'Privatização
de tudo' gerou protestos, que vão continuar
ENTREVISTA - DAVID HARVEY
GEÓGRAFO
DIZ QUE A CRISE MUNDIAL AMPLIOU A CONCENTRAÇÃO DA RIQUEZA E CRITICA
GASTOS DO BRASIL COM COPA E OLIMPÍADA
Folha S. Paulo - Eleonora de Lucena - São Paulo
O
projeto neoliberal é privatizar e "commoditizar" tudo. No
seu fracasso em realizar promessas de eficiência estão as raízes
dos protestos que eclodem pelo mundo e no Brasil. Partidos
convencionais, reféns do capital internacional, não conseguem
canalizar a raiva das ruas. Não há ideias novas, e as manifestações
vão continuar.
A
análise é do geógrafo marxista britânico David Harvey, 78.
Professor da Universidade da Cidade de Nova York, ele ataca os
"oligarcas globais" e afirma que os bilionários foram os
que mais ganharam com a crise.
Crítico
de megaeventos como Copa e Olimpíada, ele diz que os governos são
muito influenciados pelo capital financeiro: "Esses eventos são
sobre a acumulação de capital através de desenvolvimento de
infraestrutura. Os pobres tendem a sofrer, e os ricos tendem a ficar
mais ricos".
A
partir de sexta Harvey irá a debates no Brasil sobre o lançamento
de seu livro "Os Limites do Capital" e da coletânea
"Cidades Rebeldes".
-
Folha
- Qual sua avaliação sobre a situação mundial?
David
Harvey - É muito mutante e volátil. Está tão perigosa quanto
sempre foi. O que me surpreende é que não há novas ideias. As
receitas propostas aprofundam o modelo neoliberal ou tentam
desenvolver alguma forma de keynesianismo. Ambas opções me parecem
muito frágeis.
O
sr. disse à Folha em 2012 que a crise deveria aprofundar a
concentração de capital e as desigualdades. Isso ocorreu?
Sim.
Todos os dados mostram que o número de bilionários cresceu no
mundo. Foi o grupo que melhor se saiu melhor na crise, enquanto todos
os outros ou permaneceram estagnados ou perderam. O crescimento
principal está sendo canalizado para o 1% mais rico da população
mundial. É preciso haver uma redistribuição de renda globalmente e
entre classes. O clube dos bilionários é que é o problema.
Oligarcas globais controlam potencialmente ¾ da economia global. Meu
ponto é: vamos para crescimento zero, sem canalizar o crescimento
para eles e, ao mesmo tempo, devemos fazer uma redistribuição.
Nesse
cenário haveria uma guerra, não?
Olhando
para o que está acontecendo nas ruas se pode pensar que esse tipo de
coisa não está tão longe assim.
Qual
sua visão dos protestos pelo mundo? O sr. defendeu a criação de um
"partido da indignação" para lutar contra o "partido
de Wall Street". Como essa ideia evoluiu?
Os
movimentos não estão indo muito bem. O poder político se moveu
rapidamente para tentar reprimir os protestos. Há também muitas
divisões entre os movimentos. Sobre o futuro, é muito difícil
prever. A situação é muito volátil para os movimentos.
E
sobre os protestos no Brasil?
Existe
uma desilusão generalizada do processo político. As pessoas estão
começando a discutir como modificar os piores aspectos da exploração
capitalista. Há também uma alienação, que leva a alguma
passividade, que é interrompida ocasionalmente por explosões de
raiva. O nível de frustração por todo o mundo está muito alto
agora. Não surpreende que essas manifestações ocorram. O problema
é canalizar essa raiva para movimentos políticos que tenham um
projeto. Prevejo mais explosões de raiva nos próximos anos --no
Egito, na Suécia, no Brasil etc.
Há
conexão entre esses movimentos?
Sim,
cada um tem suas demandas específicas, mas há problemas de base
provocados pela natureza autocrática do neoliberalismo, que virou um
padrão para o comportamento político. Ele não é satisfatório
para a massa da população e fracassou em entregar o que prometeu.
Há uma crise na governança democrática e uma raiva contra as
formas tomadas pelo capitalismo. No norte da África os protestos
foram parcialmente sobre a alta nos preços da comida. Isso diz
respeito ao poder do agronegócio e à especulação com as
commodities, causas da alta dos preços.
No
Brasil os protestos estouraram por causa da alta nas tarifas de
ônibus. Como especialista em questões urbanas, como o sr. avalia o
problema?
O
projeto neoliberal é privatizar e "commoditizar" tudo.
Tudo vira objeto das forças do mercado. Dizem que essa é a forma
mais eficiente de prover bens e serviços para uma população. Mas,
na verdade, é uma maneira muito eficiente de um grupo da população
reunir uma grande soma de riqueza às custas de outro grupo da
população --sem entregar, de fato, bens e serviços (transporte,
comida, casas etc.). Essa é uma das razões do descontentamento da
população. Por isso, explodem manifestações de raiva em
diferentes lugares e em diferentes direções políticas. Há uma
situação de fundo que dá uma visão comum às batalhas, embora
cada uma delas seja específica e diferente. No Brasil foi o custo do
transporte. Em outros lugares é preço da comida, da habitação
etc.
Em
São Paulo há também a discussão sobre o aumento do imposto sobre
propriedade urbana. Isso também evidencia uma luta social?
Vamos
chamar de luta de classes. Ela está mais evidente, mas muitas
pessoas não gostam de falar sobre isso.
Partidos
tradicionais foram pegos de surpresa no Brasil. Mas os movimentos não
têm organização própria. Como isso pode se transformar em forças
políticas organizadas?
Se
eu tivesse essa resposta, não estaria falando com você agora.
Estaria lá fora fazendo. A situação agora reflete a alienação
das pessoas em relação a praticamente todos os partidos políticos
e a sua desilusão com o processo político. Nos EUA, o Congresso tem
uma taxa de aprovação de 10%. Nessa circunstância, as pessoas não
vão canalizar o seu descontentamento para o processo político, pois
não enxergam esperança nisso. Por isso, há essa raiva. E assim as
coisas vão continuar.
O
sr. concorda com a visão de que partidos de todos os matizes
caminharam para a direita e que a esquerda se diluiu em ONGs e
estruturas voláteis?
Há
internacionalmente uma ortodoxia econômica, que é reforçada pelos
movimentos do capital internacional. Os partidos políticos
convencionais se tornaram reféns desse poder.
Isso
acontece com o PT?
Isso
é para o julgamento de seus leitores. Noto que há uma desilusão
sobre o PT entre seus próprios integrantes.
O
sr. está escrevendo um livro sobre as contradições do capitalismo.
Qual é a principal?
Estão
mais restritas as condições que o capital tem para crescer. É
muito difícil achar novos lugares para ir e novas atividades
produtivas que possam absorver a enorme quantidade de capital que
está buscando atividades lucrativas. Em consequência muito capital
vai para atividades especulativas, patrimônio, compra de terras,
commodities. Criam-se bolhas.
O
sr. escreveu que é cada vez mais difícil encontrar o inimigo. Quem
é o inimigo?
O
inimigo é um processo, não uma pessoa. É um processo de circulação
de capital que entra e sai de países. Quando decide entrar, há um
"boom"; quando decide sair, há uma depressão. Por isso é
necessário controlar esse processo de circulação. O Brasil tem
possibilidades limitadas, porque o capital pode simplesmente
desaparecer.
No
início o Brasil parecia estar indo bem na crise. Agora estamos
travados. O que deu errado?
Houve
mudanças modestas no Brasil no sentido de redistribuir renda, como o
Bolsa Família. Mas é necessário fazer muito mais. Muito dos gastos
em enormes projetos de infraestrutura ligados à Copa do Mundo e à
Olimpíada são uma perda de dinheiro e de recursos. As pessoas se
perguntam por que o país está fazendo todos esses investimentos
para a Fifa ter um grande lucro. Para o resto do mundo é
surpreendente ver brasileiros se revoltando contra novos estádios de
futebol.
Copa
e Olimpíada não fazem bem para o país?
A
Grécia está em dificuldades em parte por causa do que foi feito em
razão da Olimpíada de Atenas. Muitas cidades olímpicas nos EUA
entraram em dificuldades financeiras.
Como
o sr. explica o poder da Fifa e do COI?
É
como qualquer poder monopolista: extrai o máximo do que se tem a
oferecer. Os governos são muito influenciados pelo capital
financeiro. Esses eventos são sobre a acumulação de capital
através de desenvolvimento de infraestrutura, de urbanização.
Envolvem também despossuir pessoas, removendo-as de suas residências
para abrir espaço aos megaprojetos. Os pobres tendem a sofrer, e os
ricos tendem a ficar mais ricos.
Como
o sr. analisa a situação política na America Latina?
Politicamente
houve, na superfície, um tipo de política antineoliberal. Mas não
houve nenhum verdadeiro grande desafio para o grande capital. Há
discursos anti-FMI. Mas, de outro lado, o Brasil está ofertando a
exploração de seu petróleo para empresas estrangeiras, por
exemplo. Não é profunda a tentativa de ir realmente contra as
fundações do capitalismo neoliberal. É uma política antiliberal
só na superfície, na retórica. Mas há alguns elementos, como o
Bolsa Família, que não fazem parte da lógica neoliberal. Mesmo a
Venezuela não vai muito longe em realmente desafiar os interesses do
capital.
Os
EUA não perderam posições na região?
Os
EUA estão mais fracos na América Latina, em parte porque o
crescimento da região foi mais orientado para a o comércio com a
China, que ampliou o seu papel imensamente. De muitas formas, a
economia na América Latina é muito mais sensível ao que ocorre na
economia chinesa do que na norte-americana.
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