domingo, 20 de dezembro de 2009

Rio de Janeiro
















O RIO DE JANEIRO CONTINUA LINDO

Texto de Demilson Figueiró Fortes


Encontrar algo interessante na televisão, muitas vezes, se torna uma tarefa difícil, mas em algumas oportunidades nos surpreendemos com algo que nos atrai, seja em que programa for naquelas trocas de canais com o controle remoto. Foi isto que aconteceu comigo no sábado, dia 28 de novembro de 2009 quando liguei a TV e passando por alguns canais buscando algo que acharia difícil encontrar parei por alguns minutos por curiosidade para ver o quadro que chamado de vou de táxi, do programa caldeirão do apresentador Luciano Huck, da rede globo. De três passageiros do taxi, uma chamava-se Raimunda do Carmo, e é uma história emblemática das mulheres pobres de nosso país. Raimunda é pobre, negra, moradora do morro Dona Marta, jovem de 31 anos, tem três filhos, a mais velha, Isabela com 16 anos, que ela teve aos 15 anos de idade. Ela é mãe de Isac, de onze anos e de Gabriel, de nove anos. Mulher lutadora, ela trabalha em um pequeno salão de beleza que se chama safira, que funciona na sala de sua própria casa, em que atende as pessoas ali e também a domicilio, faz tinturas, escova, alisamento, pés e mãos da clientela. A casa é um pequeníssimo barraco, que a partir daquele momento foi escolhido por Luciano para ser reformado no quadro lar doce lar. Raimunda batalha para ganhar a vida todos os dias, e fatura R$ 300,00 por mês, e é com este valor que sustenta a sua família, da qual ela é a chefe, pois não tem marido. Ela conta que perdeu três primos e viu outros conhecidos morreram, no conflito entre traficantes e policiais. Contou que o morro já foi diferente há mais de 20 anos atrás, que os policiais tinham mais respeito pela comunidade e os próprios traficantes os temiam. Com o tempo virou o que vimos na TV com freqüência, os traficantes dominando o território, subordinando uma comunidade inteira à sua vontade, e com freqüentes enfrentamentos, onde os civis sem envolvimento com o crime, infelizmente indefesos, sempre são de alguma forma atingidos. Segundo ela, um dos fatores que levou a isso foi a corrupção policial e a falta de oportunidades par os jovens que vivem no morro. Raimunda nasceu e cresceu no morro sem se envolver com o crime. Sua mãe, dona Maria do Carmo, nasceu há 64 anos e ali vive há mais de 40 anos. A família toda soma 50 integrantes.

A história de Raimunda do Carmo emociona e nos instiga a refletir. Por todas as suas características, uma delas é que se assemelha a de milhares de mulheres que são responsáveis pelo sustento e condução de suas famílias, sem homens como provedores. Neste caso, o seu pai, seu Raimundo é uma referência moral, mas ela é que educa, cuida e é provedora financeira de seus filhos. No Brasil, os números do censo do IBGE indicam que cada vez mais mulheres assumem a condução de suas famílias ou até mesmo são formadas, exclusivamente de mulheres. Mas, Raimunda é mais, é do morro, sobrevivente, lutadora, mãe e pai ao mesmo tempo, dessas que sobem e descem as escadarias do morro, todos os dias. Apesar da vida de luta há sorrisos nos rostos, educação e muita dignidade. Nos choca pela realidade dura, em que vivem os moradores dos morros, que é a mesma em várias regiões do Brasil, este país de imensa desigualdade social, características que insiste em marcar o país. Raimunda nasceu e cresceu no Rio, mas nunca tinha subido no Corcovado, fato que evidencia que a cidade pode oferece muitas coisas, mas há um fosso entre quem tem acesso e outros que quase sempre ficam do lado de fora.

A coisa mais interessante quando temos a oportunidade de penetrar na vida dos moradores de comunidades como esta é poder humanizá-los e ter um olhar mais próximo (individual e coletivo), fora do conflito polícia versus bandidos. E o que chama atenção é aquilo que já sabemos, mas sempre temos que ser lembrados: que apesar de existirem grupos criminosos ligados ao tráfico de drogas, a maioria das pessoas que moram nas comunidades é formada por pessoas trabalhadoras simples, mas com muita dignidade e com vontade enorme de superar seus problemas, ter paz e ser feliz com os seus familiares e amigos. A família de Raimunda, começando por ela própria, que viveu em um ambiente de conflitos, de crime organizado, de medo e corrupção, mas não se renderam a isso, não se entregaram. Por cima do muro da violência, onde tende a predominar a desesperança, conseguiram o que para os que estão de fora às vezes parece o impossível: ver outras possibilidades, sem drogas e sem violência. Apesar do crime, da polícia corrupta, do Estado ausente e irresponsável, das elites opulentas e um país de enormes desigualdades sociais, milhares de pessoas se mantém dignas, sonhadoras, e surpreendentemente sorridentes. A família de Raimunda sobreviveu ao crime, como família agregada e solidária, que educaram seus filhos para não irem servir ao tráfico.

Na comunidade Santa Marta fica o morro Dona Marta, que abriga em torno de cinco mil habitantes e que para felicidade geral da nação, está pacificado. Depois de muitos anos de domínio de traficantes, agora há pouco tempo, com uma intervenção governamental, que une os governos, municipal, do estado e, o governo federal (obras do PAC), a comunidade está em paz, sem tiroteios e sem medo. Relatam que a vida por lá é outra, agora andam tranqüilos e se sentem novamente sujeitos em seu ambiente. Esta ação é parte de um plano estratégico de ir limpando crime ligado tráfico as comunidades e ir levando serviços do Estado como educação, saúde e lazer, uma polícia comunitária integrada à comunidade. No morro Dona Marta se vê quadras de esportes e casa de música para os jovens ocuparem seu tempo e terem acesso a esporte e cultura, e, além disso, existem outros projetos em andamento, que Inclui programa de melhoria das moradias. A secretaria de urbanismo da cidade do Rio de Janeiro está fazendo um trabalho de regularização dos terrenos no morro. A comunidade Dona Marta é pop, já recebeu Michael Jackson e Madona, coisa que não é pra qualquer lugar. Um lugar onde as ruas são escadarias; são vielas que se abrem e se desdobram em outras, o que desafia pensá-lo urbanisticamente, pois sempre é mais fácil pensar em quadrados do que e mosaicos.

Quando vimos o depoimento dos moradores da comunidade Dona Marta de que a vida mudou pra melhor nos últimos tempos, sem traficantes e com presença do Estado, chegamos a conclusão óbvia - até para crianças um pouco bem informadas - de que o crime avança e se enraíza por falta de ações do Estado e de uma sociedade omissa e desigual. É até indignante quando ouvimos os relatos e nos deparamos com o óbvio: se tivesse mais amparo para as comunidades carentes, mais investimentos sociais nessas áreas, uma polícia mais preparada e ética, com absoluta certeza, não teríamos tantas perdas de jovens para o crime, por mortes, não teríamos tantas famílias destruídas, e uma cidade tão deformada e violentada como se tornou o Rio de Janeiro nas últimas décadas. Quem nasce e é morador do morro tende a sofrer a vida toda de exclusão, violência e preconceito.

O que isso nos ensina e nos faz novamente acreditar é que a mudança para melhor é possível, que está ao nosso alcance. Que o crime organizado que tanto mal faz as comunidades carentes é vencível, desde que se queira vencê-lo. E a fórmula todos nós já sabemos: investimentos sociais nas pessoas e no seu ambiente. Cada criança e cada jovem que mora em alguma comunidade deviam ser adotadas pelo país, com programas de transferência de renda, de garantia de escolas, de lazer, de acesso a cultura. É preciso disputar cada jovem e fortalecer as famílias, enfrentando com determinação o crime organizado e a polícia corrupta e criminosa. A fórmula todos nós já sabemos, basta implementá-la. Deve fazer parte de uma estratégia, diminuir a desigualdade social, pois é enorme a distância entre ricos e pobres - que é um abismo - no Brasil. Se, por exemplo, os 10% mais ricos do país contribuíssem com uma fração a mais à sociedade, poder-se-ia com facilidade mudar a vida de milhares de famílias da periferia e do próprio país, que acreditaria mais nas suas potencialidades e os telejornais teriam menos violência para mostrar, poderiam mostrar coisas maravilhosas nascidas nas comunidades, como arte, esporte, cultura, invenções, e principalmente pessoas vivendo felizes. No caso particular da Raimunda ela ganhou do programa uma nova casa para viver com a sua família. Mas, devemos querer que todos os moradores da comunidade tenham suas casas renovadas e possam ter uma habitação com o conforto que todo ser humano merece. Habitação é o sonho de toda família e toca diretamente na autoestima das pessoas. O Brasil é rico e pode proporcionar isso a todos os seus filhos. Na nova casa, de Raimunda, todos terão espaço para exercer a sua vida privada, coisa que os moradores no morro não têm, pois moram muitas pessoas em um só barraco, dormem em um só quarto, ou dormem na sala ou na cozinha. As pessoas crescem sem saber o que é privacidade e sem ter o seu próprio espaço. O Brasil pode e deve. Há uma divida social gigantesca com os brasileiros pobres. É preciso dividir a riqueza, socializar a renda, e assumir o amparo das crianças e jovens como patrimônio nacional. Ainda, vergonhosamente, em nosso país, pouquíssimas famílias concentram muita riqueza e, de outro lado, milhões vivem na pobreza e sem a perspectiva de um futuro melhor. Mas as Raimundas estão por aí, mostrando ao país, que seus filhos não fogem a luta e precisam urgentemente serem incluídos, e que apesar de tudo, os pobres insistem na luta pela dignidade humana e tem esperanças de um futuro diferente e acreditam sim, em um país que seja bom para todos, e não somente para uma minoria rica, privilegiada, opulenta e arrogante, como é a elite econômica brasileira.


Em outubro deste ano eu estive no Rio de Janeiro participando de um curso promovido pela FASE, Centro Ecológico e Fundação Henrich Boll. O curso aconteceu no Bairro Santa Teresa, um bairro antigo, que ainda conserva casas de arquitetura antiga, muitos sobrados. Ali circula o bonde elétrico, que é parte do cartão postal da cidade. Uma parte do bairro foi ocupada por comunidades carentes, que povoam o morro com barracos típicos do que define por favela. Do terraço do Colégio Assunção pode-se avistar muitos morros densamente habitados, com casas que se sobrepõem umas as outras, como empilhadas, com as mesmas características de tijolos aparentes, lajes de concreto, colados um ao outro, que foram se unindo umas as outras aleatoriamente. O interessante da cidade do Rio de Janeiro é que as comunidades carentes estão por todos os lados, convivendo como vizinhos com os condomínios onde moram os ricos. A impressão, sentida por alguém que é de fora, quando se está no Rio de Janeiro é de aglomeração, de não ter lugar pra fugir, de estar-se encurralado. Rio de Janeiro é uma encosta de morros que dão para o mar, uma cidade cercada de morros, é mais compacta, diferente de São Paulo, que é mais espalhada horizontalmente. No Rio de Janeiro as comunidades carentes estão mais visíveis, pois estão amostras em cima dos morros, verticalmente colocadas. Estão ali perto, por todos os lados.

“Rio 40 graus, cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos”, assim diz a música cantada por Fernanda Abreu. Nos três dias que estive no Rio de Janeiro foi possível ter uma pequena amostra da violência que os moradores convivem cotidianamente, quando se ouviu tiros trocados entre policiais e traficantes bem próximos de onde estávamos. E o medo de sair do prédio ou na rua em frente. Mas mesmo com certo receio, um grupo de pessoas presentes no curso saiu à noite, fomos percorrer a Lapa e conhecer pontos como os conhecidíssimos arcos da lapa e alguns bares, distante 10 minutos de onde estávamos. E valeu a pena ir conhecer a Lapa, bairro tradicional de boemia carioca. Fomos a um lugar chamado Boteco do Juca que estampa as bandeiras do Brasil e de Portugal, tem samba de raiz de alta qualidade, curtido ao vivo e com chope gelado. Era terça-feira e muitas casas de dança estavam lotadas ou com bom público. Samba de gafieira está fortemente presente. Voltamos às duas horas da manhã sem nenhum problema, a troca de tiros acontecera de tarde e agora tudo já estava em paz. Os habitantes da cidade aprenderam forçadamente a conviverem com a violência e tocarem a vida. Após os tiros tudo volta ao normal, não tem outra saída. Do terraço superior o Colégio Assunção se uma visão panorâmica da cidade e se pode ver – quase que hipnotizado - a Bahia da Guanabara, o Cristo Redentor, o Corcovado, o estádio do Maracanã e outros pontos da cidade maravilhosa. Apesar de tudo, como canta Gilberto Gil no bonito samba intitulado Aquele Abraço: “O Rio de Janeiro continua lindo”.

Demilson Figueiró Fortes
Chapecó, SC, dezembro de 2009.