sexta-feira, 27 de maio de 2016

Licenciamento ambiental


Para onde vai o licenciamento ambiental?

por Nilvo Silva

Sul21

Há muito se fala na necessidade de revisão das normas federais sobre licenciamento e a própria cronologia dos Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional é testemunho disto. De um lado, o licenciamento é visto como excessivamente burocrático e um “obstáculo” ao desenvolvimento (em particular da grande infraestrutura) e, de outro, como pouco transparente e efetivo no tratamento de temas socioambientais. Apesar de sua antiguidade, as discussões sobre o licenciamento ambiental têm sido marcadas por pouca resolutividade e por um foco na necessidade de “aprimorar” as regras que regem o processo (leis, resoluções de conselhos, etc.).

Entretanto, várias das limitações na aplicação do licenciamento são “externas” ao seu regramento. Em primeiro lugar, os problemas na operação do licenciamento não acontecem por acaso. As instituições de meio ambiente nunca foram preparadas para desempenhar suas inúmeras funções (em termos de fontes de custeio e investimentos estável, infraestrutura, manutenção de quadros técnicos de alta qualidade, autonomia, organização do conhecimento e planejamento, etc.). Este não é um aspecto menor. A necessidade de investimentos, preparação, equipamentos, capacitação, gestão profissional e profissionais qualificados não vale somente para o futebol!

Em segundo lugar, as práticas de planejamento setoriais (energia, transporte, etc.) permanecem pouco transparentes, com limitados espaços de participação, de coordenação intersetorial dentro do próprio governo federal, e tratam apenas marginalmente de temas socioambientais importantes. Estes mesmos temas marginais no planejamento são centrais nos processos de licenciamento de projetos individuais. Portanto, as limitações do planejamento da infraestrutura têm sobrecarregado o licenciamento de projetos com questões e conflitos para os quais ele tem pouca capacidade de resposta. Isto é uma das causas de demora, conflitos e da tão falada “judicialização” do licenciamento.

Quanto ao regramento, há iniciativas tramitando simultânea e paralelamente no Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), na Câmara Federal e no Senado. Mais recentemente, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a PEC 065/12 que, na prática, eliminaria o processo de licenciamento no pais. É difícil prever qual será o desfecho deste conjunto disperso de iniciativas legislativas, mas é importante considerar o que elas propõem como futuro do licenciamento. Tenho publicado e participado de seminários, congressos e audiências públicas sobre o tema e aqui apresento alguns pontos centrais sobre as propostas sendo discutidas.

Em primeiro lugar, o conjunto de propostas traz como preocupação central dar maior agilidade ao licenciamento. Alguns dos projetos de lei na Câmara, como o último substitutivo ao PL 3729/04 de autoria do Deputado Ricardo Tripoli, trazem um considerável nível de elaboração. Inovam ao propor a obrigatoriedade de Avaliações Ambientais Estratégicas para o planejamento da infraestrutura e maior transparência por parte dos órgãos licenciadores. Entretanto, confundem o planejamento da infraestrutura com o licenciamento de projetos e estabelecem exceções que muitas vezes desconstituem suas próprias propostas de aprimoramento. Em outro extremo, projetos como o PL 8062/14 de autoria do Deputado Alceu Moreira, possuem baixa elaboração e representam apenas a retirada de salvaguardas estabelecidas (como a obrigatoriedade de realização de audiência públicas) e a simplificação do licenciamento baseado em critérios vagos e conceitualmente confusos (o que tende a gerar ainda mais conflitos e maior judicialização do processo). Mais grave ainda, o PL 8062/14 propõe que não haja regra federal para a definição da exigência de Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e que isto seja decidido por cada Estado individualmente.

A proposta sendo discutida no CONAMA (em substituição às Resoluções 001/86 e 237/97) foi inicialmente apresentada pela ABEMA (Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente) traz poucas novidades e parece ser um exercício de adaptação das regras às limitações e falta de recursos dos órgãos licenciadores. Como ponto importante, a proposta da ABEMA estabelece processos diferenciados de acordo com os potenciais poluidores dos empreendimentos. Como ponto crítico, e da mesma forma que o PL 8062/14 citado acima, propõe que não haja regra geral no pais para a exigência de EIA e que cada Estado o faça independentemente.

Os projetos de lei no Senado merecem especial atenção. Ao contrário dos principais projetos de lei da Câmara e da proposta de resolução do CONAMA, elas não buscam estabelecer um regramento geral para o licenciamento, mas sim a criação de ritos especiais para grandes obras de infraestrutura, em particular as do setor elétrico (refletem várias das propostas apresentadas por instituições ligadas ao setor elétrico como o Forum de Meio Ambiente do Setor Elétrico, FMASE, e o Instituto Acende Brasil). Elas propõem profundas alterações nas práticas de licenciamento no pais. E mais importante, elas vêm tramitando de forma rápida e sem discussão pública.

Este é o caso dos PLs 602/15 e 603/15 de autoria do Senador Delcídio Amaral. O PL 602/15 propõe a criação do “Balcão Único de Licenciamento” e disciplina o licenciamento de aproveitamentos dos potenciais hidroenergéticos considerados estratégicos e prioritários. O PL 603/15 refere-se à priorização do uso da terra para construção de hidrelétricas (potenciais hidroenergéticos considerados estratégicos e estruturantes) em relação, por exemplo, a reservas indígenas e unidades de conservação.

O PL 654/15, de autoria do Senador Romero Jucá (hoje Ministro interino do Planejamento), propõe o licenciamento ambiental especial para empreendimentos de infraestrutura considerados estratégicos e de interesse nacional (assim definidos por decreto do executivo federal). Na prática, estabelece um rito sumário, simplificado, para o licenciamento das obras mais complexas e de grande impacto ambiental. O PL sequer prevê a realização de audiências públicas.

Por último é importante mencionar a PEC 065/12, aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado em abril de 2016, que estabelece que a simples apresentação de EIA autorizaria a implantação empreendimentos de infraestrutura. Na prática, a PEC significaria a eliminação dos processos de licenciamento.

Que sentido se pode dar a este conjunto de propostas?
Em primeiro lugar, e talvez o aspecto mais importante, há a evidente necessidade de que esta discussão seja feita de forma mais aberta e transparente, em particular as propostas com origem no Senado Federal. Não há qualquer avaliação das consequências destas propostas de flexibilização do licenciamento ambiental para as grandes obras de infraestrutura. Há várias iniciativas para discussão destas propostas com origem nos Ministérios Públicos e na sociedade civil, mas as propostas têm surgido e tramitado nas casas legislativas ao largo da sociedade.

Em segundo lugar, há também a necessidade de maior centralidade e coordenação entre as diversas iniciativas. Há clara falta de liderança neste processo e as iniciativas ou se sobrepõem ou apontam em direções diferentes. A falta de protagonismo do próprio Governo Federal é outra marca deste processo, em particular em relação ao próprio Ministério do Meio Ambiente.

Em terceiro lugar, várias das iniciativas de flexibilização criam enorme insegurança jurídica, como o PL 654/15 e a PEC 065/12. Isto tem repercussões tanto para o meio ambiente quanto para a economia. Quem realizará os enormes investimentos em projetos de infraestrutura a partir da simples apresentação dos Estudos de Impacto Ambiental? Sem discussão pública e sem avaliação dos órgãos ambientais? Em um momento em que há a clara necessidade de maior capacidade das instituições de controle (ver o caso de Mariana), as propostas de flexibilização ou dispensa de licenciamento através de mudanças na Constituição são apenas ideológicas e irracionais e tenderiam a agravar os conflitos socioambientais e judiciais em torno do licenciamento ambiental.

Por fim, há grande experiência acumulada sobre a prática do licenciamento ambiental no pais e há bons diagnósticos elaborados pela academia, por instituições empresarias, pelos órgãos licenciadores, e pela sociedade civil. Todos precisam ser ouvidos para uma discussão racional e socialmente legitimada sobre o tema. Entre os tantos itens destes diagnósticos há vários elementos comuns: a necessidade de maior transparência e espaços de participação, instituições com maior capacidade, melhor gestão do processo e dos estudos ambientais e mais investimento em ações estratégicas de planejamento no setor ambiental e mudanças no planejamento da infraestrutura no pais.


Nilvo Silva atua como consultor. É engenheiro químico com mestrados em ecologia (UFRGS) e Desenvolvimento Sustentável (UCL, Reino Unido). Foi Diretor de Licenciamento do IBAMA, Diretor-Presidente da Fundação de Proteção Ambiental do Rio Grande do Sul (FEPAM) e funcionário do Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas (PNUMA, Quênia).


Publicado no Sul21 em 22/maio/2016.