Entrevista com o sociólogo Boaventura de Sousa Santos. Uma crítica de esquerda.
Folha de S. Paulo -
26/10/2013
'Dilma tem grande
insensibilidade social', diz guru da esquerda
RICARDO MENDONÇA
DE SÃO PAULO
Referência de
militantes de esquerda em todo o mundo, o sociólogo português
Boaventura de Sousa Santos diz que há retrocessos em segmentos dos
direitos humanos no Brasil e critica a presidente Dilma por
demonstrar "insensibilidade social".
Segundo ele, isso fica
"ainda mais evidente por conta [...] do estilo Lula, que era de
muito mais aproximação com os movimentos sociais".
Para Boaventura, no
entanto, Marina Silva (PSB) não representa uma alternativa para a
esquerda. Ele diz que sua eleição fortaleceria correntes religiosas
conservadoras. Além disso, entende que, na economia, Marina seria um
retorno ao que havia antes de de Lula. "Ela é uma cara nova
para a direita", afirma.
Boaventura veio ao
Brasil para o lançamento de dois livros: "Se Deus fosse um
ativista dos direitos humanos" e "Direitos Humanos,
democracia e desenvolvimento", o segundo em coautoria com a
filósofa Marilena Chaui.
Folha - "Se Deus
fosse um ativista dos Direitos Humanos" é um título
provocador. Sugere que o senhor acredita em Deus. E sugere que Deus
poderia dar mais importância para os direitos humanos. É isso?
Boaventura de Sousa
Santos - De fato, não. O título é provocador. Eu não me
comprometo com a existência de Deus. Sou como Pascal [filósofo
francês, 1623-1662]: diria que não temos meios racionais para poder
afirmar com segurança se Deus existe ou não. O que podemos é fazer
uma aposta: apostar se existe ou se não existe. Como sociólogo, o
que penso é que há muita gente que aposta na existência de Deus e
que organiza sua vida ao redor disso.
Estamos num momento de
fortes movimentos sociais em todo o mundo, com protestos, muita
indignação, muita revolta. Alguns desses movimentos trazem no seu
interior pessoas e grupos que seguem diferentes religiões. Ou que
transformam a religião e a existência de Deus no motivo da ação
ou num impulso para a ação. Portanto, eu tive curiosidade de
analisar. Esse fenômeno é extremamente ambíguo.
Quando surgiu a
curiosidade?
Eu já tinha notado desde
o Fórum Social Mundial de 2001, onde vi que havia movimentos sociais
e organizações de diferentes partes do mundo com vivências
religiosas, como a Teologia da Libertação e outros. Tinham uma
dinâmica de grupo onde o elemento religioso, espiritual, era forte.
Havia movimentos indígenas, para quem o elemento da religiosidade é
sempre forte. Essa dimensão do transcendente é que me fascinou,
pois eu venho de uma cultura eurocêntrica, que há muito tempo tenho
criticado, mas sou filho dela, por assim dizer. Essa cultura tinha
resolvido o problema através do que chamamos de secularismo, que é
expulsar a religião do espaço público.
A presença da religião
na política está crescendo?
A religião nunca saiu
verdadeiramente da política. Temos sociedades que são laicas, mas
cujos estados não são. É o caso da Inglaterra, por exemplo. E
temos sociedades onde a convivência é mais laica do que outras.
Tanto assim que hoje a gente faz distinção entre o secularismo e a
secularidade. Secularismo é uma atitude mais radical, de deixar que
a religião fique exclusivamente no espaço privado, na família, na
vida. Secularidade é aquela que permite que haja expressões
[religiosas] no espaço público como afirmação da própria
liberdade de todos os cidadãos.
Mas é evidente, a gente
sabe, a maneira com que a Europa resolveu a questão da separação
da igreja e do Estado no século 17, depois de uma guerra enorme,
nunca foi uma separação total. A igreja continuou a ter uma grande
influência. Foi assim no esforço da colonização. Continuou com
grande influência, ainda tem, nas agendas que o papa Francisco disse
recentemente que são as agendas da cintura para baixo (risos),
acerca das orientações sexuais, aborto, divórcio. Obviamente são
questões de interesse público.
O que parece é que a
crise do Estado secular trouxe uma maior presença da religião no
espaço público. No mundo árabe, no mundo indiano e também no
mundo ocidental. Começou a emergir nas televisões religiosas, cada
vez mais e sobretudo com as correntes evangélicas e pentecostais. É
uma presença pública muito mais forte, mas também um interesse em
influenciar a vida pública, a vida dos Congressos, dos parlamentos.
É o que acontece hoje no Brasil.
No Brasil isso parece
mais evidente a partir da eleição de 2010, quando o assunto chegou
a dominar o debate eleitoral. Como tem sido no resto do mundo?
Na Europa não é tão
forte quanto aqui ou nos Estados Unidos. Mas encontramos no próprio
mundo islâmico, por outro lado, diferentes formas de afirmação
religiosa que não são todas fundamentalistas. Algumas são bastante
moderadas. Mas que também se recusam a pensar que sua dimensão
espiritual e religiosa não têm nada a ver com suas lutas.
Então o mundo hoje é
mais diverso, e dessa diversidade, no meu entender, faz parte uma
maneira muito diversa de ver a religião na vida pública. Isso está
surgindo por todo lado, com formações bem distintas.
Algumas continuam na base
da sociedade, como acontecia com a Teologia da Libertação e as
Comunidades Eclesiais de Base. Mas temos nos últimos anos, no Brasil
muito claramente, a influência [religiosa] na própria cúpula do
Estado, na estrutura política do Estado. Isso é novo.
Era uma corrente que já
vinha dos anos 80 dos Estados Unidos. Uma corrente muito
conservadora. Um dos grandes líderes dessa corrente nos Estados
Unidos fez uma previsão que praticamente se confirmou. Ele disse
assim: "quando um dia não houver uma grande diferença entre
democratas e republicanos, e se forem todos mais ou menos
conservadores, podemos começar a jogar golfe tranquilamente, pois
significa que cumprimos a nossa missão".
E a esquerda com isso?
Seu livro é uma espécie de ajuste?
O pensamento crítico da
esquerda, de uma sociologia crítica, sempre foi muito renitente em
analisar o fenômeno religioso. Pois qualquer análise que não seja
simplesmente dizer que religião é o ópio do povo fica como
suspeita.
Minha experiência no
Fórum Social Mundial fez-me crer que, se eu mantivesse essa atitude
pouco complexa, eu deixaria fora da minha análise muita gente que
genuinamente luta contra a desigualdade, a injustiça, a
discriminação, a opressão. Não é gente alienada. É gente que
realmente luta por um mundo melhor e que, no entanto, tem uma
referência religiosa. Eu não posso considerar que isso é
alienante. Então escrevi esse livro também para fazer as contas
comigo mesmo.
Qual é a sua conclusão?
Termino dizendo que não
há um Deus. Há dois: o Deus dos oprimidos e o Deus dos opressores.
Enquanto a sociedade for dividida e houver tanta desigualdade social,
penso que o Deus que estiver do lado dos oprimidos não se reconhece
num Deus que esteja do lado dos opressores.
O outro livro é sobre
direitos humanos, que parece refluir na medida em que aumenta a
influência religiosa. Alguns políticos têm como principal
plataforma o ataque aos direitos humanos. Quais são as relações
entre as duas coisas?
É obviamente uma
estratégia religiosa. É uma dimensão de todas as correntes
conservadoras, de direita, que existiram ao longo do tempo. Houve, de
fato, uma igreja progressista, de esquerda, que achou que sua missão
era a missão evangélica do sermão da montanha, de estar com os
pobres. Os pobres não estão no parlamento, estão nos bairros, nas
favelas. E é para aí que os missionários devem ir. Mas há toda
uma outra corrente que nunca aceitou que igreja ficasse fora do
governo. Alguns deles entendem que a Bíblia, literalmente, dita o
direito para os Estados e que, portanto, os direitos humanos não
pertencem a esse direito bíblico. É como no mundo islâmico, onde
há conceitos muito hostis aos direitos humanos.
Então, de vários lados,
estamos a assistir a um ataque aos direitos humanos. Esse é o tema
do meu outro livro, escrito por um sociólogo que se considera um
cidadão ativista dos direitos humanos.
Eu também faço uma
crítica aos direitos humanos. Mas uma crítica progressista: os
direitos humanos são pouco. Então eles são criticados por mim por
serem poucos. E a direita critica por serem muito. Eu digo pouco
porque acho que a grande maioria dos cidadãos do mundo não são
sujeitos de direitos humanos, são objeto de discurso de direitos
humanos. São violados constantemente.
Agora, sobretudo após a
queda do Muro de Berlim, em que as narrativas socialistas caíram em
desuso, pelo menos até agora, o que ficou de luta por uma sociedade
melhor foram os direitos humanos. Se o socialismo estivesse na agenda
política, eu tenho certeza que essa direita religiosa incidiria
completamente contra o socialismo.
Nessa questão dos
direitos humanos, em que posição o senhor situa o Brasil hoje?
É uma leitura muito
complexa. Há áreas e domínios dos direitos humanos em que tivemos
conquistas extraordinárias desde o governo Lula. Eu considero
[positiva] toda política de ações afirmativas, do reconhecimento
de que há racismo na sociedade brasileira e de que é preciso tomar
medidas para que afrodescendentes e indígenas possam ter acesso à
educação, numa tradição que vinha desde há muito tempo com
Abadias do Nascimento, mas que nunca teve êxito. Também o fato de
criar um Brasil mais inclusivo, mais diverso, mais colorido, com mais
consciência de sua diversidade étnico cultural. Penso que tudo isso
foi um grande avanço.
Onde eu vejo que há
retrocesso é em toda a área dos direitos humanos que trouxeram
também no seu bojo aquilo que, para um desenvolvimentista, pode ser
considerado um obstáculo.
Os direitos humanos
trouxeram consigo o reconhecimento dos direitos coletivos. E os
direitos coletivos do povos indígenas estão protegidos,
internacionalmente, por convenções, aliás, que o Brasil assinou,
sobretudo o convênio 169 [da Organização Internacional do
Trabalho], que obriga consulta prévia, livre, informada e de boa fé.
E de boa fé! E que, hoje em dia, depois da declaração das Nações
Unidas de 2007 sobre os direitos dos povos indígenas, firma-se na
jurisprudência da Corte Internacional de Direitos Humanos que sempre
que estejam em causa a própria sobrevivência de um povo, seja uma
barragem, seja um projeto de mineração, a consulta deve ser
vinculante. Bem, nesse caso, eu tenho que dizer que tem havido
retrocesso.
Não é só na demarcação
de terras. Tem ainda a questão de saber se a concessão de novas
terras são atribuição do parlamento e não do Executivo, o que
seria a mesma coisa que dizer que nunca mais haverá qualquer
concessão.
Então eu acho que a
presidente Dilma está a perder uma batalha, está realmente com uma
grande insensibilidade ao movimento indígena camponês, que foi uma
grande forma de transformação em toda América Latina.
O senhor considera o
governo Dilma de direita?
Eu venho da Bolívia,
estive no Equador, conheço os outros países [da região]. Alguns
deles são muito mais à direita no governo, é o caso do México. E
lá estamos assistindo a uma grande vitória de um povo indígena que
lutou contra uma barragem, La Parota, e conseguiu efetivamente parar
essa barragem.
Eu colocaria a presidente
Dilma no mesmo pé em que coloco o presidente da Bolívia [Evo
Morales] e o governo do Equador. São governos que eu considero
progressistas. Não os considero de direita. Eles, de alguma maneira,
fazem muito do que sempre fez a direita: têm o mesmo modelo de
acumulação, o mesmo modelo capitalista, o mesmo neoliberalismo,
aproveitaram a mesma onda de extrativismo, com a reprimarização da
economia.
Mas o que esses governos
fazem e que a direita nunca fez na América Latina foi redistribuir
esses rendimentos de alguma maneira. Distribuem muito mais que os
outros governos. Para muitos grupos sociais, isso não é suficiente.
Até porque essa forma de redistribuição é relativamente precária,
não é com direitos universais, é algo que pode parar de um momento
para outro. Mas há problemas. Os ambientais são extraordinários.
Qual o senhor citaria?
É certo que o Congresso
é outra coisa. Mas eu fico espantado como é que é possível,
estando a frente do país alguém como Dilma Rousseff, como é
possível abrir uma discussão sobre a semente Terminator no
Congresso. É a semente que fica estéril, a suicida. Isso está
suspenso. É ilegal para o mundo inteiro. É um escândalo, se
aprovar. Ela foi suspensa no âmbito da convenção de biodiversidade
exatamente porque coloca os camponeses nas mãos da Monsanto e das
outras três ou quatro empresas que têm a patente. Isso é o fim da
agricultura camponesa.
Em muitos países é a
agricultura camponesa que alimenta as populações, pois a grande
indústria produz soja e outros produtos de exportação. A
diversidade da produção agrícola é feita por pequenas
propriedades, a agricultura familiar, a camponesa. Portanto isso
significa arrogância dessas empresas transnacionais que têm acesso
ao parlamento para ditar sua lei. E se você olhar bem, há uma
aliança entre os religiosos evangélicos e os ruralistas. Então
aqui há uma convergência de forças, uns que vêm da tradição
ruralista, outros que vêm de uma tradição religiosa de direita,
que se armou contra o comunismo e contra a revolução na América
Latina.
Então não considero a
presidente Dilma um governo de direita por sua capacidade de
distribuição, agora há uma grande insensibilidade, que não vem de
agora.
Onde mais há problemas?
Basta ver quantas vezes
foram recebidas a CUT e outras entidades antes desses protestos:
zero. Portanto significa que a presidente Dilma tem uma grande
insensibilidade social, que se tornou ainda mais evidente por conta
da posição do Lula, ao estilo Lula, que era de muito mais
aproximação com os movimentos sociais. Isso perdeu-se. Eu considero
uma perda muito grave.
A ex-ministra Marina
Silva tem um discurso mais próximo desses segmentos que o senhor
mencionou, meio ambiente, indígenas. Ela serve para a esquerda?
Eu penso que não. Sou
amigo da Marina Silva, estive em vários painéis com ela e comungo
com ela muitas causas ambientalistas. Mas acho que não porque a
influência religiosa no país iria nitidamente continuar a
desequilibrar. A dimensão religiosa que está por trás dela é uma
dimensão que, no meu entender, tem mais um potencial conservador do
que um potencial da Teologia da Libertação. Portanto é um
potencializador de uma interferência conservadora na sociedade.
Isso pode ter outras
dimensões para os direitos das mulheres, dos homossexuais, para as
diversidades sexuais.
Por outro lado, sua
política econômica, por aquilo que tenho visto e pelos apoios que
ela recorre, é realmente uma tentativa de, com uma cara nova, uma
mulher, repor o sistema que estava antes. Seria desacelerar ainda
mais as políticas de redistribuição social que foram aquelas que,
no meu entender, mais caracterizaram o período Lula.
Não penso que a Marina
Silva esteja muito sensível a isso tudo. Então eu penso que ela é
uma cara nova para a direita. Não é uma cara para a esquerda, no
meu entender.
Milhares de pessoas foram
às ruas no Brasil para protestar por diversas causas. Tudo muito
rápido e inédito. O senhor tem alguma reflexão sobre o que ocorreu
no país?
Analiso os diversos
movimentos que surgiram no mundo desde 2011: a primavera árabe, o
ocuppy [Wall Street, nos EUA], o dos indignados no sul da Europa e na
Grécia, o movimento "Yo soy 132", que é contra a fraude
eleitoral no México, o movimento estudantil do Chile em 2012 e
também os protestos no Brasil.
Considero que 2011-2013 é
um daqueles momentos no mundo como nós tivemos em 1968, 1917, 1848.
São momentos de movimentos revolucionários.
O que os caracterizam
fundamentalmente hoje? São sinais de que, em muitos países, estamos
a entrar num processo de guerra civil de baixa intensidade: uma
grande agitação social porque as instituições não funcionam
propriamente. Na Europa, a rua é o único espaço público que não
está colonizado pelo capital financeiro. Nos EUA, a mesma coisa. Há
uma deterioração das instituições, uma ideia de que a democracia
foi derrotada pelo capitalismo. No sul da Europa isso parece muito
claro, e as ruas e as praças são os únicos espaços onde o cidadão
pode se manifestar.
Quem é esse cidadão?
É um cidadão diferente
dos [cidadãos dos] processos anteriores. Um erro do pensamento
político foi pensar em cidadãos organizados que fazem essas
revoltas. De fato, não é assim. Essas revoltas são feitas,
normalmente, por jovens que nunca participaram de movimento social,
de partidos, que nunca votaram, nunca estiveram em nenhuma ONG. E de
repente estão na rua. Isso não foi só aqui. Foi no Egito, na
Europa, nos EUA. São movimentos que surgem a partir de momentos em
que as instituições parecem não dar respostas às aspirações
populares. Obviamente são diferentes. Não se pode pôr a primavera
árabe ao lado do Brasil ou do occupy. São coisas distintas.
O movimento do Brasil tem
uma genealogia, uma história, semelhante ao movimento dos indignados
de Portugal, da Espanha e da Grécia. São jovens democracias onde
houve uma expectativa de uma social-democracia, uma democracia com
fortes direitos sociais, de educação, saúde, transporte. Havia uma
expectativa de uma sociedade mais inclusiva. Essa era a promessa. A
democracia não é simplesmente mero voto e a representação
política, mas se traduz em direitos sociais e econômicos. Portanto
nesses casos [Brasil e indignados], os movimentos surgem da ruína
dessas aspirações. Democracias suficientemente jovens para ainda
acreditar que eles têm esses direitos.
Os occupy já nem têm
sequer essa ilusão, pois a democracia americana é cada vez mais
restringida e eu nem acho mais que é uma democracia a sério nos
EUA; eu vivo lá metade do ano, como você sabe, e conheço o país.
Uma crise da democracia?
Aqui [no Brasil], a
juventude se dá conta que aquela democracia que ela acreditou não
funciona, está sendo derrotada pelo capitalismo. Os países dão
mais atenção aos mercados internacionais, aos grandes grupos
transnacionais, do que dão aos seus cidadãos. Na Europa isso é
muito claro. O meu governo [Portugal] está mais atento à agência
de classificação Standard & Poor's, sobre o que ela dirá
amanhã sobre a taxa de rating do crédito português, do que as
demandas dos portugueses, as reivindicações. E quanto mais as
pessoas vão para as ruas, mais abaixa a nota do crédito
internacional. Ou seja: a democracia está sendo usada contra os
cidadãos. A democracia é exercida hoje contra o bem estar. Tinha-se
a ideia que caminhávamos para um estado de bem estar. De alguma
maneira, hoje, o Estado é um Estado de mal estar. O que aconteceu no
Brasil, no meu entender, é essa frustração.
Compartilha com os outros
movimentos essa espontaneidade. E o fato de não ser ideologicamente
unitária, é o mais diverso possível. E com demandas
contraditórias. E com uma característica também comum em todos
eles: prevalece o negativo sobre o positivo. Esses grupos, que eu nem
chamo de movimentos sociais, chamo de presenças coletivas, sabem o
que não querer, mas não sabem bem o que querem. Podem ter uma
demanda, como foi o caso do Movimento Passe Livre, mas essa é uma
demanda que rapidamente pode ser superada por grandes demandas de
superação do Estado. Como aconteceu na Tunísia. O moço que se
imolou na Tunísia queria apenas que legalizassem o seu comércio de
rua, e de repente aquilo era uma luta contra a ditadura.
O que todos estão a
dizer? Estão a dizer que o mundo está escandalosamente desigual.
Essa não é uma questão da pobreza. É que nos países,
internamente, a diferença entre ricos e pobres nunca foi tão
grande. Em meio aos maiores sacrifícios da sociedade portuguesa, com
cerca de 50% dos jovens até 25 anos sem emprego, o número de ricos
aumentou em Portugal nos últimos anos. E os ricos ficaram ainda mais
ricos.
Essa descrição não
coincide exatamente com o que ocorreu no Brasil. A distribuição de
renda brasileira medida pelo índice Gini ainda é uma das piores do
mundo, mas melhorou.
Sim, está reduzindo [a
desigualdade de renda], nunca tinha acontecido antes, isso é preciso
reconhecer. O que nós temos que ver, isso é minha leitura, é que
as políticas que foram criadas para essa redução ocorrer --e por
isso que eu digo que [Dilma] não é um governo de direita-- são as
que eu chamo de políticas de primeira geração. A segunda geração
é que essa gente que agora come bem, agora que tem algum apoio, quer
evoluir, quer ir para a universidade, quer outra qualidade dos
serviços públicos. E aí estancou.
O senhor disse que esses
grupos sabem dizer o que não querem, mas não sabem dizer bem o que
querem. No Brasil, entre as coisas que eles diziam não querer
estavam os partidos políticos. Teve até hostilidade, violência. O
senhor vê isso com preocupação?
Sim, evidentemente. Mas
ao mesmo tempo compreendo o que está ocorrendo. É aquilo que eu
disse, que a democracia representativa liberal foi dominada e vencida
pelo capitalismo, pela corrupção, pela presença do dinheiro nas
eleições, nas campanhas eleitorais. Isso faz com que os
representantes estejam cada vez mais distantes dos representados. É
aquilo que a gente chama de patologia da representação: os
representados não se sentem representados por seus representantes.
É um processo conhecido,
pois há anos discute-se no Brasil a necessidade de se fazer uma
reforma política, uma reforma do sistema eleitoral, do financiamento
dos partidos. E todas essas reformas têm sido bloqueadas. Então
essa negação não é propriamente a negação da democracia
representativa. São duas ligações importantes: esta democracia
participativa não serve, o dinheiro não pode ter o poder que tem
hoje nas eleições; e a democracia representativa nas sociedades
complexas não chega, ela precisa ser complementada pela democracia
participativa.
Eu acho extraordinário
que, no caso da primavera árabe --jovens de vários países que não
tiveram democracia propriamente-- a grande bandeira é a democracia
real. Portanto quando dizem que há luta contra os partidos, não é
que eles estejam dizendo que, em princípio, eles não têm nenhuma
validade. É esta forma de democracia, a do poder do dinheiro, que
está derrotada. E se ela não se alterar, temos altos riscos para a
sociedade. É por isso que eu digo, escrevi dois artigos sobre isso,
que há uma grande oportunidade: a oportunidade de uma reforma
política. Esse é grande tema com o qual o PT chegou ao poder, não
podemos esquecer.
Mas nos protestos ninguém
levantou uma plaquinha sequer pedindo reforma política.
(risos) É por isso que
eu digo: as pessoas não sabem o que querem, sabem o que não querem.
Como é que se faz formulação política? Para sair daquilo que elas
não querem, é preciso uma reforma política. Obviamente. E é por
isso que temos partidos.
Eu acho que cabe à
classe política encontrar as soluções. Os jovens não têm que
saber [como fazer]. Nem dá para exigir que eles saibam. Como é que
vai fazer um serviço unificado de saúde suficientemente robusto?
Não têm que saber. Há técnicos e há políticos que vão fazer
isso. A reforma política é a mesma coisa. E a presidente Dilma deu
uma certa esperança quando falou nas cinco medidas que seriam
tomadas e incluiu a reforma política, mas, infelizmente, os poderes
conservadores do Congresso...
Foi nesse contexto que
surgiram os grupos "black blocs", com a tática de causar
danos materiais para fazer suas denúncias. Eles aparecem em tudo, da
greve de professores à ação para libertar cachorros de um
laboratório de pesquisa médica. Qual é a opinião do senhor sobre
esses grupos?
Esses grupos nasceram nos
anos 70 na Alemanha, na luta contra a energia nuclear. Na década de
80, adquiriram uma ideologia autonomista. A ideia de que "temos
que criar na sociedade espaços de autonomia que não dependem do
capitalismo e que, portanto, podem oferecer outra maneira de viver".
Tiveram muita repercussão.
No momento em que começam
os protestos contra a globalização, Seatle (EUA) é o marco, eles
começaram a assumir duas características de sua tática: de um lado
a ideia de violência contra propriedades símbolos do capitalismo,
que pode ser um McDonald's, um banco; de outro lado, a defesa dos
manifestantes. Eles assumiram isso. Em muitas mobilizações, foram
eles que, diante da violência policial, defenderam mais eficazmente
os manifestantes pacíficos. Então a violência policial, no meu
entender, é uma das grandes responsáveis pelo protagonismo "black
bloc". Eles enfrentavam. E a notícia muitas vezes passava a ser
o enfrentamento entre os "black blocs" e da polícia.
Um terceiro fator que
complica, principalmente a partir do ano 2000, isso está
documentado, é que a polícia infiltra o "black bloc" para
depois justificar sua violência. Isso está demonstrado em vários
países. E este é o contexto em que nós estamos.
Mas como entender o
"black bloc"?
Não são grupos de
extrema-direita. Eu penso que, acima de tudo, temos que entender por
que surgem esses movimentos. E encontrarmos, através do diálogo,
formas de ver se estas são as melhores formas de luta. No meu
entendimento, como já disse, estamos num momento político daquilo
que chamo de guerra civil de baixa intensidade. Numa guerra assim,
queremos que cada vez mais gente venha para a rua. No meu entender,
para fazer pressão pacífica sobre os Estados.
Quando o capital
financeiro será cada vez mais influentes, quando as Monsantos
conseguem pôr no Congresso a [semente] Terminator, quando os
evangélicos dominam a agenda política, quando os ruralistas dominam
a agenda política, os governos, mesmo que tenham uma orientação de
esquerda, precisam ser pressionados de baixo. A partir de baixo. E
essa pressão tem de ser pacífica. E tem de ser inclusiva. E para
ser inclusiva tem de trazer para a rua as pessoas que nunca foram
para a rua, os chamados despolitizados, as avós, os netos.
Ora bem, se é esse o
objetivo, o "black bloc" é uma força contraproducente. As
pessoas querem ir para a manifestação, mas com medo que haja
violência, com medo da brutalidade e violência policial, dizem ao
final "não vamos". Penso, portanto, que o "black
bloc" deve analisar em que contexto nós estamos.
O ex-presidente Lula fez
uma crítica direta ao uso das máscaras. Disse que participou de
muita manifestação de rua, mas que nunca usou máscara porque não
tinha vergonha do que fazia.
Eu acho que é uma
posição legítima, mas não sei se é a única resposta que se pode
dar. As pessoas têm suas formas de representação. Exemplo disso é
o governo do Peña Nieto, o [partido] PRI, no México, que eu
considero de direita. Nas últimas manifestações, o protesto de
professores no México, teve a presença dos "black blocs"
com as máscaras negras. E chegou ao ponto também em que o governo
está para promulgar uma lei que proíbe as máscaras. Sabe qual foi
a reação? Os homossexuais começaram a usar máscaras pink. Foram
para os protestos com máscaras cor-de-rosa, máscara homossexual.
Então a polícia vai prender? Eles não praticam nenhuma violência,
usam máscara agora para afirmar a diversidade sexual.
Isso é para ver como a
coisa é complicada. Criou-se uma solidariedade entre os homossexuais
e o "black bloc". Então, por vezes, as autoridades se
excedem na forma. Eu penso que essa não é a forma. Penso que a
forma é de dialogar, de trazer para uma mesa de conversa. Obviamente
é uma discussão muito difícil, mas é uma discussão que é
preciso ter.
* BOAVENTURA DE SOUZA
SANTOS Sociólogo português, 72 anos
VIDA ACADÊMICA Doutor
pela Universidade de Yale (EUA), professor da Universidade de Coimbra
(Portugal) e da Universidade de Wisconsin (EUA)
LIVRO RECENTE "Se
Deus fosse um ativista dos direitos humanos" (Cortez Editora)