Para
onde aponta a crise do clima
Washington
Novaes* - 14 de fevereiro de 2014 - Jornal O Estado de S.Paulo
O
noticiário recente sobre a mais longa estiagem no Brasil em seis
décadas - e suas graves consequências em vários setores de
atividade no País - traz consigo memórias incômodas e a sensação
de despreparo do poder público e da sociedade para a questão das
mudanças do clima. Há muitas décadas numerosos estudos científicos
vêm alertando para a gravidade e o agravamento progressivo das
mudanças, para a necessidade de implantar sem perda de tempo
políticas e programas de "mitigação" e "adaptação"
a essas transformações. Mas têm encontrado pela frente o ceticismo
- quando não o descaso. Ou a crença nas avaliações dos chamados
"céticos do clima".
Para
não ter de recuar muito no tempo o autor destas linhas retorna, por
exemplo, ao que escreveu neste mesmo espaço há uma década
(6/3/2004), quando o panorama na área do clima tinha causas opostas
às de hoje: o Nordeste, em janeiro daquele ano, recebera um volume
de chuvas sete vezes maior que sua média histórica; em alguns
pontos de Goiás, em 50 dias chovera tanto quanto em todo o ano
anterior; açudes e barragens rompiam-se; abriam-se comportas para
evitar rompimentos e provocavam-se graves inundações a jusante.
Cientistas clamavam por um sistema oficial de informações que
habilitasse a sociedade para programas de adaptação e mitigação -
à semelhança do que a Europa já fazia, devolvendo seus rios ao
curso natural, eliminando barragens, evacuando as margens de rios,
instalando sistemas de drenagem urbana. O então secretário-geral da
ONU, Kofi Annan, advertia: "São visíveis os sinais de mudanças
climáticas, com inundações e secas cada vez mais graves". Mas
outro artigo (26/3/2004) já acentuava que "no Brasil não se
conseguiu ainda definir regras" nem mesmo para um plano nacional
de saneamento básico.
Quem
quiser recuar ainda mais no tempo pode ir ao artigo de 31/7/1998, há
mais de 15 anos, que se referia à maior estiagem no Rio Cuiabá em
65 anos, que ameaçava o fornecimento de água a 1 milhão de pessoas
- ao contrário do que acontecia no Rio Branco, no Acre, com "volumes
inéditos de chuvas" levando a temer que se repetisse por aqui o
drama por que passava a China, com as maiores inundações em 40
anos, 2,5 mil mortos, 1 milhão de desabrigados. Dizia então o
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) que de
1967 a 1990 chegara a 3 bilhões o número de pessoas atingidas pelos
desastres climáticos.
Agora
São Paulo enfrenta os dias mais quentes desde fevereiro de 1943. O
"sistema Cantareira está à beira do colapso" (Estado,
8/2) e ameaça reduzir em 45% o suprimento de toda a água na Região
Metropolitana de São Paulo. O volume de água armazenado já caiu
13,7% em relação ao que era em 1930. Guarulhos sofre com o
racionamento dia sim, dia não. E o panorama se repete praticamente
em todo o País, intensificando o consumo de energia elétrica.
Estudiosos
como sir Nicholas Stern dizem que o aumento da temperatura no mundo
será de 4 a 5 graus até o fim do século. James Lovelock, autor da
"teoria Gaia", chega a prever (Rolling Stone, novembro de
2013) que "a raça humana está condenada" a perder mais de
5 bilhões da população até 2100, com o Saara invadindo a Europa,
Berlim tornando-se mais quente do que Bagdá. A temperatura subirá 8
graus na América do Norte e na Europa. Segundo a Organização
Mundial de Meteorologia, "não haverá pausa no aumento da
temperatura"; cada década será mais quente.
Michael
Bloomberg, o bilionário ex-prefeito de Nova York, hoje à frente de
várias iniciativas "ambientalistas", sugere o fechamento
imediato de todas as minas de carvão mineral, a maior fonte de
poluição - mas por aqui já pusemos em atividade as nossas
termoelétricas a carvão, as mais poluidoras e mais caras. Enquanto
isso, a safra de soja em São Paulo já se perdeu em 40% (Estado,
7/2), com prejuízo de R$ 744 milhões. Em Goiás já se foram 15%. E
o mundo subsidia o consumo de petróleo.
Não
adianta mais exorcizar os que os "céticos" chamavam de
"profetas do Apocalipse". Nem fechar os olhos à realidade.
Temos de conceber e adotar com muita urgência um plano nacional para
o clima. Que inclua regras rigorosas para a ocupação do solo,
impeça o desmatamento, promova a recuperação de áreas, proteja os
recursos hídricos. Obrigue os administradores públicos a tratar com
urgência também do solo urbano e dos planos de drenagem, além da
contenção das emissões de poluentes nos transportes. E que nos
imponha repensar nossa matriz energética. É preciso conferir
prioridade absoluta às fontes de energia "limpas" e
renováveis. Avançar com a energia eólica, já competitiva e ainda
desprezada. Estimular os formatos de energia solar, que avançam a
toda a velocidade no mundo. Voltar a conferir preferência às
energias de biomassas, inclusive ao álcool, em que o Brasil foi
pioneiro e agora importa dos Estados Unidos para baixar índices de
inflação, com o etanol nas bombas prejudicado pela política
anti-inflação de segurar os preços dos combustíveis.
Não
é só. Temos de caminhar sem retardo para conferir, na matriz
energética, prioridade para a microgeração distribuída. Gerada
localmente e consumida também localmente, essa microgeração - que
pode ser, por exemplo, resultante do aproveitamento de biogás
proveniente de dejetos animais, como se está fazendo no Paraná e se
começa a fazer em outros lugares - permite ao produtor rural deixar
de pagar contas de energia e ainda vender o excedente da produção
às distribuidoras. Sem "linhões" fantásticos, caríssimos
(já temos mais de 100 mil quilômetros deles), desperdiçadores de
energia. Sem megaprojetos de geração que custam os olhos da cara e
exigem juros gigantescos.
Este
é o caminho do futuro: o desenvolvimento local, com microgeração
de energia. Sem concentrar a propriedade, sem concentrar a renda. E
se tivermos competência e sorte, reduzindo a emissão de poluentes e
contribuindo para atenuar as mudanças do clima.
*Washington
Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.br