quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Desejo Proibido

DESEJO PROIBIDO - As mulheres, a Sociedade e o Estado

Texto de Demilson Figueiró Fortes

O filme Desejo Proibido (EUA, 1996, direção de Cher e Nancy Savoca) discute o tema do aborto, apresentando três histórias de mulheres, que viveram o mesmo drama, em épocas diferentes, em condições sociais e históricas diferentes, mas protagonistas do dilema de interromper a gravidez.

A primeira, Claire, mulher que ficou viúva muito jovem, viveu em uma época conservadora, e, apesar de ser enfermeira, ao decidir sobre abortar teve de procurar ajuda em locais clandestinos, sem higiene, colocando sua vida em risco, sofreu o que é muito comum nestes casos, hemorragia e risco de infecção. Alem disso, enfrentou a condenação moral de pessoas próximas, as quais, nesses momentos dramáticos da vida, preferem o juízo moral a prestar apoio, ajuda e solidariedade. A segunda, Barbara, mesmo já tendo três filhos, viveu dúvida semelhante e por questões pessoais, de caráter moral, decidiu ter mais um filho, mesmo tendo que interromper coisas programadas para si, como a carreira profissional e os estudos. Ela, entretanto, teve diálogo e contou com a presença da sua família, não ficou só. A terceira, Christine, jovem e solteira, teve um caso com um professor. Apesar de cheia de dúvidas, optou por fazer o aborto em uma clínica médica legalizada, com assistência médica de qualidade, isso foi possível por viver em período histórico mais recente.

Três casos com o mesmo drama: a decisão da mulher diante de uma gravidez não programada. Na ficção, como na realidade, esse é um drama e uma carga emocional colocados exclusivamente sobre as mulheres, que as acompanham desde sempre. Os homens, que participam do ato sexual, ficam isentos do drama, da decisão, da dor, do risco. Se há condenação moral é sobre a mulher que recai. No terceiro caso, o homem casado, professor, continuou a sua vida em seu curso normal, com a responsabilidade pesando exclusivamente sobre a jovem. Nos três casos, a mulher e seus dilemas: a solidão diante da decisão, a culpa, o arrependimento, o peso dos valores religiosos e dos valores familiares e sociais. A angústia e o medo. A incerteza do que é certo e do que é errado. O medo de se submeter a um aborto arriscado ou de criar uma criança sem estar querendo isso para sua vida naquele momento, com toda a responsabilidade que é ter e criar um filho. Está só a mulher, a sua realidade socioeconômica e cultural, e o peso psicológico do provável julgamento que terá da sociedade e do Estado. Assim tem sido ao longo dos anos. Aos homens, o prazer e um simples ejacular, sem compromisso nenhum com as conseqüências do ato.

A pílula anticoncepcional foi uma revolução na vida da mulher. É claro que foi para toda a humanidade, mas às mulheres em particular que puderam ter um mecanismo que lhes possibilitou maior controle sobre a concepção e sobre seu corpo. A partir dessa, sentiram-se mais livres, para exercitarem a sexualidade e os desejos, até então quase que proibidos, pois pela segurança deveriam ser reprimidos, já que o prazer estava relacionado diretamente ao medo do que poderia vir depois. A pílula abre caminho para uma revolução de poder sentir o prazer sem a culpa e sem o medo, sem o risco. Desde então, as mulheres passaram a ocupar mais espaços fora do lar, abriram caminho em quase todas as profissões. A marcha pela igualdade teve na pílula um acontecimento revolucionário. Com certeza foi aí nesse momento, que o machismo sofreu seu maior golpe. A pílula é símbolo da libertação de tantas amarras, entre estas, a do olhar conservador da sociedade.

O filme Desejo Proibido mostra, no terceiro caso, a jovem acadêmica que optou por fazer o aborto, a militância de grupos anti-aborto, que buscam desestimular as mulheres da prática, uns sendo levados ao fanatismo, imaginando estarem falando em nome de Deus e salvando vidas. Mesmo que ignorem que estão condenando vidas não somente à morte imediata, mas a uma vida talvez sem amor, com o risco da exclusão e marginalização social, como acontece com tantas crianças das periferias. Os grupos religiosos anti-aborto dizem pensar no outro, mas de fato pensam em si mesmos, na sua crença, na sua culpa, em resolver os seus próprios dilemas existenciais.

No Brasil, recentemente, o tema do aborto foi pautado na campanha eleitoral. Após a campanha, o assunto saiu dos jornais e da televisão de forma mágica. Foi colocado, na eleição, por oportunismo dos setores conservadores que queriam pautar temas que pudessem fragilizar a candidata Dilma. Já que atacar o governo do presidente Lula estava muito difícil, se usou de várias tentativas com assuntos polêmicos que fossem capazes de provocar dúvidas e rejeição no eleitor em relação à candidata. Nestes momentos em que a esquerda enfrenta a direita, a religião, o moralismo, os valores conservadores entram em cena, como em outros casos em que o ter religião, ser ateu, apoiar a união civil entre homossexuais, a defesa dos direitos humanos, imigrantes, entram em pauta. A liberdade religiosa é um valor fundamental, mas pressupõe cada um escolher o que é melhor para si, respeitando os outros, dando-lhes o direito de acreditar ou de não ter religião. Ao Estado cabe ser laico, sem religião, mas democrático, republicano e ético, isto é, promover direitos, garantir a participação cidadã, o zelo pela esfera pública, e promover valores universais de convivência pactuados entre os cidadãos, mediados e garantidos pelas instituições de Estado e Sociedade Civil em interação permanente.

Nesta eleição presidencial, Bispos de São Paulo comandaram a reação conservadora, fizeram panfletos e distribuíram aos seus fiéis, muitas vezes de forma anônima e covarde. Nos últimos dias, até o Papa entrou no debate, e do outro lado do Oceano Atlântico, condenou o aborto, chamando os fiéis a não apoiarem quem defendesse a legalização. No dia posterior a declaração do Papa, os jornais deram destaque, o jornal Zero Hora, por exemplo, estampou na capa a manchete que o Papa condena o aborto e orienta os fiéis a observar sobre isso nas eleições. Estava dado o recado e com destaque na capa. Em um país laico, que tem um congresso eleito pelo voto democrático universal, que tem um poder judiciário independente e outras instituições próprias das republicas e das democracias, tentarem impor ao eleitor colocar como prioridade na sua vida o tema do aborto, diante de tantas outras questões, justamente em um período eleitoral é vergonhoso. Da mesma forma, a revista Veja, colocou Dilma na capa semanas antes, questionando qual era a posição dela sobre o assunto. O irônico é que estes veículos de comunicação se definem como isentos das opções políticas e das religiões. Estes acontecimentos mostraram, entretanto, que a mídia e setores políticos ligados aos partidos de centro-direita fazem o discurso da laicidade e do liberalismo, mas impõem ao cidadão uma pauta das igrejas. O discurso pela vida não vale para a exclusão social, mas meramente para a anticoncepção. A direita a cada período mostra as suas armas, que já foram fuzis, bombas de gás lacrimogênio, tanques e baionetas, agora são outros meios, inclusive pautar o tema do aborto de forma demagógica, oportunista e sem o mínimo de ética. Infelizmente, os meios de comunicação, que são concessões públicas, se prestam a isso, como foi o caso do jornal Zero Hora e da revista Veja. A revista Veja, aliás, se comporta há anos como um panfleto da direita conservadora e golpista, assim como a Zero Hora está longe de ser um veículo plural e isento. A pós-modernidade simula participação, pluralidade, acesso, mas o poder e a liberdade de expressão estão nos proprietários e na lógica de todo o negócio privado – mercado, mercadoria, lucro.

O filme Desejo Proibido coloca muito bem o tema do aborto, na sua dimensão humana, que perpassa as épocas. O mundo mudou, mas a carga emocional da decisão está e estará sobre a mulher. Ambos, mulher e homem, fazem o ato sexual e obtém o prazer, mas os homens não correm o risco de engravidar e ter o curso de suas vidas alteradas por uma gravidez, mesmo que, na atualidade, os homens tenham obrigações legais, de pelo menos, auxiliar financeiramente durante o desenvolvimento dos seus filhos. Diferentemente das mulheres que, ao engravidar, vivem as transformações de seu corpo, têm a sua condição de inserção na sociedade alterada, modificando seus projetos pessoais, seja no trabalho, seja na família ou na sua rotina de vida pessoal, social e cultural.

O tema é polêmico, e não se deve menosprezar, nem diminuir as opiniões sinceras das pessoas que se posicionam contrárias ao aborto pela convicção de defender a vida na sua integridade. No entanto, é preciso entender que a decisão do aborto não deve ser fácil às mulheres, se o fazem, geralmente é porque julgam que para se ter um filho é importante querer e estar preparada para acolhê-lo da melhor forma possível. Foi-se o tempo que se criava filho com facilidade e por que Deus quer assim. Fazer o aborto e conviver com isso pelo resto da vida, para muitas deve ser motivo de angústias e traumas, requerendo terapias, caso de quem pode pagar por esse serviço, o que não é o caso da maioria das mulheres brasileiras.

Diante disso é importante reconhecer que cabe a elas a decisão. Ninguém precisa concordar com a prática do aborto, isso é questão de foro íntimo, e religiões e posições pessoais sobre o assunto devem ser respeitadas. O que se discute, porém, é não tornar isso uma questão penal e dar a todas as mulheres, de qualquer classe social, a mesma condição de acesso aos cuidados médicos que não coloquem as suas vidas em risco. É não condená-las moralmente ou penalmente por fazer essa opção. Passada a discussão demagógica do período eleitoral é importante fazer o debate sério sobre isso, sobre a legalização do acesso ao aborto nos hospitais públicos, não deixando que tantas mulheres pobres padeçam em locais clandestinos, tornando a qualidade de vida um direito. As mulheres ricas fazem seus abortos pagando boas clínicas, mas, mesmo assim é preciso tirá-las da condição de criminosas e dar a condição de assumirem-se enquanto opção. Os governos, organizações da sociedade, inclusive religiosas podem fazer campanhas de prevenção da gravidez indesejada, podem militar livremente para desestimular o aborto como prática anticonceptiva, estimulando o cuidado próprio e conscientizando para a sensatez da prevenção não somente da gravidez, mas de doenças sexualmente transmissíveis. É de direito cada pessoa defender ideias e propor opções à sociedade, mas sem constrangimentos e penalidades a quem fizer opções diferentes das que defendemos. Deve-se trabalhar para que fique claro que o Estado deve ser laico e as religiões não devem influenciar e se envolver em campanhas conservadoras e demagógicas em períodos eleitorais.

No caso do aborto, como em muitos outros aspectos da vida em sociedade, é importante o princípio chamado tolerância. Cabe ao Estado dar o tratamento ao tema como de saúde pública, e, diante de conflitos e dilemas dessa natureza, cada indivíduo ter a capacidade de tolerar, mesmo discordando e não querendo aquilo para si. Entendendo o outro, seus dilemas e suas opções pessoais, com o esforço de compreender que tem coisas, que mesmo que discordamos delas, vão acontecer, e cabe ao Estado criar mecanismos para minimizar danos e garantir amparo e acesso a serviços para os que mais precisam. Como coloca Renato Janine Ribeiro “democracia é convivência”, poderíamos complementar e colocar que “democracia é convivência e tolerância”.

Um dos maiores avanços históricos da sociedade humana foi a separação do Estado da Igreja. É preciso assumir, definitivamente, que os tempos em que a religião influenciava diretamente o Estado, graças a Deus e graças aos homens e mulheres, (republicanos, militantes libertários, liberais, reformadores e revolucionários), esses tempos, ficaram para trás. Alguém, todavia, faça o favor de comunicar isso ao Papa, aos Bispos de São Paulo, àquela revista panfletária semanal oficial dos tucanos, e também aos editores do jornal Zero Hora.

Demilson Figueiró Fortes, engenheiro agrônomo, ecologista, socialista.
Porto Alegre, novembro de 2010.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

De que são feitos os dias?

De que são feitos os dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
- do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças...

Cecília Meireles in Canções