segunda-feira, 17 de novembro de 2008

HOLANDA E BÉLGICA


































ANOTAÇÕES DE UMA (BREVE) VIAGEM A HOLANDA E BÉLGICA

Texto de Demilson Figueiró Fortes


A VIAGEM
Uma viagem de trabalho, representando, juntamente com outros colegas da organização que trabalho, a FETRAF-SUL, para participar de uma agenda sobre a soja da agricultura familiar, que incluiu um seminário de produtos não-transgênicos , contatos comerciais com empresas, certificadoras e organizações sociais européias que apoiam o nosso trabalho no Brasil. Mas pra mim, queria ver as coisas além da soja e como um curioso, que se interessa por tudo que é humano e que gosta de escrever fiz esse relato.



Em se tratando de viagens, posso dizer que conheço todo o meu estado o Rio Grande do Sul, e parte da região Sul do Brasil. As viagens mais longas que já fiz foram uma vez até o estado de Rondônia, três vezes até a cidade de São Paulo, e uma viagem a Assunção, no Paraguai, agora seria um pouco mais longe, atravessar o oceando atlântico, divulgar a produção da agricultura familiar e interagir com outras culturas. Foi pra mim uma rica vivência. De Chapecó, fui a Passo Fundo e depois Porto Alegre pegar o avião. Eram 13:30 h aproximadamente, o avião da TAM decolou do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, rapidamente deixamos para trás a bela visão panorâmica do Rio Guaíba e suas ilhas. Uma hora e meia até São Paulo, depois mais doze horas até Amsterdam. A capital da Holanda é Haia, mas Amsterdam é a mais famosa e que recebe um fluxo grande de turistas. O avião parte às 19:00 h do aeroporto internacional Franco Montoro, de Guarulhos/SP. E há, naturalmente uma expectativa, afinal não é todo dia que se vai tão distante. Quando decolamos o GPS do avião da empresa aérea holandesa KLM marcou uma distância de 9.870 km, voamos a mais de 800 km por hora, em alguns momentos ultrapassa os 900 km por hora, e a 11 mil metros de altura.

Ir ao velho continente, em termos de expectativa pra mim é de um visitante que quer conhecer, sendo provavelmente o a mesma que se fosse na África ou outra parte da América central, mas com as peculiaridade da cultura da Europa, berço da civilização ocidental que fizemos parte e de grande referências culturais da nossa América. Às vezes até a Europa e os Estados Unidos são mais que referências, porque nós brasileiros temos um sentimento, construído, de valorizar demasiadamente as coisas de fora. E de valorizar a opinião de fora sobre nós. O que os analistas, governos, instituições e pessoas pensam e falam sobre nós, isso nos afeta. E é claro, a Europa é uma referência sobre os parâmetros de a uma sociedade mais evoluída socialmente, que enfrentou e superou seus graves problemas socio-econômicos e construiu democracias sólidas, com liberdades amplas e direitos sociais garantidos. Com diversidade política, cultural, étnica, que se expressa na culinária, nos vinhos e nas cervejas, na arquitetura, no modo de vida, nas políticas sociais e desenvolvimento econômico. Além de dezenas de intelectuais que moldaram o pensamento ocidental e influenciaram e continuam a ser referências para entender e pensar o mundo moderno.

A viagem foi tranqüila, quase sem turbulência, o avião dispõe de uma vídeo individual que podemos além de acompanhar o deslocamento do avião por GPS, quanto ainda resta de viagem, hora de chegada, temperatura. Assim, podemos assistir vídeos e escutar música, escutei um especial em homenagem ao Beatles, James Blunt e duas outras cantora pop que não lembro o nome. Só uma reclamação: a aeromoça ficou me devendo o “beef”. Falou pra escolher entre “fish” ou “beef”, mas somente tinha uns cubinhos de carne. O que já sabia e deu pra sentir - e depois comprovar - , que comer carne de gado como estamos acostumados aqui, não seria tão fácil na Europa.

Esses incidentes que, infelizmente, aconteceram com a Espanha envolvendo brasileiros, que ao entrar no país, centenas deles foram deportados, deixou um temor de que algo poderia acontecer como não gostaríamos. Mas nesse aspecto, isso me surpreendeu, pois sair do Brasil e entrar na Holanda foi um processo tranqüilo, sem necessidade de visto, sem revista na alfândega e até mesmo sem perguntas. Assim, a minha simpatia pela Holanda cresceu mais do que já existia. O temor se desfez e já estávamos em Amsterdam sem traumas, com carimbo no passaporte e entrando do trem para irmos até a cidade de Utrecht, sede na Solidaridad, organização que seria a nossa anfitriã, pelos próximos dez dias. A simpática Gudule - uma holandesa que já morou no Brasil e fala português - nos esperou com uma plaquinha. Junto ao aeroporto tem a estação de trem. Compra-se as passagens em uma máquina automática. Uma multidão sobe e desce dos trens que chegam e partem pra muitos lugares. A segunda boa impressão inicial da Holanda é essa, de um transporte público, amplo, bem organizado, articulado, que privilegia a coletividade.

UTRECHT: CANAIS E BICICLETAS
Pegamos o trem em Amsterdam e depois de aproximadamente meia hora chegamos a Utrecht, cidade de 350 mil habitantes, a quarta em tamanho e importância da Holanda, com canais que cortam a cidade e com casas e condomínios de padrão de tijolos a vista predominantes, bem característicos e que iríamos ver por toda a Holanda e Bélgica. Nota-se, logo de chegada, a existência das bicicletas. Elas estão estacionadas do lado de fora da estação, são centenas, provavelmente milhares. Logo ali, na frente da estação de trem, mas outros estacionamentos de bicicletas se enxerga pela cidade e na frente dos condomínios e escritórios, sempre há várias bicicletas estacionadas. A cidade tem uma rede de ciclovias, onde se vê muitas pessoas indo e vindo nas suas bicicletas. Andar de bicicleta aqui é o normal, desenvolveu-se a consciência dela como meio de transporte ambientalmente saudável, e pelas conversas com as pessoas próximas se constata que cresce cada vez mais a consciência anti carro individual. Aqui, percebe-se que já não é mais o sonho das pessoas ter o seu próprio carro, diferente da cultura que se desenvolveu na América, no Brasil e em outros lugares do mundo, de excessivamente valorizar o carro, que é sinônimo de status social, onde todos querem ter seu próprio carrinho, e as ruas das cidades estão cada vez mais entupidas.

A estação de trem, funciona articulada com a estação de ônibus de transporte público municipal, e as pessoas deixam as suas bicicletas perto da estação. Gudule, a pessoa do Solidaridad, que nos esperou no aeroporto, quando retornamos, nós fomos de taxi, por causa das bagagens, mas ela pegou sua bicicleta e depois de aproximadamente 12 minutos chegamos juntos a sede da entidade.

OUTONO NO HEMISFÉRIO NORTE
Na Holanda, nesta época do ano, está iniciando o outono, as folhas das árvores estão começando a mudar de cor, ficar mais avermelhadas, tons de marrons e amarelo, e começando a caírem. Nos falaram que daqui a menos de dois meses a vegetação exuberante que vimos estará parecendo seca, pois as folhas todas caíram. O cartão postal do outono são as folhas no chão, no inverno o frio intenso, e com freqüência a neve, apesar de agora, nos disseram, já é possível perceber que está mudando o clima.

Tanto na Holanda, como na Bélgica, nota-se o sistema de aquecimento, que funciona a gás, basicamente. No aeroporto, noto que o banheiro está aquecido. Em todos os ambientes, casas, condomínios, bares, restaurantes, hotel, inclusive a estação de trem, se nota isso. Na entrada das casas ou escritório, deixa-se os casacos pesados na entrada, em um cabide, dentro das casas se usa roupa leve, nem se nota que lá fora tem frio. Da para imaginar o enorme gasto energético desses países e a necessidade de geração de novas fontes, que substituam o petróleo.


BÉLGICA
Uma passagem de 31 euros (R$ 93,00) é o que custa ir de de trem de Utrecht até Bruxelas, passando pela cidade de Roterdam, com duas horas e meia de viagem aproximadamente. Da janela do trem, quero ver tudo, a paisagem é de beleza notória, um terreno plano, que na Holanda é entrecortado permanentemente por canais, pois o país está - em grande parte - abaixo do nível do mar. Enxerga-se canais grandes, de navegação, que é um meio de transporte muito utilizado na Europa, e se vê canais de drenagem dos terrenos agrícolas. Na cidade, ou indo de uma cidade a outra não se sobe ou se desse, se anda no terreno plano, o que contribui muito para ter canais de navegação, linhas de trens sem grandes obras de infra-estrutura como túneis, para cortar os terrenos, mas existem pontes, viadutos, estradas construídas sobre aterros. Mas, a infraestrutura dos dois países é notada nas estações e linhas de trens, nas rodovias, nos canais navegáveis, nos portos espalhados ao longo dos canais que distribuem as coisas transportadas.
Nota-se também as estradas de altíssima qualidade. Bélgica, é cortada pra todos ao lados por grande auto-estradas de quatro pistas de um sentido e quatro de outro, além da segurança, sinalização e mais interessante, as estradas da Bélgica são todas iluminadas à noite, parecem avenidas. Na Bélgica a língua é flamengo e francês. Quem dominar o francês se comunica fácil, tem muitas placas com informações públicas que são em francês.

BRUXELAS
BRUXELAS, BRUSSELS, BRUXELS
A capital da Bélgica é uma belíssima cidade. É onde está localizada a sede do parlamento europeu, do comissariado e do conselho de ministros da Comunidade Européia, centro importante do poder da nova Europa unificada, um bloco que chega a 27 países atualmente, com uma população de 435 milhões de pessoas. O PIB europeu de 2007 foi de US$ 14 trilhões. E uma diversidade de culturas, com uma história com traços em comum, mas também com peculiaridades.
Na chegada a Bruxelas, de trem, no início da noite, vindo de Utrech/Roterdam pude ver algo incomum para a maioria das cidades, algo que já tinha ouvido falar, mas que estava podendo agora constatar, uma rua de casas de prostituição. Na chegada parecem bares normais, se distinguindo pelo neon nas fachadas que chamam atenção, mas de perto, observa-se que funcionam com as moças - profissionais do sexo - expostas na vitrine, mostrando seus corpos aos possíveis clientes, enquanto a vida ali na rua continua normal, as pessoas indo e vindo num começo de noite de outono. Em Amsterdam, também a prostituição é reconhecida como profissão, e as casas são legalizadas, mas existem zonas da cidade especificas para o exercício de tal atividade.

Bruxelas é uma cidade com características marcantes pela sua arquitetura histórica, grande parte da cidade não se vê prédios de estilo moderno, mas prédio de quatro a seis andares, colados um ao outro, num continuo.
Na Bélgica, como na Holanda, o transporte público de qualidade é marcante. A bicicleta é usual, de uso comum, se vê para todos os lados, as cidades tem ciclovias e locais para estacionar bicicletas, sendo normal na frente doa bares, lojas, escritórios ter sempre bicicletas estacionadas. Existem trens intermunicipais e trens urbanos (parecidos com bondes), além de frota de ótimos ônibus, confortáveis e bonitos. Em algumas ruas, convivem carros, trens urbanos, bicicletas e motos. Os trens e os ônibus, em alguns lugares tem pistas exclusivas, em outros usam as mesmas estações. Indo de trem de uma cidade a outra se observa os estacionamentos de carros próximos as estações, onde as pessoas deixam seus carros e vão de trem, da mesma forma as bicicletas, na saídas das estações de Utrech ou Brugge, duas cidades da Bélgica e Holanda, respectivamente, por exemplo, é surpreendente a enorme quantidade de bicicletas. Em algumas estações pode-se afirmar que tem milhares de bicicletas, em estacionamentos em andares ou contínuos.

O normal nestes países é ir de transporte público, o carro é exceção, não é a prioridade, e cada vez mais sofre críticas. Daqui, andando de transporte público todos os dias, sabe-se perfeitamente, que realmente, imaginar que todas as pessoas do mundo possam ter seu carro individual numa cidade é uma aberração. E, que o transporte público nos remete a uma racionalidade que concebe o mundo na sua coletividade e incorpora a dimensão ambiental. E depois de internalizado pelas pessoas, torna-se cultura e passa a ser o normal. Um amigo nosso, que da Solidaridad que nos acompanhou, o Paulo, que é brasileiro, nos falou que não pretende ter carro, pois o transporte público satisfaz às suas necessidade de transporte. Outro amigo Jan, que é holandês mas morou no Brasil, tem carro, mas usa pouco e quer se desfazer.

Nesses dez dias de viagem, senti saudade da alimentação brasileira. Não somente pela carne, que no Brasil é comida com fartura e por lá é restrita, por ser de preço elevado. Mas também por não se comum servir arroz, que é da nossa base alimentar, muito menos o nosso feijão. No restaurante se olha o cardápio e se escolhe um prato, eles acham estranho se pedimos uma porção de arroz como complemento. O que observa-se é que o pão é a base alimentar da Holanda e Bélgica, onde em cada refeição, tanto no restaurante como nas casas das pessoas, antes de um prato principal, serve-se uma porção de pão com manteiga, componentes básicos. Mas, em compensação comi salmão umas três ou quatro vezes, em pratos bonitos e requintados, mexilhões e pato ao molho. E uma coisa marca: eles apreciam mais o ato de comer, comendo menos a cada refeição e valorizando o ato. Nós, no Brasil, em geral, comemos demais, em excesso, ao passo que outros brasileiros (muitos) passam fome.

Em Bruxelas é freqüente encontrar-se com artistas de rua, pessoas tocando gaita, violino, teclados e outros instrumentos exóticos. Da mesma forma se vê na rua desenhistas, pintores, caricaturistas.
Um traço marcante da cidade são os bares, lotados de gente, com suas mesas tradicionais colocadas ao ar livre, na frente dos bares, nas calçadas largas. Nesses bares se bebe muitas cervejas. A Bélgica tem mais de 300 tipos de cerveja, somente uma loja, no centro exibe que dispõe de 250 tipos para vender, uma festa. Provei um cinco tipos, muito boas, saborosas, diferentes, uma dessas foi em um bar que tem mais de 100 anos de existência e fabrica a sua própria cerveja, um canecão de mais de 800 ml custa seis euros.
O centro da cidade é uma festa, cheio de turistas, tirando fotografias e comprando lembranças da cidade. Faz parte da marca de Bruxelas as casas de chocolates, são muitas, estão por todos os lado, pelo menos na parte mais central da cidade.

Nos trens urbanos nota-se muitas pessoas lendo jornal ou livros. Pessoas de todas as idades, mas não se vê uma massa de jovens como é comum nas cidade brasileiras. E nos trens há os novos e mais antigos, e parecendo perplexo se vê alguns pichados, e alguns com grafite colorido, como é o caso do metrô de Amsterdam. Uma característica visível na Bélgica é as crianças carregadas nos carrinhos, são muitos os pais que vi levando seus seus filhos nos carinhos.

O café é algo muito apreciado, mas diferente dos brasileiros, os europeus não colocam açúcar em seus cafés. Algo parecido também com os chocolates, muito consumidos, mas com menor quantidade de açúcar e leite, e com mais cacau, resulta dando em chocolates um pouco mais fortes, mais amargos, mas com sabor acentuado, mas muito saborosos. Uma barra de chocolate com 400 gramas, custa entre 4 e 6 euros (12 e 18 reais). Os chocolates belgas são muito famosos e muito bons. Comprei vários chocolates para trazer de presente às colegas e familia mais próxima, principalmente as afilhadas Larissa e Jéssica.

IMIGRANTES NA EUROPA
Nas ruas de Bruxelas, Amsterdam ou Utrecht se vê imigrantes, negros, africanos, possivelmente de ex-colônias européias, e o que chama mais atenção são os muçulmanos, com as suas características que são mais marcantes, principalmente as mulheres que usam o véu na cabeça e as roupas que cobrem todo o corpo. Elas são muitas, se cruza muito nos trens urbanos, ônibus, nas ruas, nas estações, nas lojas. Aqui, em vários momentos se cruza com pessoas pobres, alguns te pedem dinheiro, ou ajuda pra comprar passagens de trem. Mas essa pobreza existente parece estar localizada nos imigrantes. Das pessoas que vi pedindo dinheiro, lembro de quatro mulheres e três eram muçulmanas.

CIDADES VISITADAS NA BÉLGICA: BRUXELAS, LEUVEN, LOVENDEGEM, ANTWERPEN, GEEL E BRUGGE
Além de Bruxelas tive a oportunidade de visitar outras cidades da Bélgica, a organizadas pelo amigo de nome Luc, ligado a uma organização belga chamada WERVEL, que atua promovendo o debate sobre alternativas de proteínas, produção e consumo local e sobre outros temas ligados direitos humanos. Na cidade de LEUVEN, visitamos uma loja que vende produtos fabricados com cânhamo, como camisetas, calças, mochilas, bolsas, alimentos, e outros produtos. O cânhamo, é uma planta próxima da maconha, tendo o mesmo nome cientifico (cannabis sativa), mas a variedade não tem a substância denominada THC, que dá o barato e faz a moçada ficar chapados. O cânhamo possui fibra que é versátil e pode ser confeccionado tênis, bonés e roupas, mas por se parecer com a maconha é proibida em muitos países, entre eles o Brasil, mas na Bélgica e outros países é permitido o seu plantio e industrialização. A WERVEL defende o uso como alternativa protéica para alimentação animal e humana. Visitamos também na cidade de LOVENDEGEM a propriedade de um agricultor ecológico (que eles chamam de biológico, os produtos que não levam agrotóxicos) chamado Dirk, que produz leite e industrializa em um pequeno laticínio familiar e vende diretamente aos consumidores localmente. Almoçamos na casa de Dirk, comemos uma saborosa sopa de cenoura com abóbora com pão integral, gelias e queijos, numa mesa preparada ao ar livre, ao sol. Nesse mesmo dia, vistamos a cidade de ANTWERPEN, onde numa loja de confecções como estas redes que existem no Brasil, que os preços são todos em média três vezes mais caros, se uma camisa custa R$ 15,00, lá custa R$ 45,00. Depois fomos a um bar popular tomar cerveja belga, onde bebi uma cerveja com mais de 8 graus de álcool, muito saborosa, ao custo de 2,5 euros (R$ 7,50) a taça (meia garrafa), a cerveja mais barata, pois em outros locais os preços ficam acima de 3 euros. A noite encerramos numa cidade chamada de GEEL, distante cerca de 70 km de Bruxelas, onde a WERVEL foi fazer uma palestra sobre o Brasil para um grupo de pessoas, que se reúnem mensalmente para debater algo e depois dançar. Nessa cidade de GEEL, comi uma que é uma das comidas típicas da Bélgica, as batatas fritas. Eu que imaginava que batata frita era coisa dos Estados Unidos, fiquei sabendo que os belgas tem como cultura comer batata frita. Comi batata frita numa casa especializada, como temos as casas de pastel ou de hambúrguer aqui, batata frita com molho de maionese tártaro e molho de carne, tudo muito bom. Retornamos para Bruxelas numa auto-estrada toda iluminada, que parece uma avenida, no meio do caminho paramos em um posto que funciona em auto-serviço, onde os clientes abastecem seus próprios carros. Em todas essas cidades pude ver muitas bicicletas e muitos bares bacanas.


BRUGGE
Por convite feito por Johan, pessoa conhecida que trabalha para a Max Havelaar da Bélgica, fomos conhecer Brugge. De trem levou um pouco mais de uma hora, dez passagens custaram 71 euros, talvez com algum desconto que eles ganham. Brugge é uma cidade belga turística e muito antiga. Por seus canais que cortam a cidade pra todos os lados e por sua arquitetura histórica é chamada de a “Veneza do Norte”, em referência a cidade de Veneza, que fica na Itália, na parte sul do continente europeu. Nos disseram, que dos dez milhões de turistas que visitam a Bélgica todos os anos, cerca de três milhões visitam a cidade de Brugge. Fomos num domingo de sol e estava repleta de turistas. Almoçamos espaguete com molho vermelho de carne moída a 8,5 euros (+ taça de cerveja e água = 13 euros, ou 36 reais). A cidade é pequena, e impressionantemente bela, com igrejas antigas, castelo, mosteiro, ruas estreitas com calçamento e casas de tijolos. E os canais que cortam a cidade. Um cartão postal.

DE VOLTA À HOLANDA
Concluídas às atividades em Bruxelas, voltei para Utrecht, dia 14 de outubro. Na estação central de Bruxelas, antes de embarcar no trem tomei café na estação. Um café com croissant, na promoção, custou 2,6 euros (R$ 7,80). Na noite anterior, uma baguete, com muzzarela, presunto e tomate custou 4,5 euros (R$ 13,50). Os trens são pontuais.
Na estação, como em outros lugares, fui dar uma olhada na revisteira para ver encontrava algo que me interessava. Não foi diferente como no Brasil, encontrei. Comprei uma revista com 100 fotos selecionadas de um fotografo de uma revista denominada repórteres sem fronteira, com belas e ricas imagens, fotos globais, por 9,90 euros (quase 30 reais). Entrei em outra, peguei uma barbada, a maior que encontrei na minha estada aqui, um número de uma coleção que esta por aqui de músicas clássicas,com 10 CDs de Vivaldi, por apenas 9,90 euros.

Na plataforma de trem, sozinho, sem falar inglês, e com um portunhol muito ruim, consegui me comunicar, e obtive informações sobre a direção certa do trem, a linha certa, e embarquei com segurança. Da mesma forma em Roterdam, onde troquei de trem, e o mesmo, quando em Utrech desci e peguei um ônibus urbano. Minha conclusão definitiva é que a comunicação existe de várias formas, e sempre encontramos pessoas dispostas a colaborar, mas sempre é bom ter um pouco de tempo, uma folga pra não ter problemas, com pressa e atrasado pode se complicar. Em Bruxelas, quando perguntei a um rapaz sobre a linha do trem, ele foi perguntar na parte de cima da estação pras pessoas certas e retornou pra me informar, algo que nos deixa na obrigação moral de fazer o mesmo, pra outras pessoas. Em Utrecht, disse ao motorista que queria ficar na estação Sócrates Plain e ele depois avisou, saiu um Sócrates diferente do nosso, mas entendível.

Na viagem de trem, observo que o fiscal ao verificar as passagens, os estudantes apenas mostram uma carteira. Depois perguntei a Jan, nosso amigo, e ele me explicou que os estudantes não pagam passagem de trem na Holanda. Aqui os estudantes, ganham uma bolsa para estudar e conta ele, que como eles gostam de viajar e usavam muito da sua bolsa pra isso, o governo, resolveu diminuir a bolsa e negociar com as empresas de transporta pra liberar pra moçada, e foi o que aconteceu. Mas também tem outras formas de desconto, pra todas as pessoas que fizerem um carteira especial, que obtém desconto de até 40 % e pode também valer para a pessoa acompanhante. Perguntei também sobre a Universidade e Jan me falou que é pública, alguns poucos cursos de pós-graduação somente que são privados. Na Holanda não há vestibular, parece que somente para o curso de medicina, que há uma grande procura faz-se algum tipo de seleção. Passa-se no ensino médio à universidade como um passo continuo, algo normal para todo o estudante.
Peguei o ônibus da estação central de trem, em Utrecht para ir a sede de Solidaridad e paguei 1,60 euros (R$ 4,80) pelo transporte em um ônibus de alta qualidade. Depois olhando na passagem descobri que é ida e volta, ou serve pra pegar dois ônibus em seqüência.

Interessante é entrar nas estações, pegar o bonde e geralmente, não ter ninguém pra te cobrar a passagem. Se entra na estações não tem nem controle magnético rigoroso, existe sim, mas as pessoas entram e passam seu cartão, sem ninguém estar vigiando. Nos disseram que, algumas vezes aparece um fiscal, e se alguém não tiver com passagem leva uma multa, mas parece não ser isso que inibe a falta de pagamento, existe a consciência de que tem que pagar. Eu, imaginava as estações mais vigiadas, pelo temor que se seguiu ao atentado de 11 de setembro,mas não existe, nem câmeras pra todo lado eu vi, somente algumas em algum ponto específicos.

PAISAGEM RURAL
Viajando de trem, indo para a Bélgica ou retornando para a Holanda, da janela do trem, eu observava tudo com um olhar curioso, de quem desvenda, de quem quer desbravar um território. Como agrônomo, ecologista, mas como também como um observador, que se interessa por tudo que é humano, e nisso inclui a relação que temos com a natureza, as tecnologias, a nossa ação no espaço físico, e as culturas como resultado de tudo isso, através das gerações que se sucedem.

A paisagem é parecida, comparando os dois países. Muitas áreas agrícolas com pastagens e muitos animais bovinos, vacas leiteiras da raça holandesa. Também se vê criações de ovelhas e plantação de milho para silagem. Áreas muito planas, drenadas por canais que, entrecortam todo o território. Algumas poucas barreiras de árvores ou pequenos bosques. Mas uma coisa que chama a atenção é a integração entre espaço rural e urbano, que no Brasil denominamos de “rurbano“. Ao longo da ferrovia vimos muitos aglomerados de casas, que são pequenas vilas rurais, que eu suponho, devem ter moradores que são agricultores e pessoas que trabalham em outros locais, mas que pela facilidade de embarcar nos trens, podem ir trabalhar todos os dias e voltar pra casa. Porque se vê uma seqüência de casas em meio a plantações e criações e outros aglomerados com pequenos quintais, hortas. Interessante é a impressão que temos de ver que parece que tudo está bem “arrumadinho“, casas boas, animais nas pastagens, gramados, jardins. Ao longo das ferrovias observa-se cortinas verdes de plantas, arbustos e árvores, que fazem, juntamente com outros tipos de materiais, como plásticos ou cimento, barreiras que isolam os trilhos do trem da vila e das casas, funcionando como barreira que isolam contra o barulho e também talvez para dar certa privacidade. Vê-se algumas estradinhas rurais asfaltadas.

ROTERDAM
Retornando da Bélgica, passei pela cidade de Roterdam, uma cidade portuária, muito conhecida, que é a porta de entrada para os produtos que chegam de várias partes do mundo para a Europa. O Porto de Roterdam, um dos mais importantes e movimentados do mundo, juntamente com o porto de Hamburgo, na Alemanha, constituem os dois portos mais importantes de distribuição de mercadorias do continente europeu. Dali pelos canais e ferrovias são distribuídas para vários países, como é o caso da soja e outros produtos que chegam do Brasil.

Ao longo da viagem, a ferrovia vai cruzando por grandes auto-estradas, que cruzam em várias direções. Nessa parte do território agrícola predomina as pastagens, mas se vê algumas concentrações de estufas agrícolas , de plástico e de vidro, grandes, estruturas de alta tecnologia. Mas, percebe-se que a aração da solo é um manejo muito presente, diferente do Brasil, em que o plantio direto na palha é uma prática já amplamente adotada.

Vejo os grandes canais que cortam a Holanda, com muitos barcos de carga e pequenos portos de descarga ao longo dos canais. Neste lado da Holanda que viajei, indo até Bruxelas, não tem plantações de flores, nem enxerguei muitos moinhos, dois símbolos da Holanda. Moinhos vi alguns poucos, mas por outro lado se vê presente os novos moinhos, que são os geradores de energia eólica modernos, construídos de metal, com grande pás que giram.

Dentre as coisas curiosas que enxerguei foi de umas casas ilhadas e uma empresa parecida com um castelo. Explicando melhor, devido o terreno ser alagado por quase toda a Holanda, as áreas agrícolas com as plantações e alguns lugares habitados, precisam ser drenados, por meio de canais. Nestes dois casos, era um condomínio de várias casas, que formavam pequenas ilhas, com pequenos canais e pontes que estavam no meio do condomínio. Da mesma forma na empresa, que lembra os castelos medievais, que eram circundados por água, assim foram construídos os prédios da empresa, todos cercados por água.

AMSTERDAM: BELEZA E CULTURA
Como definir Amsterdam?
Falar de Amsterdam é falar de uma cidade linda, mágica, que atrai atenção de pessoas de várias partes do mundo. Uma cidade em que se vê a diversidade, presença de gente menos formal. Entrecortada por canais, que estão cheio de barcos. Para ir ao hotel que iria ficar hospedado foi me dado um mapa, e descobri a importância de se ter um mapa. Além de nos localizarmos, temos a oportunidade de conhecer melhor a cidade. Olhando o mapa de Amsterdam temos a noção exata da quantidade de água que circunda e transpassa a cidade. São muitos os canais, que estão por todos os lados, é quase que em cada duas quadras se tem um canal. São barcos de turistas, casas-barco, onde pessoas moram nos barcos, barcos que fazem entrega de mercadorias, barcos dos órgãos públicos pra prestar algum serviço. Olhando o mapa da Holanda comprovo que grande parte do país está abaixo do nível do mar. E olhando o mapa de Amsterdam se tem a noção da quantidade de canais que cortam e drenam a cidade.

AMSTERDAM: HOSPITALIDADE, PLURALIDADE E TOLERÂNCIA
Amsterdam é plural. Na cidade vê-se pessoas de várias partes do mundo. Desse encontro, dessa mistura, se define muito a cidade. Eu já sabia da política liberalizante em relação as drogas e a prostituição da cidade. Mas, na terça quarta-feira atravessando uma boa parte da cidade caminhando a pé, no centro da cidade, uma loja, exibe um pé de maconha na entrada da loja, olhando mais atentamente se vê outro pé na vitrine da loja. Quando entro na loja, vejo uma enorme quantidade de produtos feitos a base de maconha ou do seu próximo cânhamo. São sacolas, roupas, bebidas, alimentos, lembrancinhas de todos os tipos, com a folha da cannabis sativa simbolizando. E nessas lojas, compra-se a semente em pacotinhos ou a própria erva para fumar. É permitido portar pra consumo até três gramas, ou plantar alguns poucos pés para o auto-consumo (me contaram que é no máximo três pés).

Amsterdam é cheia de bares e restaurantes. Pude numa passada ver restaurante ou bares mexicano, argentinos, brasileiro, chinês, tailandês, da mesma forma que rede de fast-food como Burguer king.

AMSTERDAM: CICLOVIAS, TREM, ÔNIBUS E METRÔ
Chama atenção as bicicletas. São milhares, com ciclovias que cortam a cidade. Gente de todas as idades, roupas, estilos, todos andam de bicicleta, inclusive com chuva, se coloca uma capa de chuva e pedala-se. De salto alto ou de tênis, de vestido ou e calça, a bicicleta é pra todos e pra todas.
Pra uma cidade que é cheia de canais até que tem bastante árvores, que nessa época caem as folhas, dando uma característica especial, amarelada, forrando o chão e as águas. Em relação a arquitetura, na cidade de Amsterdam os prédios são na sua maioria antigos de altura de cinco andares em média, todos colados um no outro, de tijolos e telhas. Alguns parecem meio inclinados pra frente, dando a impressão que estão prestes a caírem. Mas é somente impressão, foram construídos assim, inclinados.
O metrô esta integrado as ciclovias, aos ônibus, trens urbanos e trens intermunicipais, que partem para vários pontos da Europa, e com estacionamentos de bicicletas. São vários ramais do metrô que se ramificam por vários pontos da cidade. De manhã, passavam na estação, de três em três minutos, se atrasa pega logo em seguida o outro.
Amsterdam passa a impressão de liberdade. Uma cidade que enfrentou a hipocrisia e legalizou algo que a moçada já faz uso em muitas partes do mundo, e nem por isso todo mundo saiu fumando ou se prostituindo. O que melhor pode definir essa cidade seja o que se chama de tolerância e pluralidade. Não que todos devam querer ou concordar com tudo, mas de admitir que o outro pode querer ou gostar, e que pode ser melhor fazer a luz do que na clandestinidade e nos becos escuros da cidade. Como cidade global, tem redes mundiais, uma delas é onde comemos na madrugada um hambúrguer, que é a rede Burguer King, custou 5 euros (R$ 15,00). O simpático rapaz que nos atendeu, é estrangeiro, acho que marroquino, turco ou algo próximo, disse ele que conhece muitos brasileiros e falou um portunhol.

CONSIDERAÇÕES FINAIS DAS IMPRESSÕES DE UMA BREVE VIAGEM A HOLANDA E BÉLGICA
No geral, penso que ter conhecido dois países da Europa como Bélgica e Holanda foi importante, por varias razões. Primeira delas, porque tivemos êxito na nossa missão de trabalho e além disso, sempre crescemos culturalmente, quando conhecemos pessoas, lugares, modos de viver, história de povos que constróem suas realidades, mesmo nas maiores adversidades, seja ambiental, seja social, política ou econômica. Uma Europa que foi arrasada na segunda guerra mundial e levantou-se, construiu um sistema de proteção social invejável. Uma Holanda que alargou seu território e fez da adversidade ambiental a fonte de geração de conhecimento e de tecnologias. Onde seria impossível viver, construiu uma Amsterdam, uma civilização. Mas me trouxe, principalmente uma afirmação da visão que tenho do espaço público, da coletividade, da valorização da cultura. Trata-se de países que superaram suas desigualdades estruturais, onde vê-se certo equilíbrio, ou talvez, melhor definindo, uma sociedade que tende mais para a igualdade do que a nossa, em que vivemos, aqui no Brasil, na América ou em outras parte do mundo. Lá, certamente, tem seus ricos e seus pobres também. Mas o que me pareceu é que a riqueza européia ta mais pra coletividade do que para o individualismo. O foco, no ensino, no transporte, nos direitos do cidadão está no público, na coletividade. A idéia de uma sociedade de direitos, da força visível da sociedade, mas também de estados nacionais fortes, com ações e políticas públicas. Um exemplo são as ruas centrais das cidades, que são para principalmente às pessoas, às bicicletas e os ônibus e os trens. E o carro, símbolo da sociedade individualista industrial, movida a petróleo, que joga gás carbônico pra atmosfera, já não é mais a centralidade.

Penso que a riqueza européia não é traduzida somente por dinheiro. A riqueza está no respeito às faixas de seguranças, à prioridade aos pedestres, no ato de pagar passagem sem ter cobrador, em utilizar com naturalidade o transporte público e não querer cada se deslocar com carros individuais. A riqueza está no milhares de bares que ocupam parte das ruas, de pessoas que se abrem ao espaço público, de interação e convivência humana. De conservar seu patrimônio histórico e não achar que destruir prédios antigos e substituir por novos seja a melhor coisa do mundo. A riqueza parece estar na centenas de casas que fabricam chocolates ou nas centenas de tipos de cerveja que existem na Bélgica, na beleza dos canais de Amsterdam. Parece estar cada vez mais no consumo consciente da responsabilidade social e ambiental, de uma sociedade européia, que na sua maioria rejeita os cultivos transgênicos.

Em pesquisa apresentada no seminário sobre NÃO-OGM (geneticamente não modificados) que participamos, pudemos constatar mais uma vez que a população européia, na sua maioria se preocupa com a sua alimentação e questões como segurança nutricional, qualidade, origem, relação com a saúde e meio ambiente, preocupa as pessoas. Nesse sentido, a maioria rejeita os produtos transgênicos e valoriza à produção biológica (produzida ecologicamente correta). E as empresas, para atender aos seus consumidores estão desenvolvendo produtos e demandando produção dessa natureza. Na Irlanda, por exemplo, estabeleceram meta de passar de 1 % para 5 % o percentual de soja orgânica na ração animal, abrindo possibilidade de venda para os agricultores familiares do Brasil e de outras partes do mundo.

Interessante também foi conhecer um pouco mais do sistema denominado de COMÉRCIO JUSTO, denominado em inglês de FAIR TRADE, um movimento internacional, iniciado há mais de trinta anos e fortalecido nas últimas duas décadas na Europa, que propõem a valorizar o preço dos produtos oriundos de grupos de agricultores de países pobres ou em desenvolvimento. Na Europa existe uma rede de lojas que vendem esses produtos, uma delas é a OXFAM, que conheci uma em Bruxelas, mas a produção que é certificada pela FLO (FAIR TRADE LABELLING ORGANIZATIOS) pode ser encontrada em vários lojas de varejo, aliás há o interesse dos seus promotores que agentes do mercado comprem, industrializem e distribuam, assim pode ganhar mais consumo de massa. Na Suíça, por exemplo, metade do volume de bananas consumidas em todo o país, já é com selo do FAIR TRADE. De nossa parte foi aprovada a proposta de incorporar a soja da agricultura familiar, não-transgênica ou orgânica, como parte da lista de produtos certificados, iniciativa que poderá vir a beneficiar milhares de famílias do Brasil, da América e de países como Índia. A organização que promove isso tudo chamas-se MAX HAVELAAR, e atua em rede, em vários países da Europa, eu tive contato com MAX HAVELAAR Bélgica. A proposta da soja no comércio justo foi da FETRAF-SUL, instituição que tenho a honra de trabalhar.


A vida na Europa é cara. No geral tudo custa três vezes mais que as coisas no Brasil. Perguntei quanto era o salário mínimo na Holanda, me falaram que era uma base em torno de sete euros por hora, ficando em 1.200 euros por mês aproximadamente, correspondendo a R$ 3.600,00, o que parece bastante, mas quando se coloca os custo de vida alto, verifica-se que não é alto salário. Uma outra pessoa na Bélgica me contou que um terço de seus rendimentos de um mil euros por mensal são para o aluguel, ficando em torno de 300 euros o aluguel de um apartamento pequeno. Quando comparamos verificamos que no Brasil, na cidade de Chapecó, Passo Fundo ou Porto Alegre, se faz uma refeição de excelente qualidade por sete ou oito reais, com carne a vontade, algo que não existe na zona do euro.

A Holanda é um país rico, vê-se isso com facilidade pela infra-estrutura que construiu, pela quantidade de guindastes que se vê, sempre com obras e reformas em andamento. Mas pra mim, a riqueza holandesa está em ter o ensino público, gratuito em todos os níveis. Uma visão de sociedade plural e tolerante. Em ter um transporte público, de massa, com capilaridade e eficiência.

Quando, os cidadãos de países como o nosso Brasil se entenderem isso, também teremos riqueza, pra além de materialmente visíveis. Em verdade, o Brasil já é um país rico, uma das maiores economias do mundo, e dono de um patrimônio ecológico imenso, mas é profundamente desigual e não aprendeu ainda a valorizar a sua riqueza ecológica. A riqueza é concentrada e estamos ainda no meio do caminho da construção da cidadania e de efetivação de direitos, onde o meio ambiente fica sempre em segundo plano. E culturalmente, temos um caminho longo a percorrer, pois mesmo os nosso ricos - financeiramente falando - são de uma pobreza espiritual e cultural imensa. Ainda, em todos os lugares, todos sonham em ter somente seus carrões e seus luxos - e seus lixos - , mesmo sabendo que as cidades estão cada vez mais entupidas de carros e o planeta está no seu limite, com lixões gigantes e riscos reais de um aquecimento global. Para muitos, mesmo sendo trabalhadores ou classe média o transporte público, a motocicleta ou a bicicleta são coisas degradantes ou diz respeito somente aos pobres, enquanto predominar isso seremos como um povo de pobreza cultural e ética. Os empresários querem ser mais ricos, o respeito a cidadania fica a margem dos negócios. Os candidatos a classe média e novos ricos, nunca pensam em comprar livros, mobilizarem-se por museus e bibliotecas públicas, querem sim é acumular materialmente. Quando o transporte coletivo público for prioridade e a classe média mandar de ônibus seus filhos pra escola, e termos ciclovias, respeito as motocicletas e pedestres, eliminarmos a pobreza e incluirmos na nossa cultura o respeito ao meio ambiente, enfim, seremos muito ricos. Quando separarmos o lixo, quando a universidade pública atender a maioria, e a saúde pública além de universalidade formal se tornar efetiva e de qualidade, aí seremos ricos.

A viagem se tornou mais tranqüila, porque nosso grupo - que incluía, além de mim dois outros colegas do Brasil, Rui e Norberto, e um boliviano, o Gustavo - foi muito bem recepcionado por vários amigos, de organizações européias que temos relações de trabalho. Mas para além das relações de trabalho se constituem em relações fraternas e cordiais, nos parâmetros de projetos de sociedade em comum que temos, de um mundo mais justo, de maiores oportunidades e de acesso, e de ações humanas que ofereçam menores impactos ambientais. Por nossos amigos de SOLIDARIDAD, WERVEL E MAX HAVELAAR fomos conduzidos e apoiados nesses dez dias, com uma hospitalidade que nos faz ficar muito gratos e sempre buscar corresponder, afinal estar em um país sem dominar o inglês ou a língua local é muito complicado.

Enfim, de todas as viagens que fiz, perto ou distante, algumas coisas valem para esta também. Depois de alguns dias, sentimos saudade de nossa casa, de nossas coisas, de nossos amigos e familiares, de nossa cidade. Isso é a cultura, aquilo que nos enraíza, que nos define, e que como um ímã, nos atrai. Por mais que haja coisas interessantes, beleza e hospitalidade, nos faltam as pessoas, o chimarrão, o arroz e o feijão, nossos de todos os dias. É bom ir, mas é muito bom voltar pra casa. No Sul do Brasil, na chegada a Porto Alegre já me sinto em casa, e pude já na rodoviária comer uma “alaminuta“, com bife de picanha, ovo, salada, arroz e batata frita. Mas é em Chapecó que estou novamente em casa, o que me define e me faz sólido - e feliz - é o meu cotidiano.

Demilson Figueiró Fortes
Primavera de 2008.








terça-feira, 13 de maio de 2008

Um cara chamado Júlio Verne



EU, JULIO VERNE


Texto de Demilson Figueiró Fortes


O livro “Eu, Julio Verne” é uma biografia escrita pelo espanhol J.J. Benitez de um dos escritores mais conhecidos e mais lidos de todos os tempos. Benitez, escritor consagrado da obra best seller Operação Cavalo de Tróia, admirador de Júlio Verne se lançou na busca dos vestígios da passagem do escritor francês por este mundo. O Júlio Verne apresentado é segundo J.J. Benitez uma tradução da obra O Testamento De Um Excêntrico, uma das últimas obras do escritor. Com um detalhe: as confissões, os fatos relatados e as reflexões estavam criptografados. Júlio Verne foi um esotérico apaixonado por esse tipo de jogo de palavras. J.J Benitez teria decifrado-os com a ajuda de computadores. Verdade ou jogo? Não se sabe, mas os fatos são verdadeiros, e isso é que importa. Na obra temos um Júlio Verne retratado de corpo inteiro, nu. Mas então, quem foi Júlio Verne verdadeiro, original, íntimo e sem máscaras?

Júlio Verne nasceu na França em 1828 na cidade de Nantes e morreu em 1905 em Amiens. Foi casado e teve um filho. Escreveu 66 obras de literatura caracterizada como de ficção científica. Foi contemporâneo de Vitor Hugo, importante romancista da literatura francesa e presenciou momentos políticos e culturais de uma França em mudanças do século XIX e de uma Europa efervescente, das revoluções políticas, sociais, econômicas e tecnológicas. De um tempo que a sociedade e o estado estavam consolidando a sua emancipação da igreja. A ciência efervescente, em ebulição, veloz. Tudo acontecia ao mesmo tempo, tanto o capitalismo como os seus opositores avançavam nas suas idéias e influências. A urbanização e as fábricas se multiplicavam. Os inventos não paravam de ser inventados. Um tempo em que tudo parecia possível. E, nossa! Os trens já alcançavam 30 km por hora e isso fascinava as pessoas, mesmo que muitos desconfiassem se isso seria bom. Verne relata indignado, que alguns médicos, tornaram público o temor de que trens a 30 km por hora poderiam provocar danos à saúde das pessoas: seus corpos talvez não agüentassem! Mas enfim, este foi o tempo, a era, a época de Júlio Verne. E ele soube como ninguém captar esse momento que se abria, se desvendava, de descortinava. Um mundo que impressionava. Que florescia, que provocava, que prometia. O mundo das idéias do Iluminismo Europeu, o século das luzes, que iniciara no século XVII e XVIII e seguia a diante no século XIX. Foi neste século que se voou pela primeira vez na historia humana - de balão - e que se inventou algo que fascinou Júlio Verne: a máquina de escrever.

Durante sua vida alcançou a glória, a fama, e desfrutou de uma ótima vida material. Era considerado já na época e posteriormente por muitos, um gênio. Mas, ele não se considerava assim, muito menos se via como um profeta da ciência. No balanço de sua vida, disse não considerar a sua obra algo tão extraordinário, apesar de quase todos o considerarem. E, para espanto de muitos se declarou um homem frustrado com a sua vida. Contou que foi um adolescente frustrado. Queria mesmo era ser marinheiro. No seu testamento diz que o mar e a pintura foram duas de suas paixões. A terceira foi uma bela jovem, sua prima.

O jovem Júlio Verne foi cursar direito em Paris para fugir de um grande amor, a prima de nome Caroline, que foi sua maior paixão e uma das maiores e mais marcantes decepções que marcariam toda a sua vida. Que, segundo ele o fez um homem infeliz por toda a sua vida.

Formou-se em direito, mas negou-se a assumir o escritório de seu pai Pierre Verne. Queria a arte e a literatura para a sua vida. Queria ser viável economicamente como escritor. Mas o jovem Julio Verne vê o tempo passar, escreve peças de teatro, mas sem ser possível tornar real o seu sonho maior – produzir uma literatura de romance científico. A beira dos 30 anos casa-se com uma mulher chamada Honorine e provoca um escândalo na sociedade da época por ser ela viúva e ter dois filhos. Sobre o casamento ele revelou que após o terceiro dia de casamento ao ver a sua mulher dormindo numa certa manhã sentiu a realidade dura que teria que encarar: não amava aquela mulher. A vida de casamento foi tumultuada e infeliz, mas manteve-se casado por conveniência, e segundo ele, por falta de coragem. Com ela teve um filho que se chamou Michel Verne, que ao crescer eles teriam enorme dificuldade de relacionamentos. Essa falta de coragem de romper, de mudar o rumo de sua vida ele se condena no final de sua vida. Um homem que se declarou covarde, por não ter coragem de alterar sua vida e ser feliz. Júlio Verne e sua mulher Honorine viam o mundo de forma diferente, pensavam e tinham sonhos diferentes. Queriam pra si coisas diferentes. Ele, Júlio Verne foi um rebelde. Foi uma pessoa avessa a formalidades sociais e protocolos. De sua mulher, ele a vê como uma oportunista, que sempre o criticou e nunca o apoiou na sua luta para ser um escritor, mas que depois, soube tirar proveito e desfrutar do sucesso de ser mulher dele famoso e com dinheiro.

Como escritor, quem conhece a amplitude da sua obra nota que as mulheres, que tanto o frustraram, ficaram de fora de seus romances. Os homens são os heróis protagonistas, e as mulheres estão ausentes. Foi como uma vingança de um homem que quis a vida toda ser amado e ter reciprocidade nas paixões. Sua maior mágoa, que marcou a existência e a maior responsável por ser ele um homem infeliz foi o desprezo de Caroline, uma bela moça, sua prima, que foi o que ele mais quis na vida, mas, teve dela um olhar irônico e de desprezo.


No decorrer da vida Júlio Verne se apaixona novamente por uma mulher chamada Anne. Mulher casada, eles tentam se afastar, mas a atração foi maior. Nessa relação ela tem coragem e se divorcia. Ele fraqueja e continua casado com sua mulher. O comodismo, o olhar da sociedade, a sua fama, falaram mais alto. Ele se frustra com ele mesmo ainda mais. No final de sua vida ele afirma que Anne morreu de amor. E, que ele morreu em vida, pois viveu triste até o fim da vida. Foi um homem de gênio difícil, intempestivo, brabo, infeliz.

Como escritor demorou a fazer sucesso. Sonhava em ser um escritor lido, vendido, conhecido. Mas isso viria somente a partir dos 35 anos. Até então viveu sofrendo críticas, não entendido por sua mulher e por sua família. Depois de anos pesquisando inventos científicos, acumulando informações em fichas, conhecendo sobre o que iria escrever, ele escreveu seus romances e procurou por um editor. Disciplinado, conta que levantava às cinco da manhã para escrever, horário que sua mulher e filho estavam dormindo e ele tinha ambiente de silêncio. Depois de percorrer muitos editores e quase desistir apostou em um último editor. Este senhor chamava-se Hetzel, que leu e achou que seria vendável, mas propôs modificações. Com este editor ele assinou contrato e publicou seu primeiro livro, e depois este continuaria a ser o seu editor por toda a vida. Apesar de ele o considerar amigo, o senhor Hetzel ganhou muito dinheiro nas costas de Júlio Verne, pois a publicação do livro foi sucesso absoluto, vendendo muitos exemplares. A maior parte do lucro dos livros não era Julio Verne que ganhava e sim o editor.

Do primeiro livro publicado em diante assinou contrato para escrever três obras por ano. Enfim, Júlio Verne, conquista o que sempre sonhou e lutou, torna-se um escritor famoso, começa a ganhar dinheiro e desfrutar do sucesso, da fama, começa a freqüentar os círculos sociais. Sua fama e admiração na época são tanta que é recebido por onde passa por autoridades, por reis e até pelo Papa. O homem Júlio Verne conheceu a glória, mas viveu frustrado. Aquilo que mais o realizaria na vida – o amor das mulheres que amou – ele confessa que não teve. Ele também sentiu as marcas por toda a vida e reclamou da falta de amor e compreensão de seu pai com quem teve briga, distanciamento e guardou rancores. Seu pai foi um daqueles homens duros, de conduta rígida, do tipo que foi prisioneiro do relógio e das rotinas. Júlio Verne teve uma péssima relação com seu pai Pierre Verne que o marcou profundamente. E Júlio Verne repetiu isso com seu filho Michel. Para Julio Verne, seu filho foi um estranho, foi uma decepção e em certo momento seu inimigo. Com seu filho ele foi duro e algumas vezes cruel. Só o tempo e a maturidade trouxe o reencontro e a colaboração entre ambos.

Júlio Verne avaliava que o que o fez um escritor lido por milhares de pessoas foi o trabalho, constância e disciplina e por ter passado pelo jornalismo isso ajudou a dar forma de fácil comunicação. Seu editor Hetzel, na ocasião do primeiro livro deu as dicas do sucesso: ação, aventura, movimento. O que colaborou também foi o fato que, ele foi desde a infância apaixonado pelo mar, por histórias de marinheiro, por viagens. Teve três barcos e viajou muito, por toda a Europa, atravessou o oceano e conheceu a América, esteve nos Estados Unidos, país que admirava e previra que um dia seria uma potência.

O autor ficou conhecido com o livro CINCO SEMANAS EM UM BALÃO e escreveu os sucessos que vendem ainda hoje como A VOLTA AO MUNDO EM 80 DIAS e VINTE MIL LÉGUAS SUBMARINAS, romances científicos muito conhecidos. Júlio Verne é um dos autores mais lidos de todos os tempos em toda a história da literatura mundial.

No final da vida, ao fazer um balanço faz confissões pessoais, se desnuda. Define-se como frustrado e covarde por não ter realizado outras coisas, por não ter escrito sobre outras coisas, por ter se submetido as vontade de seu editor, por não ter lutado mais pelos humildes. Tenta entender sua relação com sua mulher e com seu filho, assume sua parte de culpa. O velho Júlio Verne parece estar prostrado e humilde. Mostra serenidade e coragem ao assumir suas frustrações e fraquezas. Um homem admite que se fechou em si, fez por conta própria um caminho de reclusão, de resignação. Pegou uma trajetória de vida que viu-se incapaz de mudar de rumo. Foi incapaz de fazer outras coisas que o fariam mais feliz. Ele admite que pagou caro, pois viveu sem amor. Confessou não ser um bom pai, nem ser um bom marido. Das suas recordações da mãe muitas lembranças boas, com a compreensão de que esta foi uma mulher submissa ao marido.

Júlio Verne perseguiu seu sonho de ser um escritor lido por milhares de pessoas. De interpretar seu tempo e traduzir para milhares o mundo que se desenhava no porvir. Projetou sua época cem anos a frente e fez milhares de leitores sonharem de olhos abertos. Fez e ainda faz leitores sonharem, viajarem sem sair do lugar, se aventurarem por o mundo afora, de barcos, de balão, de submarino, por terra, pelo ar, pelo mar. Um homem sonhador, obcecado com a idéia de ser um escritor que colocasse a ciência mais próxima das pessoas. Foi, sobretudo, um homem persistente, disciplinado e competente no empreendimento que se propôs. Como escritor a sua obra fala por si. Julio Verne foi um amante da literatura, recordava que para poder comprar uma obra de Shakespeare ficou sem comer três dias, e para comprar outras obras ficou muitos outros foi à custa de seu estômago.

Júlio Verne, que teve uma existência atormentada, ao confessar suas fraquezas se humaniza. Lembra-nos que todos nós temos nossos infernos particulares a enfrentar. Temos nossos cofres trancados onde guardamos nossos segredos. Júlio Verne foi o espírito do século XIX materializado na literatura científica. Júlio Verne foi gênio. Como consta no seu epitáfio: “Rumo à imortalidade e à eterna juventude”.

Júlio Verne alcançou o sucesso pela persistência, por acreditar. Preparou-se para escrever romances científicos. Ele durante anos ia assiduamente a biblioteca e assinou revistas e periódicos científicos, acompanhava o que acontecia na sua época em termos de novidades, inovações e probabilidades futurísticas. Os seus romances científicos tinham a base científica dos conhecimentos da época. Quando escrevia, tentava reunir informações precisas sobre o que estava falando, reunindo e consultando profissionais como engenheiros e técnicos de áreas relacionadas. Da base cientifica deu asas a imaginação e ia além da sua época.

Modesto, disse não ter inventado nada, segundo ele as invenções estavam aparecendo. Tantas invenções que são uma normalidade no nosso tempo eram teorias embrionárias que quase todos duvidavam como o submarino e a viagem a lua. Júlio Verne com sua obra estimulou a imaginação de milhares, que se interressaram pela ciência e pela tecnologia e a infinidade de possibilidades que trariam para a humanidade.

Em setembro de 1873, ele realizou um sonho, um desejo íntimo, o de voar. Ele voou em um balão na companhia de um amigo por apenas meia hora. Quem imaginaria que voaríamos tão rápido e tão alto nos tempos vindouros?

Ao longo da trajetória humana rumo ao espaço, ao universo infinito continuar-se-á lendo Júlio Verne, o homem das estórias extraordinárias, que fez tantos cruzarem mares, voarem alto, irem à lua, se emocionarem, se encantarem, se imaginarem. Daqui a alguns anos nós humanos estaremos em Marte e novamente na lua. Estaremos nas próximas décadas definitivamente dispostos a viajar nos céu infinito. Como o velho e visionário escritor sonhou, num tempo em que quase todos pensavam ser isso algo impossível. Existem pessoas que sempre estarão à frente de seu tempo. Assim foi Júlio Verne.


Demilson Fortes
Chapecó/SC
, 2008.

POESIA

AQUELA
Poesia de Darcy Ribeiro

Minha amada é de carne, de pele e pêlo.
Ora é negra, ora é loura, ora é vermelha.
Minha amada é três. É trinta e três.
Minha amada é lisa, é crespa, é salgada, é doce.

Ela é flor, é fruto, é folha, é tronco.
Também é pão, é sal e manga-rosa.
Minha amada é cidade de ruas e pontes.
É jardim de arrancar flores pelo talo.

Ela é boazuda e é bela como uma fera.
Minha amada é lúbrica, é casta, é catinguenta.
Minha amada tem bocas e bocas de sorver,
De sugar, de espremer, de comer.

Minha amada é funda, latifúndia.
Minha amada é ela, aquela que não vem.
Ainda não veio, nunca veio, ainda não.
Mas virá, ora se virá. A diaba me virá.

terça-feira, 15 de abril de 2008

SAFIYA – A história da nigeriana que sensibilizou o mundo

Livro: "EU, SAFIYA – A história da nigeriana que sensibilizou o mundo"

A jornalista italiana Raffaele Masto proporcionou conhecermos a história de vida de Safiya Hussaini Tungar Tudu, uma mulher africana que foi condenada a pena de morte por apedrejamento. Mas, salva por uma ampla mobilização mundial patrocinada por entidades de direitos humanos e pela imprensa ocidental – principalmente da Europa – que deu intensa cobertura ao caso, mobilizando a opinião pública que exerceu pressão pela absolvição.

Safiya foi condenada, recorreu da sentença e foi absolvida. A sua absolvição se deu devido à repercussão do caso no mundo todo. O que poderia ter sido apenas um caso isolado, de uma pessoa pobre, que vive no interior de um país africano se transformou num debate internacional sobre os direitos humanos, justiça, cultura, religião, condição da mulher no oriente, política e estado laico.

Nesse debate se encontram e se chocam o ocidente e o oriente. Pois, no centro da discussão está o mundo muçulmano, a religião islâmica, a relação entre sociedade, estado e religião. Está a gênese da cultura, os mecanismos que operam, a sua reprodução social e conseqüências.

A Nigéria é um país africano, habitado por diversos povos, que tem hábitos, tradições e visões de sociedade que divergem e que tem suas disputas. O país foi colonizado pela Inglaterra e somente conseguiu a sua libertação nos anos 60. Busca-se naquele país equacionar tradições regionais e religiosas, com desenvolvimento econômico e social e a organização de um estado moderno. Integrar-se ao mundo conservando as tradições religiosas e resolver seus conflitos internos. É o caso da justiça da Nigéria atual que tem uma base legal que tenta contemplar as tradições regionais, a religião islâmica e a legislação construída pelo poder estatal central.

A mulher Safiya, quando criança, era cheia de sonhos e apesar das dificuldades normais dos habitantes da região relata que foi uma menininha feliz. Mas, na medida em que foi crescendo conheceu a dura condição das mulheres na cultura de seu país. Com apenas 13 anos, sem nem ainda ter tido a primeira menstruação, seu pai aceitou o convite de casamento de um pretendente que ela não conhecia. Ela conta que na primeira vez que o viu estimou ter ele 50 anos. Ela o repugnou e não queria casar, não queria sair da casa de seus pais. Mas a decisão não estava com ela e sim com seu pai. Na cultura da sua sociedade as mulheres não opinam e muito menos decidem. Elas andam na rua atrás dos homens, porque são consideradas inferiores. E, se for do desejo do homem, elas devem conviver com outras mulheres sob o mesmo teto, ter o mesmo marido, pois é dado aos homens o direito de ter várias mulheres e todas viverem na mesma casa. Ele decide para qual delas dedica mais atenção. As demais não podem reclamar, devem aceitar, devem calar. Devem ser dedicadas ao marido, aos filhos e a casa.

Safiya, como as demais mulheres de seu país, quando criança teve seu clitóris extirpado. Na cultura da sua sociedade, isso é uma prática comum, porque as mulheres não podem sentir prazer sexual, isso as tornaria, segundo os homens de lá, mulheres não confiáveis, poderiam assim ceder ao desejo. Então se elimina toda a possibilidade do prazer sexual pela eliminação do clitóris. Devido essa prática muitas mulheres acabam morrendo.

Safiya teve quatro maridos e sete filhos. Dois filhos morreram e três ficaram com o pai. Duas meninas ficaram com ela, das quais uma chama-se Adama. Esta menina está na origem de sua condenação a morte, porque foi fruto de uma relação com um homem o qual ela não estava casada. Safiya foi denunciada por seu próprio irmão, que pertencia a um grupo de extremistas islâmicos. Um irmão que ela viu crescer, que ela ajudou a cuidar, que ela carregou no colo, ou melhor, carregou nas costas como é o costume local. Brincou com ele, lhe deu carinho e o amava e foi justamente ele por seu fanatismo religioso que a denunciou a justiça islâmica. Ela ainda teve dois filhos mortos em um curto período por uma doença típica dos países pobres - a catapora. Ela também foi repudiada por três dos seus quatros maridos. Repudiar a mulher é uma prerrogativa dos homens e é vergonhoso e humilhante para uma mulher islâmica.

Poderia a vida de Safiya ter sido apenas mais uma, junto a milhares de mulheres pobres, que sofrem caladas, vivem sem prazer e caminham sempre atrás dos homens pelas ruas de tantas localidades na Nigéria. Quis a vida que sua trajetória fosse diferente das demais. Nesta sua história se juntam fraquezas humanas, tragédias anunciadas, mas também belezas humanas e solidariedade que se colocam a serviço da liberdade e da justiça.

A condenação sofrida por Safiya foi por uma acusação de adultério. Segundo a história, um primo aproximou-se, lhe cercou e a seduziu, lhe prometendo casamento. Ela cedeu, eles se encontraram algumas vezes e ela engravidou. Ele então se recusou a casar com ela. Se ele a aceitasse, mesmo já tendo outra mulher, poderia ter a salvado da condenação, mas ele optou conscientemente deixá-la ser condenada a morte. Safiya não estava casada, tinha sido repudiada já há dois anos. Mas de acordo com a SHARIA, a lei islâmica, ter relações fora do casamento é crime de adultério e a pena pra isso é a morte. A morte por apedrejamento. A pessoa sendo mulher é enterrada até o peito e sendo homem deve ser enterrado até a cintura, com a cabeça coberta com um pano. A pessoa deve ser apedrejada com pedras de um tamanho que não a matem imediatamente, mas que a machuquem e que a façam sofrer antes de morrer, pra que a pessoa morra aos poucos, agonizando.

Após saber de sua sentença de morte Safiya ficou perdida e fugiu, vagou com sua filha bebê nas costas por alguns dias nas savanas africanas, com fome e sede. Foi convencida por um tio a voltar pra casa e lutar pra rever sua condenação. Ela retornou pra casa de seus pais e aí começou uma mudança drástica, não apenas na sua vida, mas na vida de sua família, na vida de sua aldeia. Seu pai, um chefe religioso da tradição islâmica já em avançada idade e a sua mãe a acolheram, lhe deram apoio, lhe ofereceram atenção, solidariedade e carinho. Colocaram-se ao seu lado e se dispuseram a lutar com ela para recorrer a outras instâncias da justiça. Safiya, diante da possibilidade iminente de morrer, pode sentir a mudança de atitude de sua família, unida e solidária em torno de sua salvação. Seu pai, antes distante e apegado a religião, se mostra mais próximo, mais carinhoso. Durante o processo todo ela recebe a solidariedade de vizinhas, de parentes e de pessoas distantes. Inclusive, surpreendentemente vê mulheres da aldeia que passaram a vida toda caladas romperem o silêncio e virem lhe visitar e demonstrar solidariedade, enfrentando seus homens, seus medos e suas tradições.

Tudo mudou na vida de Safiya quando um advogado, que se interessou pelo seu caso e traçou uma estratégia de aliar na sua defesa argumentos do livro sagrado dos muçulmanos, na leis do país, e principalmente uma forte e ampla articulação internacional de divulgação do caso, reunindo apoios em todas as partes do mundo, principalmente em movimentos e ONGs Européias de direitos humanos, que ao se interressarem pelo caso, proporcionaram divulgação e aporte de estrutura para ajudar no caso.

Safiya e sua aldeia foram notícias no mundo todo. Emissoras de televisão como a BBC de Londres e outras mídias acompanharam e deram notoriedade ao caso, isso contribuiu e foi decisivo para ativar a opinião pública internacional, que pediram a absolvição de Safiya ao governo e a justiça da Nigéria.

Depois de meses de processo o tribunal que julgou o caso inocentou Safiya. Essa absolvição foi mais que simplesmente absolver uma mulher. Criou-se uma referência política e uma jurisprudência para casos semelhantes posteriores. Foi uma vitória jurídica, mas foi sobretudo uma vitória política de um setor do país que propõe mudanças no país e quer separar a religião do estado. Foi uma vitória da mobilização e da solidariedade internacional, da comunicação social a serviço da liberdade humana e da justiça. Foi uma vitória das mulheres do mundo oriental que sofrem, são violentadas, são discriminadas e caladas por uma cultura autoritária que não separa tradições, religião, política, leis e estado. Foi uma vitória de todas as mulheres do mundo que, em casos como esses avançam na perspectiva da igualdade de direitos. Disso tudo, se tira muitos exemplos, mas pode-se concluir que às vezes diante das tragédias e da dor se restabelece a solidariedade e o carinho, e, que nas contradições as sociedades têm muitas vezes a chance de avançar. A vida e a liberdade de Safiya pela absolvição - uma mulher pobre e simples de uma aldeia africana - representou nesse episódio uma vitória de toda a humanidade. De uma sociedade de direitos e da democracia. Que na sociedade do futuro, onde quer que seja que os direitos humanos sejam violados, isso seja um problema de todos, em qualquer parte do mundo, e não apenas de quem sofre individualmente.

Demilson Fortes
Chapecó SC










segunda-feira, 31 de março de 2008

Poema Pablo Neruda

O TEU RISO
(Pablo Neruda)

Tira-me o pão, se quiseres,
Tira-me o ar,
Mas não me tires o teu riso.
Não me tires a rosa, a lança que desfolhas,
A água que de súbito brota da tua alegria,
A repentina onda de prata que em ti nasce.
A minha luta é dura
E regresso com os olhos cansados às vezes por verque a terra não muda,
Mas ao entrar teu riso sobe ao céu a procurar-me
E abre-me todas as portas da vida.
Meu amor, nos momentos mais escuros
Solta o teu riso e se de súbito vires que o meu sangue mancha as pedras da rua, ri,
Porque o teu riso será para as minhas mãos como uma espada fresca.
À beira do mar,
No outono,
Teu riso deve erguer sua cascata de espuma,
E na primavera, amor,
Quero teu riso como a flor que esperava,
A flor azul, a rosada minha pátria sonora.
Ri-te da noite, do dia, da lua,
Ri-te das ruas tortas da ilha,
Ri-te deste grosseiro rapaz que te ama,
Mas quando abro os olhos e os fecho,
Qando meus passos vão,
Quando voltam meus passos,
Nega-me o pão, o ar, a luz, a primavera,
Mas nunca o teu riso,
Porque então eu morreria.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

POESIA WALT WHITMAN

Cântico da Estrada Aberta

Walt Whitman



A pé, coração alegre, sigo em direção da estrada aberta,
Sadio, livre, o mundo a minha frente,
O longo caminho marrom a minha frente conduz-me para onde acho que convém.
Daqui para frente, já não peço boa sorte, pois eu mesmo sou a boa sorte,
Daqui para a frente, não mais me queixarei, não mais adiarei, nada mais necessitarei,
Porei fim às lamentações interiores, bibliotecas, críticas lamurientas,
Forte e contente, sigo em direção da estrada aberta.
A terra é suficiente para mim,
Não desejo que as constelações estejam próximas,
Sei que elas estão muito bem onde se situam,
Sei que elas bastam aos que lhes pertencem.

(Até aqui transporto os meus antigos e deliciosos fardos, transporto-os - homens e mulheres - , transporto-os para onde quer que eu vá.
Juro ser para mim impossível libertar-me deles,
Estou deles saturado, e em troca, eu os saturo.)

Tu, estrada por onde entro e olho em redor, creio que não sejas tu quando aqui está,
Creio que existem muitas coisas invisíveis., os enfermos, os analfabetos não são repudiados;
O parto, a procura apressada do médico, o indigente andarilho, o bêbado cambaleante, o bando de operários com suas gargalhadas,
O jovem em fuga, a carruagem dos abastados, o almofadinha, o par em fuga para o casamento,
O mercador madrugando, o carro fúnebre, o movimento de mudanças na cidade,
Eles passam, também eu, todas as coisas passam, ninguém pode ser interditado,
Ninguém que não seja aceito, ninguém que não seja querido por mim.
Tu, ar que me ajudas com alento para que eu fale!

Vós, objetos que convocais da difusão meus intentos, dando-lhes forma!
Tu, ó luz que me envolves, e a todas as coisas em tuas ondas delicadas e equânimes!
Vós, veredas esbatidas, nas irregulares depressões à margem dos caminhos!
Creio que preservais, latentes, existências invisíveis, e sois tão queridos para mim.
Vós, avenidas embandeiradas das cidades! vós, guarnições laterais! vós, navios distantes!
Vós, casas enfileiradas! vós, fachadas cheias de janelas! vós, tetos!
Vós, terraços e entradas! Vós cumeeiras e grades de ferro!
Vós, janelas cujos vidros transparentes permitiram ver tantas coisas!
Vós, portas e degraus ascendentes! vós, pisoteados cruzamentos!
De tudo quanto tenha tocado em vós, creio que conservastes algo em vós, e agora quereis comunicar-me o mesmo secretamente,
Dos vivos e mortos povoastes vossas impassíveis superfícies, e os espíritos deles se agradariam de ser evidentes e amáveis a mim.
A terra expandindo-se à direita e à esquerda,
O quadro vivo, cada aspecto com sua melhor luz,
A música vibrando onde á solicitada, e cessando onde não é desejada,E a alegre voz da estrada aberta, o alegre e suave sentimento da estrada.
Ó via principal por sobre a qual caminho, tu me dizes: Não me abandones!
Tu me dizes: Não te aventures, pois se me deixares, estarás perdido!
Tu me dizes: Já estou preparada, bem pisada e jamais recusada, adere a mim!
Ó estrada aberta, respondo-lhe que não temo deixar-te, embora amando-te,
Tu me exprimes melhor do que posso eu exprimir-me,
Serás para mim mais do que meu poema.

Penso que os feitos heróicos foram todos concebidos sob o céu aberto, e também todos os poemas livres.
Penso que poderia fazer uma parada aqui e operar milagres,
Penso que gostarei de tudo quanto encontrar pela estrada,
Penso que todos quantos eu vir, devem ser felizes.

Desta hora em diante, ordeno a mim mesmo que me liberte de limites e linhas imaginárias,
E, como meu próprio senhor total e absoluto, caminharei para onde eu quiser,
Ouvindo os outros, considerando bem o que eles dizem,
Parando, investigando, recebendo, contemplando,
Gentilmente, porém com irrecusável vontade,
Despindo-me dos embaraços que me poderiam entravar.
Sorvo grandes tragos de espaço,
O leste e o oeste são meus, e o norte e o sul também me pertencem.
Sou mais extenso, melhor mesmo do que pensava,
Não sabia que em mim havia tanta bondade.

Tudo parece belo para mim,
Posso repetir a homens e a mulheres, pois tanto bem tendes feito a mim que eu gostaria de fazer o mesmo a vós,
Recolherei para mim mesmo e para vós, quando caminhar,
Disseminarei a mim mesmo entre homens e mulheres quando caminhar,
Espalharei uma nova alegria e rudeza entre eles,
E se alguém me negar, não me preocupará isso,
Pois quem quer que me aceite será abençoado e me abençoará.(...)Vamos!
Quem quer que sejais, vinde peregrinar comigo!
Peregrinando comigo, encontrareis o que jamais se cansa,
A terra jamais se cansa, a terra é rude, quieta, incompreensível a princípio,
a Natureza é rude e incompreensível a princípio,
Não vos desencorajeis, persisti, pois existem coisas divinas muito ocultas,
Asseguro-vos que existem coisas divinas mais belas do que as palavras podem descrever.
Vamos! não devemos parar por aqui,
Por mais doces que sejam estas coisas armazenadas, por mais conveniente que esta morada pareça, não podemos deter-nos aqui;
Por mais seguro que seja este porto e por mais calmas que sejam estas águas, aqui não devemos ancorar;
Por mais acolhedora que seja a hospitalidade em nosso redor, é permitido a nós recebê-la por um lapso de tempo.
Vamos! os estimulantes serão maiores,
Navegaremos pelos ínvios mares selvagens,
Iremos para onde os ventos sopram, e as ondas se arremessam, e o veleiro yankee se acelera sob velas soltas.

Vamos! com poder e liberdade, a terra e os elementos,
Saúde, altivez, jovialidade, auto-estima, curiosidade;
Vamos! para além de todas as formas!
Para além de vossas fórmulas, ó sacerdotes materialistas com olhos de morcego.
O cadáver putrefato bloqueia a passagem - não muito longe aguarda o sepultamento.
Vamos! antes, porém, tomai o aviso!
Aquele que comigo segue necessita do melhor sangue, músculos, resistência,
Ninguém se atreva a acompanhar-me, mulher ou homem, se não trouxer consigo coragem e saúde,
Não chegueis aqui, se já tiverdes gasto o melhor de vós mesmos,
Somente podem vir aqueles que venham com o corpo saudável, e resoluto,
Nem os enfermos, nem os alcoólatras, nem os deteriorados terão acesso aqui.
Eu mesmo e os meus não convenceremos com argumentos, símiles, rimas,
Nós nos convenceremos apenas com a nossa presença.
Ouvi! serei honesto convosco,
Pois eu não ofereço os velhos e refinados prêmios, mas ofereço novas e árduas recompensas,
Estes são os dias que vos sobrevirão:
Não acumulareis aquilo que se chama riqueza,
Dissipareis com generosa mão tudo quanto conseguirdes ou ganhardes
Apenas chegados à cidade para a qual tenhais sido destinados, dificilmente instalar-vos-ei satisfatoriamente, antes que sejais convocados por irresistível partida,

Tratareis com risos irônicos e zombarias aqueles que permanecem por detrás de vós:
Sejam quais forem os acenos de amor que receberdes, somente respondereis com apaixonados beijos de despedida,
Não permitireis o controle por parte daqueles que estendem suas astutas mãos para vós.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

AMIZADES QUE SURGEM DEBAIXO DOS VIADUTOS

AMIZADES QUE SURGEM DEBAIXO DOS VIADUTOS
(Demilson Fortes)


Assisti, há uns meses atrás a um programa na televisão sobre moradores de rua de São Paulo. Um deles, em depoimento, afirmou que dentre tantas coisas ruins que aconteceram, algumas foram boas. Contou que entre eles há solidariedade no convívio. Da importância do encontro do grupo na hora de refeições que realizam juntos. Nesses momentos, eles conversam e contam suas histórias. Dividem medos e dores, mas também dividem alegrias e sonhos. Em meio aos sentimentos de abandono, das tristezas de uma realidade dura, de quem sente no dia-a-dia e na própria pele o que é o preconceito, a exclusão, as necessidades e a ausência de futuro. Mas, apesar disso tudo, formam uma espécie de comunidade onde há espaço de proteção, de compreensão de carinho e afeto. Cria-se um núcleo de solidariedade. O impressionante é ouvir no depoimento dos moradores, que este espaço de diálogo, de carinho e de compreensão, muitos deles, não tinham em suas casas, com as suas famílias. Fiquei pensado sobre essa triste constatação. Mas, ao mesmo tempo isso mostra que mesmo nos lugares mais inesperados, mais dilacerados socialmente, existe vida pulsante. Que supera os espaços que deveriam ser de diálogo e afeto como a família e a escola. Em que muitas vezes, esses acabam sendo espaços de agressão, de violência, de desentendimento, de estresses diários. Onde há ausência de relação respeitosa. Por vários fatores, esses espaços se fragmentam, respondendo a demandas e respostas de uma sociedade acelerada, veloz. Onde há pouco tempo para os momentos de encontros, de lentidão humana, de socialização, para memória familiar e amizades despretensiosas.

No filme “O Terminal” (filme dirigido por Steven Spielberg e protagonizado por o ator Tom Hanks) acontece assim. Viktor Navorski , é um cara que ficou preso dentro do aeroporto. Ele é um cidadão da República da Krakozhia, que por razões burocráticas relacionadas a relações internacionais entre os dois paises fica detido nos limites do aeroporto. Ali muitas coisas acontecem, mas cria-se um círculo de solidariedade em torno dele por funcionários do aeroporto.

Em baixo das pontes e viadutos das metrópoles, nas noites frias dos invernos, se aquecendo ao redor do fogo, tomando o café quente e contando e relembrando as histórias de vida. Alguns devem ser relatos desesperados, de saudade talvez, contando causos de valentia e heroísmos, de mágoas que precisam ser expelidas, exteriorizadas. Mas, na vida arrumam-se amigos em todos os lugares, inclusive na rua. Há espaço para a amizade, para a reciprocidade, para a confiança, e até para o amor. E o que se espera ser somente tristeza, às vezes é alegre, de uma dimensão humana enorme, pedagógica e que devia servir de exemplo e reflexão para muitos que tem tudo, mas não falta o humano básico. Momentos que os moradores de rua relatam que tem. De se alimentarem juntos e conversarem longamente, muitas famílias, infelizmente, não tem. Talvez porque em baixo do viaduto não tem televisão, não tem a novela diária, onde em muitas casas a televisão, agora a internet pessoal, ou compromissos de cada um são as prioridades. Quando juntos, ficam em frente à TV, paralisados, mudos, extasiados pela mídia. Mas em baixo de muitos viadutos, existem muitas pessoas conversando sobre tudo, por longas horas.

MUDE

Este poema é normalmente atribuído a escritora Clarice Lispector, mas os conhecedores da obra dela e seu próprio filho disseram não ser dela a autoria. É reinvindicada a autoria pelo poeta Edson Marques, o qual as publicações recentes reconhecem como o verdadeiro autor.


MUDE

(Edson Marques)

Mas comece devagar,
Porque a direção é mais importanteque a velocidade.

Sente-se em outra cadeira, no outro lado da mesa.
Mais tarde, mude de mesa.
Quando sair, procure andar pelo outro lado da rua.
Depois, mude de caminho,
Ande por outras ruas, calmamente, observando com atenção os lugares por ondevocê passa.
Tome outros ônibus.
Mude por uns tempos o estilo das roupas.
Dê os teus sapatos velhos.
Procure andar descalço alguns dias.
Tire uma tarde inteira para passear livremente na praia,
Ou no parque, e ouvir o canto dos passarinhos.
Veja o mundo de outras perspectivas.
Abra e feche as gavetase portas com a mão esquerda.
Durma no outro lado da cama...
Depois, procure dormir em outras camas.
Assista a outros programas de tv,
Compre outros jornais...leia outros livros,
Viva outros romances.
Não faça do hábito um estilo de vida.
Ame a novidade.
Durma mais tarde.
Durma mais cedo.
Aprenda uma palavra nova por dia numa outra língua.
Corrija a postura.
Coma um pouco menos,
Escolha comidas diferentes, novos temperos, novas cores, novas delícias.
Tente o novo todo dia.
O novo lado, o novo método, o novo sabor, o novo jeito,
O novo prazer, o novo amor.
A nova vida.
Tente.
Busque novos amigos.
Tente novos amores.
Faça novas relações.
Almoce em outros locais,vá a outros restaurantes,
Tome outro tipo de bebida
Compre pão em outra padaria.
Almoce mais cedo, jante mais tarde ou vice-versa.
Escolha outro mercado...outra marca de sabonete, outro creme dental...
Tome banho em novos horários.
Use canetas de outras cores.
Vá passear em outros lugares.
Ame muito, cada vez mais, de modos diferentes.
Troque de bolsa, de carteira, de malas,
Troque de carro, compre novos óculos,
Escreva outras poesias.
Jogue os velhos relógios,
Quebre delicadamente esses horrorosos despertadores.
Abra conta em outro banco.
Vá a outros cinemas, outros cabeleireiros, outros teatros,
Visite novos museus.
Mude.
Lembre-se de que a Vida é uma só.
E pense seriamente em arrumar um outro emprego,
Uma nova ocupação,
Um trabalho mais light, mais prazeroso, mais digno, mais humano.
Se você não encontrar razões para ser livre, invente-as.
Seja criativo.
E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa, longa, se possível sem destino.
Experimente coisas novas.
Troque novamente.
Mude, de novo.
Experimente outra vez.
Você certamente conhecerá coisas melhores e coisas piores do que as já conhecidas,
Mas não é isso o que importa.
O mais importante é a mudança, o movimento, o dinamismo, a energia.

Só o que está morto não muda !

" Repito por pura alegria de viver: A salvação é pelo risco,
sem o qual a vida não vale a pena "(Clarice Lispector)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Alucinação

Alucinação
(Belchior)

Eu não estou interessado em nenhuma teoria,

Em nenhuma fantasia, nem no algo mais
Nem em tinta pro meu rosto ou oba oba, ou melodia
Para acompanhar bocejos, sonhos matinais
Eu não estou interessado em nenhuma teoria,
Nem nessas coisas do oriente, romances astrais
A minha alucinação é suportar o dia-a-dia,
E meu delírio é a experiência com coisas reais
Um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas, pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite, revólver: cheira cachorro
Os humilhados do parque com os seus jornais
Carneiros, mesa, trabalho, meu corpo que cai do oitavo andar
E a solidão das pessoas dessas capitais
A violência da noite, o movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre que canta e requebra, é demais
Cravos, espinhas no rosto, Rock, Hot Dog, "play it cool, Baby"
Doze jovens coloridos, dois policiais
Cumprindo o seu (maldito)duro dever e defendendo o seu amor e nossa vida
Cumprindo o seu (maldito)duro dever e defendendo o seu amor e nossa vida
Mas eu não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais
Longe o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas me interessa mais
Amar e mudar as coisas,
Amar e mudar as coisas me interessa mais.
Um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas, pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite, revólver: cheira cachorro
Os humilhados do parque com os seus jornais
Carneiros, mesa, trabalho, meu corpo que cai do oitavo andar
E a solidão das pessoas dessas capitais
A violência da noite, o movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre que canta e requebra, é demais
Cravos, espinhas no rosto, Rock, Hot Dog, "play it cool, Baby"
Doze jovens coloridos, dois policiais
Cumprindo o seu (maldito)duro dever e defendendo o seu amor e nossa vida
Cumprindo o seu (maldito)duro dever e defendendo o seu amor e nossa vida
Mas eu não estou interessado em nenhuma teoria,
Em nenhuma fantasia, nem no algo mais
Longe o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas me interessa mais
Amar e mudar as coisas,
Amar e mudar as coisas me interessa mais .

A IMANÊNCIA DOS MEUS SONHOS

A IMANÊNCIA DOS MEUS SONHOS
(Demilson Fortes)

Tenho andando “preocupado” ultimamente. Não como “pré-ocupação”. Mas como “ocupado fixamente”. Inquieto. Absorvido. Enfim, preocupado. Pois, o tempo passa e eu não me distancio de meus sonhos de muito tempo atrás. Sonhos subversivos. De Mudanças. Vejo tantos contemporâneos meus de adolescência e universidade, que na sua maioria já mudaram. Redefiniram suas vidas. E, mudar o mundo e as coisas já não está entre suas prioridades, ou nem mais nos seus horizontes. Como bem falou um dia há muito tempo atrás um velho conhecido: “o sistemão pega”. Se não pega por inteiro, pelo menos em parte, o suficiente para imobilizar. Acomodar. Resignar. Parar.

Inspirado em Cazuza: “E aqueles que iam mudar o mundo, assistem agora tudo em cima do muro”. Muitos vão tropeçando e caindo do muro para o outro lado de onde estivemos juntos. Muitos vão arrumando justificativas para suas opções. Vão cansando. Como Belchior questiona cantando: “Onde anda a tipo afoito que em um, nove, meia, oito, queria tomar o poder. Hoje rei vaselina, corrreu de carrão pra China. Só toma mesmo aspirina, e não quer nem saber”.

Lembro de Oscar Niemeyer que completou recentemente seus cem anos de idade e permanece fiel aos seus sonhos de sociedade e vida. E de tantos outros que são referências importantes de vida, de coerência e ativismo político-social. Mas preocupa-me a minha situação. Pois, comprar o carro do ano, bonito e potente e tantas outras coisas normais para quem já passou dos trinta não me seduz tanto. E isso me preocupa agora. Vejamos bem: é normal neste mundo, alguém do Sul da América do Sul interessar-se pela situação dos indígenas do México, dos aborígines da Austrália, pela situação das mulheres do oriente médio, pela desnutrição das crianças da África, pela condição dos brasileiros do semi-árido nordestino que padecem coma seca, pela morte de inocentes pela pena de morte nos Estados Unidos, pelos silenciados em Cuba, pelo futuro dos jovens da Palestina?

A vida muda e o mundo tem seu dinamismo. Tento entender que isso explica porque “Até bem pouco tempo atrás podería-se mudar o mundo.... Mas quem roubou essa coragem?” (Renato Russo). Mas, definitivamente eu não sou uma pessoa normal. Muitas questões que me impulsionavam há um bom tempo, continuam a pulsar, permanecem intactas. E, isso me preocupa.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Lixo eletrônico: um problema que todos devem assumir.

Ontem foi divulgado que o setor de celulares cresceu quase 21% no Brasil no ano passado. De 100 milhões de aparelhos passou para 120 milhões. O que por um lado representa crescimento da economia brasileira e o que poderia-se dizer de uma inclusão na comunicação cada vez maior, por outro significa o aumento das montanhas de lixo eletrônico, que somado a outros aparelhos domésticos e comerciais causa grande impacto no meio ambiente.
Segundo a ONU, que tem um programa especifico para enfrentar esse problema, cerca de 40 milhões de toneladas em aparelhos obsoletos são descartadas por ano no mundo. Segundo dados de estudo, o lixo eletrônico geralmente libera tóxicos quando incinerado e aparelhos antigos contêm produtos químicos prejudiciais e metais pesados como mercúrio e cádmio. A aquisição de novos produtos leva a um questionamento: para onde vão - ou deveriam ir - os antigos aparelhos, que não servem mais? Para Denise Imbroisi e Antônio Guarita, professores de química da Universidade de Brasília (UnB), o descarte de eletrônicos no lixo comum representa riscos para a população e o meio ambiente. Os metais utilizados na fabricação desses produtos podem ser perigosos.
“Se você tem um tubo de televisão, por exemplo, quando esse tubo é quebrado, pode afetar o solo e um lençol freático, e acabar contaminando o ser humano por conta disso”, explica Denise. Já o mercúrio, contido em lâmpadas, pode causar problemas de estômago, distúrbios renais e neurológico, além de alterações genéticas, segundo os professores.
O cádmio, presente nas baterias de celulares, causa câncer, afeta o sistema nervoso, provoca dores reumáticas e problemas pulmonares. Por sua vez, o zinco, usado na galvanização do aço dos computadores, pode provocar vômitos, diarréias e problemas pulmonares. O manganês, usado em ligas metálicas de computadores, desencadeia anemia, dores abdominais, vômito, impotência e tremores nas mãos. O cloreto de amônia, produto encontrado nas pilhas, pode causar asfixia. E o chumbo, usado para soldar os componentes eletrônicos, provoca irritabilidade, tremores musculares, lentidão de raciocínio, alucinação e insônia.
O que se vê é uma opção pelo uso por pouco tempo e troca por novos modelos e novas tecnologias. As inovações e a indução ao consumismo faz os aparelhos ter uma vida útil pequena. E novas compras...e novos descartes..e o lixo aumenta.
O que precisamos é um debate sobre as responsabilidades, nem devendo ficar somente sobre o poder público resolver a questão - ou não resolver. Legislações ambientais, órgaos de fiscalização e consumidores devem exigir de todas as empresas que desenvolvem produtos e tecnologias planos concretos de recolhimento seguro e reciclagem de todos os componentes dos aparelhos.
E o melhor, desenvolver uma cultura de consumo responsável. Em que cada um assuma a responsabildiade pelo resíduo que gera a partir de seu consumo. Sabendo que o ambiente e o planeta não são depósitos sem consequência de uma cultura consumista irresponsável e individualista.