Geração
68, de vitoriosa a derrotada
Por
Ricardo Kotscho
Faço
parte da geração 68, como ficou conhecida a dos estudantes
libertários que viraram o Brasil e o mundo de cabeça para o ar
naquele ano do século passado, contestando todas as hierarquias e
estruturas de poder, sem ter ideia de onde pretendiam chegar. Sabiam
o que não queriam mais, mas não se entendiam sobre o que exatamente
sonhavam colocar no lugar.
Pintava
de tudo naqueles movimentos estudantis, das barricadas de Paris às
grandes passeatas no Rio _ comunistas, trotskistas, anarquistas,
hippies do paz e amor, guerrilheiros urbanos, porra-loucas e
insatisfeitos em geral.
Tinha
acabado de entrar na faculdade, na primeira turma da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, criada um ano
antes. Voltei lá esta semana para participar de um debate junto com
Heródoto Barbeiro, meu colega no Jornal da Record News, que
comemorou na segunda-feira sua milésima edição no ar.
Para mim,
foi um verdadeiro choque cultural. Nada mais restava daquele agito
permanente em que os alunos ficavam mais fora do que dentro das salas
de aula, pintando cartazes e faixas, fazendo discursos inflamados
contra o reitor, a polícia, os americanos, a ditadura militar, o
diabo a quatro.
Confesso
que não tinha na época a menor consciência política e gostava
mesmo era da farra, das festas, das paqueras, das intermináveis
conversas no Rei das Batidas, um bar que existe até hoje na entrada
da Cidade Universitária.
Já
trabalhava na época como estagiário do Estadão, o principal jornal
brasileiro naquele tempo, onde tinha entrado no mesmo mês em que
passei no vestibular. Como viajava muito para fazer reportagens,
comecei a frequentar cada vez menos a faculdade, que não consegui
terminar até hoje.
Agora, ao
entrar na sala, onde os alunos do professor Santoro já nos
aguardavam, tive uma sensação estranha. Todos em silêncio,
comportadamente sentados, pareciam esperar o início de uma missa. Do
lado de fora, nenhum sinal ou som fazia lembrar a escola onde estudei
quase meio século atrás. A ECA-USP velha de guerra, um dos
principais focos dos confrontos dos anos 60, lembrava a sede de uma
repartição pública.
Imaginava
encontrar um clima bem diferente após as manifestações do Fla-Flu
político dos últimos dias. Nos debates de que participei quando era
aluno, os palestrantes passavam o maior sufoco. Eram contestados a
todo momento. Desta vez, porém, depois de uma hora de conversa, me
dei conta de que só Heródoto e eu falamos, sem ninguém nos
interromper para discordar de nada. Até comentei isso para dar uma
provocada na turma, que ficou só olhando para a minha cara como se
eu fosse um extraterrestre.
Com o
entusiasmo de sempre, Heródoto falava das maravilhas das novas
tecnologias e eu da minha paixão pela reportagem, relembramos fatos
históricos, arriscamos previsões sobre o futuro da profissão.
Quando chegou a vez das perguntas, ninguém tocou nas profundas
crises que o país está vivendo em todas as áreas. Na verdade, nem
eram perguntas, mas apenas comentários sobre teorias da comunicação
e mercado de trabalho, algo bem limitado ao que costumam discutir em
sala de aula. É como se não estivessem preocupados com o que
acontece fora das fronteiras da universidade.
À noite,
na TV, quando comentamos nosso encontro na ECA, me dei conta de uma
diferença fundamental que aconteceu neste meio tempo: somos de uma
geração que dedicou boa parte de suas vidas à luta coletiva,
queríamos mudar o país e o mundo, e fomos vitoriosos ao ajudar a
derrotar a ditadura e a dar início a um processo de distribuição
de renda, que tornou nosso país mais livre e menos injusto.
Hoje,
noto um comportamento mais egoísta, em que os jovens estão
preocupados com a carreira e a próprio sobrevivência, na base do
cada um por si e Deus por todos. Em algum ponto, nós falhamos. Não
conseguimos repassar para as novas gerações valores como a
solidariedade, a ousadia, o inconformismo, a capacidade de sonhar e
mudar o estabelecido para a construção de uma sociedade mais
generosa. Desapareceu do mapa uma palavra chamada idealismo (não
confundir com ideologia).
Pior do
que isso: não fomos capazes de criar novas lideranças nem deixamos
herdeiros políticos, tanto que o país continua dividido entre FHC e
Lula, trinta anos após a redemocratização do país, nem de manter
vivo o espírito que mobilizou os movimentos sociais em torno das
lutas pela anistia, pela Constituinte, pelas liberdades públicas. Ou
alguém sabe quem são esses "líderes" cevados nas redes
sociais que apareceram nas manifestações de março? De onde
surgiram, quais são suas histórias, que representatividade têm,
quais são seus projetos de país? É um mistério.
Somos ao
mesmo tempo vitoriosos e derrotados. Ganhamos nas lutas do passado,
mas fomos derrotados na construção do futuro. Por isso, chegamos ao
final de um ciclo político, com a falência do chamado
presidencialismo de coalizão da Nova República, esta zorra federal
instalada em Brasília e tão distante do Brasil real, colocando em
xeque o futuro da própria democracia representativa pela qual tanto
lutamos.
Vida que
segue.
Ricardo
Kotscho é repórter desde 1964. É atualmente comentarista do Jornal
da Record News e repórter especial da revista Brasileiros.
Publicado em 27/03/15
Nenhum comentário:
Postar um comentário