DESVENDANDO A ESPUMA:
O ENIGMA DA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA
Por Renato Souza *
A primeira vez que ouvi a
Marilena Chauí bradar contra a classe média, chamá-la de fascista,
violenta e ignorante, tive a reação que provavelmente a maioria
teve: fiquei perplexo e tendi a rejeitar a tese quase impulsivamente.
Afinal, além de pertencer a ela, aprendi a saudar a classe média.
Não dá para pensar em um país menos desigual sem uma classe média
forte: igualdade na miséria seria retrocesso, na riqueza seria
impossível. Então, o engrossamento da classe média tem sido visto
como sinal de desenvolvimento do país, de redução das
desigualdades, de equilíbrio da pirâmide social, ou mais, de uma
positiva mobilidade social, em que muitos têm ascendido na vida a
partir da base. A classe média seria como que um ponto de
convergência conveniente para uma sociedade mais igualitária. Para
a esquerda, sobretudo, ela indicaria uma espécie de relação
capital-trabalho com menos exploração.
Então, eu, que bebi da
racionalidade desde as primeiras gotas de leite materno, como sugeriu
certa vez um filósofo, não comprei a tese assim, facilmente. Não
sem uma razão. E a Marilena não me ofereceu esta razão. Ela
identificou algo, um fenômeno, o reacionarismo da classe média
brasileira, mas não desvendou o sentido do fenômeno. Descreveu “O
QUE” estava acontecendo, mas não nos ofereceu o “POR QUE”. Por
que logo que a classe média? Não seria mais razoável afirmar que
as elites é que são o “atraso de vida” do Brasil, como sempre
foi dito? E mais, ela fala da classe média brasileira, não da
classe média de maneira geral, não como categoria social. Então,
para ela, a identificação deste fenômeno não tem uma
fundamentação eminentemente filosófica ou sociológica, e sim
empírica; é fruto da sua observação, sobretudo da classe média
paulistana. E por que a classe média brasileira e não a classe
média em geral? Estas indagações me perturbavam, e eu ficava
reticente com as afirmações de dona Marilena.
Com o passar do tempo,
porém, observando muitos representantes da classe média próximos
de mim (coisa fácil, pois faço parte dela), bem como a postura
desta mesma classe nas manifestações de junho deste ano, comecei
lentamente a dar razão à filósofa. A classe média parece mesmo
reacionária, talvez não toda, mas grande parte dela. Mas ainda me
perguntava “por que” a classe média, e “por que” a
brasileira? Havia um elo perdido neste fenômeno, algo a ser
explicado, um sentido a ser desvendado.
Então adveio aquela
abominável reação de grande parte da categoria médica –
justamente uma categoria profissional com vocação para classe média
- ao Programa Mais Médicos, e me sugeriu uma resposta. Aqueles
episódios me ajudaram a desvendar a espuma. Mas não sem antes uma
boa pergunta! Como pode uma categoria profissional pensar e agir
assim, de forma tão unificada, num país tão plural e tão cheio de
nuanças intelectuais e políticas como o nosso? Estudantes de
medicina e médicos parecem exibir um padrão de pensamento e ação
muito coesos e com desvios mínimos quando se trata da sua profissão,
algo que não se vê em outros segmentos profissionais. Isto não
pode ser explicado apenas pelo que se convencionou chamar de
“corporativismo”.
Bem, naqueles episódios
do Mais Médicos, apesar de toda a argumentação pretensamente
responsável das entidades médicas buscando salvaguardar a saúde
pública, o que parecia sustentar tal coesão era uma defesa do
mérito, do mérito de ser médico no Brasil. Então, este pensamento
único provavelmente fora forjado pelas longas provações por que
passa um estudante de medicina até se tornar um profissional: passar
no vestibular mais concorrido do Brasil, fazer o curso mais longo, um
dos mais difíceis, que tem mais aulas práticas e exigências de
estrutura, e que está entre os mais caros do país. É um feito se
formar médico no Brasil, e talvez por isto esta formação, mais do
que qualquer outra, seja uma celebração do mérito. Sendo assim,
supõe-se, não se pode aceitar que qualquer um que não demonstre
ter tido os mesmos méritos, desfrute das mesmas prerrogativas que os
profissionais formados aqui. Aquela reação episódica, e a meu ver
descabida, da categoria médica, incompreensível até para o resto
da classe média, era, na verdade, um brado pela meritocracia.
A minha resposta, então,
ao enigma da classe média brasileira aqui colocado, começava a se
desvelar: é que boa parte dela é reacionária porque é
meritocrática; a meritocracia está na base de sua ideologia
conservadora.
Assim, boa parte da
classe média é contra as cotas nas universidades, pois a etnia ou a
condição social não são critérios de mérito; é contra o
bolsa-família, pois ganhar dinheiro sem trabalhar além de um
demérito desestimula o esforço produtivo; quer mais prisões e
penas mais duras por que meritocracia também significa o contrário,
pagar caro pela falta de mérito; reclama do pagamento de impostos
porque o dinheiro ganho com o próprio suor não pode ser apropriado
por um Governo que não produz, muito menos ser distribuído em
serviços para quem não é produtivo e não gera impostos. É contra
os políticos porque em uma sociedade racional, a técnica, e não a
política, deveria ser a base de todas as decisões: então,
deveríamos ter bons gestores e não políticos.
Mas por que a classe
média seria mais meritocrática que as outras? Bem, creio que isto
tem a ver com a história das políticas públicas no Brasil. Nós
nunca tivemos um verdadeiro Estado do Bem Estar Social por aqui, como
o europeu, que forjou uma classe média a partir de políticas de
garantias públicas. O nosso Estado no máximo oferecia
oportunidades, vagas em universidades públicas no curso de medicina,
por exemplo, mas o estudante tinha que enfrentar 90 candidatos por
vaga para ingressar. O mesmo vale para a classe média empresarial,
para os profissionais liberais, etc. Para estes, a burocracia do
Estado foi sempre um empecilho, não uma aliada. Mesmo a classe média
estatal, formada por funcionários públicos, é concursada,
portanto, atingiu sua posição de forma meritocrática. Então, a
classe média brasileira se constituiu por mérito próprio, e como
não tem patrimônio ou empresas para deixar de herança para que
seus filhos vivam de renda ou de lucro, deixa para eles o estudo e
uma boa formação profissional, para que possam fazer carreira
também por méritos próprios. Acho que isto forjou o ethos
meritocrático da nossa classe média.
Esta situação é bem
diferente na Europa e nos EUA, por exemplo. Boa parte da classe média
europeia se formou ou se sustenta das políticas de bem estar social
dos seus países, estas mesmas que entraram em colapso com a atual
crise econômica e tem gerado convulsões sociais em vários deles;
por lá, eles vão para as ruas exatamente para defender políticas
antimeritocráticas. E a classe média americana, bem, esta convive
de forma quase dramática com as ambiguidades de um país que é ao
mesmo tempo das oportunidades e das incertezas; ela sabe que apenas o
mérito não sustenta a sua posição, portanto, não tem muitos
motivos para ser meritocrática. Se a classe média adoecer nos EUA,
vai perder o seu patrimônio pagando por serviços privados de saúde
pela absoluta falta de um sistema público que a suporte; se advém
uma crise econômica como a de 2008, que independe do mérito
individual, a classe média perde suas casas financiadas e vai dormir
dentro de seus automóveis, como se via à época. Então, no mundo
dos ianques, o mérito não dá segurança social alguma.
As classes alta e baixa
brasileiras (os ricos e os pobres) também não são meritocráticas.
A classe alta é patrimonialista; um filho de rico herda bens,
empresas e dinheiro, não precisa fazer sua vida pelo mérito
próprio, portanto, ser meritocrata seria um contra-senso; ao
contrário, sua defesa tem que ser dos privilégios que o dinheiro
pode comprar, do direito à propriedade privada e da livre
iniciativa. Além disso, boa parte da elite brasileira tem
consciência de que fez fortuna também com favorecimentos estatais,
então, antes de ser contra os governos e a política, de se
intitular apolítica, ela busca é forjar alianças no meio político.
Bem, para a classe pobre
o mérito nunca foi solução; ela vive travada pela falta de
oportunidades, de condições ou pelo limitado potencial individual.
Assim, ser meritocrata seria não só assumir que o seu insucesso é
fruto da falta de mérito pessoal, como também relegar apenas para
si a responsabilidade pela superação da sua condição. E ela sabe
que não existem soluções pela via do mérito individual para as
dezenas de milhões de brasileiros que vivem em condições de
pobreza, e que seguramente dependem das políticas públicas para
melhorar de vida. Então, nem pobres nem ricos tem razões para serem
meritocratas.
A meritocracia é uma
forma de justificação das posições sociais de poder com base no
merecimento, normalmente calcado em valências individuais, como
inteligência, habilidade e esforço. Supostamente, portanto, uma
sociedade meritocrática se sustentaria na ética do merecimento,
algo aceitável para os nossos padrões morais.
Aliás, tenho certeza de
que todos nós educamos nossos filhos e tentamos agir no dia a dia
com base na valorização do mérito. Nós valorizamos o esforço e a
responsabilidade, educamos nossas crianças para serem independentes,
para fazerem por merecer suas conquistas, motivamo-as para o estudo,
para terem uma carreira honrosa e digna, para buscarem por méritos
próprios o seu lugar na sociedade.
Então, o que há de
errado na meritocracia, como pode ela tornar alguém reacionário?
Bem, como o mérito está
fundado em valências individuais, ele serve para apreciações
individuais e não sociais. Uma coisa é a valorização do mérito
como princípio educativo e formativo individual, e como juízo de
conduta pessoal, outra bem diferente é tê-lo como plano de governo,
como fundamento ético de uma organização social. Neste plano é
que se situa a meritocracia, como um fundamento de organização
coletiva, e aí é que ela se torna reacionária e perversa.
Vou gastar as últimas
linhas deste texto para oferecer algumas razões para isto, para
mostrar porquê a meritocracia é um fundamento perverso de
organização social.
a) A meritocracia propõe
construir uma ordem social baseada nas diferenças de predicados
pessoais (habilidade, conhecimento, competência, etc.) e não em
valores sociais universais (direito à vida, justiça, liberdade,
solidariedade, etc.). Então, uma sociedade meritocrática pode
atentar contra estes valores, ou pode obstruir o acesso de muitos a
direitos fundamentais.
b) A meritocracia
exacerba o individualismo e a intolerância social, supervalorizando
o sucesso e estigmatizando o fracasso, bem como atribuindo
exclusivamente ao indivíduo e às suas valências as
responsabilidades por seus sucessos e fracassos.
c) A meritocracia esvazia
o espaço público, o espaço de construção social das ordens
coletivas, e tende a desprezar a atividade política, transformando-a
em uma espécie de excrescência disfuncional da sociedade, uma
atividade sem legitimidade para a criação destas ordens coletivas.
Supondo uma sociedade isenta de jogos de interesse e de ambiguidade
de valores, prevê uma ordem social que siga a racionalidade técnica
do merecimento e do desempenho, e não a racionalidade política das
disputas, das conversações, das negociações, dos acordos, das
coalisões e/ou das concertações.
d) A meritocracia
esconde, por trás de uma aparente e aceitável “ética do
merecimento”, uma perversa “ética do desempenho”. Numa
sociedade de condições desiguais, pautada por lógicas mercantis e
formada por pessoas que tem não só características diferentes mas
também condições diversas, merecimento e desempenho podem tomar
rumos muito distantes. O Mário Quintana merecia estar na ABL, mas
não teve desempenho para tal. O Paulo Coelho, o Sarney e o Roberto
Marinho estão (ou estiveram) lá, embora muitos achem que não
merecessem. O Quintana, pelo imenso valor literário que tem, não
merecia ter morrido pobre nem ter que morar de favor em um hotel em
Porto Alegre, mas quem mora em um quase castelo na França é o
Coelho. Um tem inegável valor literário, outro tem desempenho. O
José, aquele menino nota 10 que mora embaixo de uma ponte da BR 116
merece ser médico, sua sonhada profissão, mas provavelmente não o
será, pois não terá condições para isto (rezo para estar errado
neste caso). Na música popular nem é preciso exemplificar, a
distância entre merecimento e desempenho é abismal. Então, neste
mudo em que vivemos, valor e resultado, merecimento e desempenho nem
sempre caminham juntos, e talvez raramente convirjam.
A meritocracia exige
medidas, e o merecimento, que é um juízo de valor subjetivo, não
pode ser medido; portanto, o que se mede é o desempenho, supondo-se
que ele seja um indicador do merecimento, o que está longe de ser.
Desta forma, no mundo da meritocracia – que mais deveria se chamar
“desempenhocracia” - se confunde merecimento com desempenho, com
larga vantagem para este último como medida de mérito.
e) A meritocracia é a
única ideologia que institui a desigualdade social com fundamentos
“racionais”, e legitima pela razão toda a forma de dominação
(talvez a mais insidiosa forma de legitimação da modernidade). A
dominação e o poder ganham roupagens racionais, fundamentos
científicos e bases de conhecimento, o que dá a eles uma aparente
naturalidade: é como se dominados e dominadores acordassem
racionalmente os termos da dominação.
f) A meritocracia
substitui a racionalidade baseada nos valores, nos fins, pela
racionalidade instrumental, baseada na adequação dos meios aos
resultados esperados. Para a meritocracia não vale a pena ser o
Quintana, não é racional, embora seus poemas fossem a própria
exacerbação de si, de sua substância, de seus valores artísticos.
Vale mais a pena ser o Paulo Coelho, a E.L. James, e fazer uma
literatura calibrada para vender. Da mesma forma, muitos pais acham
mais racional escolher a escola dos seus filhos não pelos
fundamentos de conhecimento e valores que ela contém, mas pelo
índice de aprovação no vestibular que ela apresenta. Estudantes
geralmente não estudam para aprender, estudam para passar em provas.
Cursos de pós-graduação e professores universitários não
produzem conhecimentos e publicam artigos e livros para fazerem a
diferença no mundo, para terem um significado na pesquisa e na vida
intelectual do país, mas sim para engrossarem o seu Lattes e para
ficarem bem ranqueados na CAPES e no CNPq.
A meritocracia exige uma
complexa rede de avaliações objetivas para distribuir as pessoas
nas diferentes posições de autoridade e poder na sociedade, e estas
avaliações funcionam como guiões para as decisões e ações
humanas. Assim, em uma sociedade meritocrática, a racionalidade
dirige a ação para a escolha dos meios necessários para se ter um
bom desempenho nestes processos avaliativos, ao invés de dirigi-la
para valores, princípios ou convicções pessoais e sociais.
g) Por fim, a
meritocracia dilui toda a subjetividade humana na ilusória
objetividade dos resultados e do desempenho. O verso “cada um de
nós é um universo” do Raul Seixas – pérola da concepção
subjetiva do humano - é uma verdadeira aberração para a
meritocracia: para ela, cada um de nós é apenas um ponto em uma
escala de valores, e a posição e o valor que cada um ocupa nesta
escala depende de processos objetivos de avaliação. A posição e o
valor de uma obra literária se mede pelo número de exemplares
vendidos, de um aluno pela nota na prova, de uma escola pelo ranking
no Ideb, de uma pessoa pelo sucesso profissional, pelo contracheque,
de um curso de pós-graduação pela nota da CAPES, e assim por
diante. Embora a natureza humana seja subjetiva e suas interações
sociais sejam intersubjetivas, na meritocracia não há espaço para
a subjetividade e, sendo assim, lamentavelmente, há muito pouco
espaço para o próprio ser humano. Desta forma, a meritocracia
destrói o espaço do humano na sociedade.
Enfim, a meritocracia é
um dos fundamentos de ordenamento social mais reacionários que
existe, com potencial para produzir verdadeiros abismos sociais e
humanos. Assim, embora eu tenda a concordar com a tese da Marilena
Chauí sobre a classe média brasileira, proponho aqui uma troca de
alvo. Bradar contra a classe média, além de antipático pode
parecer inútil, pois ninguém pode abandonar a sua condição social
apenas para escapar ao seu estereótipo. Portanto, não se muda a
posição política de um grupo social atacando a sua condição de
classe, e sim os conceitos que fundamentam a sua ideologia.
Então, prefiro combater
conceitos, neste caso, provavelmente o conceito mais arraigado na
classe média brasileira, e que a faz ser o que é: a meritocracia.
* Renato Souza, é
professor da UFSM.
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