A
CPI da ignorância bem calculada
Oscar
Calavia Sáez
Sou
professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de
Santa Catarina, que ganha um destaque especial nessas denúncias, e
fui o orientador da tese de doutorado de Flávia Cristina de Melo, a
antropóloga citada nesse documento. São motivos suficientes para
manifestar-me a respeito.
Os
nobres deputados passam revista à legislação que regula as terras
indígenas e quilombolas; às ações de governo que as implementam,
e às dos tribunais que dirimem os conflitos daí decorrentes, e
reclamam de que, no meio desses três poderes, a Universidade, junto
com essas outras entidades, exerça um outro poder (na opinião deles
inadequado e fraudulento) que promove a proliferação dessas terras
indígenas e quilombolas.
A
Universidade não é um poder da República, mas é a encarnação
institucional do saber da República. Quanto ao tema em pauta, esse
saber está bem estabelecido. Sabemos que a formação do Brasil
impôs um pesado tributo sobre a sua população originária: guerra,
integração forçosa, esbulho de suas terras. E recorreu também a
um tráfico de seres humanos que, depois de servirem durante séculos
ao agronegócio da cana e do café e a todos os outros afazeres mais
duros da economia, receberam uma liberdade formal, mas não um lugar
desde donde exerce-la; esse é, se alguém não lembra, a origem da
população negra brasileira.
Esse
é o passado, e para que a história possa seguir em termos mais
pacíficos e mais justos - e, assim, mais realmente prósperos - a
República tem adotado políticas de reconhecimento e reparação,
mais generosas agora do que foram no passado. Mesmo assim
condicionadas a alguns requisitos que o documento dos deputados
revisa: uma história de resistência, posse permanente das terras
nos últimos decênios, etc.
A
partir da Constituição de 1988, o contencioso histórico tem sido
resolvido para muitos, não para todos. Não, precisamente, para os
mais afetados pelos esbulhos que continuaram no último século,
enxotando os índios - especialmente os Guarani - e os pequenos
agricultores negros de um canto a outro de um território que ia
sendo loteado e atribuído a outros proprietários, especialmente no
sul do país.
Os
nobres deputados se escandalizam de que um 14% do território
brasileiro seja destinado a grupos indígenas que representam um
0,30% da população, e pensam que isso é um obstáculo para o
progresso do Brasil. Deveriam talvez se perguntar por quê a
prosperidade do Canadá não está sendo ameaçada por ter destinado
aos povos indígenas - pouco mais vultosos lá - um 40% do seu
território.
Quiçá
seja porque a prosperidade de um país não está atrelada à
celeridade com que se consomem suas terras e seus recursos naturais
com destino a uma exportação lucrativa, e sim a um desenvolvimento
digno de toda a sua população, e a uma administração criteriosa
do seu meio ambiente.
Devem
saber que esse 14% é uma parte fundamental da floresta preservada no
Brasil. Mas, é claro, os deputados devem fazer parte dessa ampla
bancada que entende que também se reservou espaço demais para as
matas e as beiras de rio; que a produção pode avançar sempre mais
um pouco sobre elas, enquanto um milagre segura o solo e a umidade.
Na Universidade sabe-se que esses milagres não existem.
Os
nobres deputados se inquietam porque algumas terras reivindicadas
para índios e quilombolas tenham um alto valor produtivo ou venal -
do qual parecem bem informados.
Haverá
algum propósito oculto nessas reivindicações? Deveriam lembrar que
foi precisamente isso, o valor de suas terras, o motivo para que os
mais fracos fossem uma e outra vez expulsos do lugar onde se
encontravam há setenta, cem ou duzentos anos.
Deveriam
explicar também quão miserável deveria ser o valor de uma terra
para que eles estimassem razoável destiná-la aos seus donos
originais, ou aos descendentes dos escravos.
Os
nobres deputados se preocupam, com muita razão, pela insegurança
jurídica que causam as reivindicações de terras, especialmente
para colonos que ocuparam lotes outrora indígenas. Mas devem saber
que injustiças não resolvidas sempre geram insegurança jurídica.
Por
isso mesmo há muito tempo, em lugar de hostilizar e resistir às
iniciativas de instituições indigenistas, universidades e
Ministério Público, deveriam ter tomado iniciativas próprias que
não fossem, como sempre o foram, as de eliminar, de fato ou de
direito, aquelas populações indígenas ou negras que eles só
conseguem enxergar como empecilhos; que foram esteios da construção
do país mas podem ser já tratadas como bananeira que deu cacho.
O
documento dos deputados não alude a essa suspeita, sempre presente
em CPIs desse teor, de que as terras indígenas ameacem a soberania
nacional, já que com frequência se situam nas fronteiras do país.
Mas talvez não tardará em aparecer também esse bordão, que é uma
amostra de malícia ou de ignorância culpável: esses territórios
estão nas fronteiras porque as fronteiras foram garantidas pela
presença indígena.
O
caso mais conspícuo pode ser o do Amapá, onde a diplomacia
brasileira ganhou uma extensa faixa de terras à Caiena francesa
fazendo reconhecer como brasileiros os índios que lá moravam
-embora então, como ainda agora, esse índios falassem francês…
Os
índios tantas vezes acusados de comprometer a soberania são os
mesmos que durante séculos, antes mesmo da Independência, foram
definidos como “muralhas dos sertões”, a proteger o espaço que
viria a ser o do Brasil, e que o continuam a fazer, integrando em
grande número os batalhões de selva do exército brasileiro.
Bem
longe da Amazônia, os deputados também se preocupam com fronteiras:
pretendem que os índios Guarani que reivindicam terras no sul do
país são, na verdade, argentinos ou paraguaios; o que parece
inconteste é que são povos privados de cidadania sobre cujo
território foram traçados, sem a mais mínima consulta a eles, os
limites desses países.
Os
deputados entendem que, enquanto as fronteiras se apagam para a
expansão do agronegócio brasileiro em territórios vizinhos, elas
devem ser aplicadas com rigor para os seres humanos aos que, a um
lado e outro da fronteira, esse prodigioso desenvolvimento deixa sem
chão.
Eu
entendo, como os deputados, que ONGs e Universidades não deveriam se
intrometer em questões de estado que competem aos três poderes
constitucionais. É lamentável que estes, e muito especialmente o
Legislativo, prefiram advogar por fortunas particulares deixando a
outros as tarefas que interessam ao Brasil no seu conjunto: a defesa
do seu meio ambiente e o destino do seu povo.
Enfim,
vale a pena refletir sobre um detalhe, presente no documento, que tem
sido motivo para ataques irônicos contra o laudo da antropóloga
Flávia de Melo a respeito da aldeia de Mato Preto. Ela teria
revelado que a decisão de se deslocar para essa terra foi tomada
pelos Guarani durante uma sessão religiosa em que se consumiu um chá
alucinógeno.
Superstição,
irracionalidade misturada a decisões sérias? Os nobres deputados
devem ter visitado, em Brasília, o memorial-mausoléu do presidente
Juscelino Kubitschek. Lá, num painel bem visível que trata das
origens do seu empreendimento, ficamos sabendo como a construção de
Brasília foi prevista num sonho profético do santo católico
Giovanni Bosco, que quase um século antes da construção da capital
viu a civilização cristã chegando naqueles sertões então
ocupados “apenas” por índios nus.
Se
a demarcação de uma terra indígena deve ser posta em dúvida por
ter se amparado em visões próprias de uma religião indígena - tão
respeitável como qualquer outra, enquanto perdure o pluralismo
religioso - caberia também se perguntar o quê fazem esses três
poderes ali onde os sonhou um clérigo italiano que jamais pisou
terra brasileira.
*Oscar
Calavia Sáez é professor do Departamento de Antropologia da
Universidade Federal de Santa Catarina
Artigo publicado no site da Universidade Federal de Santa Catarina, em maio de 2013