - representou nesse episódio uma vitória de toda a humanidade. De uma sociedade de direitos e da democracia. Que na sociedade do futuro, onde quer que seja que os direitos humanos sejam violados, isso seja um problema de todos, em qualquer parte do mundo, e não apenas de quem sofre individualmente.

Demilson Fortes
Chapecó SC