Valor - 10/10/2013
Valor entrevista
ministro Luís Roberto Barroso
"Carta gerou
cultura de direitos fundamentais"
Luís Roberto Barroso
é o ministro com menos tempo no Supremo Tribunal Federal (STF) e,
talvez, o que mais tenha se pronunciado e escrito sobre a
Constituição de 1988. Para ele, a Carta tem avanços e defeitos.
Ela garantiu os direitos sociais, mas as instituições não foram
capazes de prestar serviços de qualidade à população. Trouxe um
"sistema político desastroso", mas a Justiça Eleitoral
brasileira é modelo para o mundo. Rompeu com um ciclo de golpes e
quarteladas, garantindo estabilidade política ao país; mas é tão
detalhista que cada governo tem que promover uma série de emendas
para implementar seu programa. Resultado: a Constituição recebeu
mais de 70 emendas em 25 anos.
Em entrevista ao
Valor, concedida dois meses após tomar posse no STF, Barroso propõe
uma mudança na Carta: uma redução dramática no foro privilegiado.
Para ele, o foro deveria servir apenas para o presidente da
República, o vice, os presidentes da Câmara, do Senado e os
ministros do próprio STF. Os deputados e senadores seriam julgados
por uma vara especializada em Brasília, com um juiz indicado pelo
Supremo.
Se fosse aprovada,
essa "Vara da República" livraria o STF de futuras ações
do tamanho do mensalão. Barroso acha que a Ação Penal nº 470 já
se tornou um "marco na condenação de políticos e de poderosos
em geral" e defende que o STF conclua rapidamente o caso.
A seguir os principais
trechos da entrevista.
Valor: O Judiciário deve
agir sempre que as exigências da Constituição de 1988 não
estiverem sendo cumpridas por outros Poderes?
Luís Roberto Barroso: O
Judiciário viveu sob a Constituição de 1988 uma vertiginosa
ascensão institucional. Ele tem servido bem ao país, embora padeça
da mesma incapacidade de outras instituições de atender a todas as
demandas da sociedade. Porém, é um equívoco imaginar que as
grandes demandas políticas do país possam ser atendidas pelo
Judiciário. O Judiciário é, e é curioso eu dizer isso, uma
instância patológica. Uma questão só chega ao Judiciário se
tiver se transformado num conflito. E ninguém deve achar que
conflitos possam ser a maneira normal de se resolver problemas em uma
democracia. O Judiciário supre demandas emergenciais, mas o que o
país está precisando é de política de qualidade.
Valor: Por que as
instituições não conseguem atender às demandas da população 25
anos depois de a Constituição garanti-las no papel?
Barroso: Sob a
Constituição de 1988, o Brasil avançou muito em diversas áreas. A
cidadania atingiu um novo patamar de consciência e exigência. Mas,
embora tenhamos melhorado muito, as instituições não estão
conseguindo atender às demandas por Justiça e por serviços na
intensidade e na qualidade desejáveis. Somos um país que começou
atrasado na história, um país em construção. O Brasil começa
verdadeiramente em 1808, com a vinda da família real. Somos
herdeiros de uma tradição autoritária, a tradição ibérica, de
um país que foi o último a abolir o absolutismo e a separar a
igreja do Estado. Portanto, somos colônia de um Império que havia
ele próprio se atrasado na história, e apesar disso, em 200 anos,
somos uma das dez principais economias do mundo.
Valor: O STF não avançou
no papel de outros Poderes ao tomar decisões antes do Congresso e do
governo para garantir direitos?
Barroso: O Judiciário é
um grande guardião dos direitos fundamentais das minorias. E o STF
desempenhou com muita felicidade esse papel nos últimos anos em
relação a negros, homossexuais, mulheres, atuou no caso da
anencefalia. Acho que prestou outros serviços que contribuíram para
um avanço social em questões como a proibição do nepotismo, as
pesquisas com células-tronco embrionárias. Com a Ação Penal nº
470, ajudou a enfrentar o tema da impunidade.
Valor: Qual a importância
da ação penal do mensalão?
Barroso: A AP 470 foi um
marco na condenação de políticos e de poderosos em geral, como
nunca se tinha visto.
Valor: Mas esse resultado
não pode se dissolver, já que o julgamento foi estendido por
embargos?
Barroso: A cabala judaica
tem uma passagem em que eles dizem "tudo passa". Portanto,
passam as coisas boas e as ruins. A vida é cíclica. É assim a
história dos povos e das instituições. É preciso lidar com
serenidade tanto com a popularidade quanto com a impopularidade. Um
juiz deve ouvir as ruas, entender o sentimento social, mas fazer o
que é certo e justo. Já estive do lado da maioria. É uma delícia!
E com a imprensa a favor, melhor ainda. No caso da união
homoafetiva, eu tive imprensa a favor, assim como no das
células-tronco embrionárias, no caso do nepotismo, da anencefalia.
Na extradição de Cesare Battisti, tive imprensa contra. A gente não
pode achar que o povo e a imprensa são bons quando estão a favor e
ruins quando estão contra. Povo e imprensa são bons quando estão
contra ou a favor. A gente deve cumprir o próprio destino e fazer o
que considera certo.
Valor: Com a revisão do
mensalão, o marco contra a impunidade não poderia se desfazer?
Barroso: Não creio. Não
sou bom de prognóstico. Em 1978, escrevi um artigo chamado
"Socialismo e Liberdade" no jornal universitário que
dizia: "O mundo caminha inexoravelmente para o socialismo".
De lá para cá, caiu o muro de Berlim, desfez-se a União Soviética,
abriram-se as economias da Europa Oriental e até a China pratica
capitalismo selvagem. De modo que, diante do fiasco da minha incursão
no mundo da vidência, agora me dedico à atividade mais segura de
comentarista de videotape. Quando acontece, explico e geralmente não
erro o resultado.
Valor: Quanto tempo deve
demorar o julgamento?
Barroso: Deve ser tão
rápido quanto possível para o devido processo legal. O país
precisa se livrar desse assunto. O STF precisa se ocupar de outras
coisas. Espero que o Congresso, num curto prazo, livre o Supremo do
foro por prerrogativa de função, salvo meia dúzia de autoridades.
Valor: Quem deveria
ficar?
Barroso: Eu teria que
pensar com calma, mas pelo menos o presidente e o vice-presidente da
República, os presidentes dos Poderes, os ministros do STF e o
procurador-geral da República.
Valor: Os parlamentares
seriam julgados na 1ª instância?
Barroso: A proposta que
eu estava elaborando quando vim pra cá era a seguinte: criar, em
Brasília, uma vara especializada que teria competência para as
ações penais contra as autoridades que, hoje, têm foro por
prerrogativa de função e para os crimes de improbidade. O juiz
titular dessa vara deveria estar em condições de ser promovido ao
Tribunal Regional Federal (TRF).
Valor: Seria um juiz
apenas para deputados, senadores e ministros de Estado?
Barroso: Seria um juiz
titular para haver homogeneidade e possivelmente diversos juízes
auxiliares. Esse juiz ficaria lá por um prazo determinado, como três
anos. Ao fim, seria automaticamente promovido ao TRF. Com isso, teria
autonomia. Mas só poderia ser promovido ao TRF, de modo a não fazer
favor para vir para o STF. O titular dessa vara seria escolhido pelo
Supremo e da decisão dele caberia recurso ordinário para o
tribunal.
Valor: Mas assim todo
mundo ia recorrer ao Supremo...
Barroso: Mas o STF não
seria responsável pela produção das provas, pelo recebimento da
denúncia. Ele faria só o reexame de questões jurídicas.
Valor: Esse modelo existe
em alguma parte do mundo?
Barroso: O mundo, no
geral, não pratica o foro por prerrogativa de função, mas eu acho
que, no caso brasileiro, é bom porque a atividade pública e a
exposição pública no Brasil deixam o agente público sujeito à
perversidade, a interesses políticos contrariados, a ações penais
levianas. Então, se você não concentra num juízo único, em
Brasília, você passa a ter essas autoridades sujeitas a ações em
qualquer parte do Brasil. Elas ficam desprotegidas.
Valor: Por que o sr acha
que as autoridades ficam expostas?
Barroso: Há um problema
de estágio civilizatório e outro de certa criminalização da
política. O sistema eleitoral e o partidário no Brasil são
indutores da criminalidade. Eu acho até que o povo saiu da rua
rápido demais, antes que viesse um mínimo de reforma. Se o sistema
eleitoral e o sistema partidário não mudarem, a criminalização da
política vai continuar na ordem do dia.
Valor: Os constituintes
de 1988 erraram na definição do sistema político?
Barroso : O sistema
político é um desastre, mas a Justiça Eleitoral no Brasil é
modelo para o mundo. Esse sistema eleitoral em que o voto é
proporcional e a lista é aberta tem um custo tão elevado que o
financiamento eleitoral acaba se fincando como raiz de boa parte dos
problemas nacionais, inclusive da corrupção.
Valor: O STF não poderia
mudar isso julgando uma ação da OAB contra o financiamento privado
de campanhas?
Barroso: Há um processo
que procura impedir pessoas jurídicas de fazerem doações de
campanha. Ainda que alguém considere essa medida positiva, e não
vou opinar, pois vou julgá-la, ela é insuficiente. O problema não
é só como se financia; o problema é quanto custa. Custando o que
custa, as pessoas vão procurar financiamento em outros lugares.
Valor: O Supremo poderia
contribuir para a reforma política?
Barroso: Acho que não.
Infelizmente, essa não é uma questão que possa ser resolvida pelo
Judiciário, pois essa não é uma questão técnica, de decisão
política. A reforma política enfrenta um impasse: o Congresso
Nacional, que é o lugar por excelência para conduzi-la, é composto
de parlamentares, por atores que não são neutros em relação às
soluções que venham a ser dadas. Todas as pessoas que estão lá
serão diretamente afetadas por qualquer mudança. Na prática, não
se consegue produzir consenso. Por isso é preciso encontrar uma
alternativa. O plebiscito pode ser uma opção.
Valor: O principal
problema é o custo das eleições?
Barroso: Baratear o
sistema eleitoral deve ser prioridade de qualquer reforma política.
Além dela, devemos ter mais dois objetivos: acabar com a
pulverização partidária e facilitar a governabilidade. Para
baratear as eleições, há algumas ideias, como voto distrital, voto
distrital misto, lista pré-ordenada, também chamada de lista
fechada.
Valor: Como acabar com a
pulverização de partidos?
Barroso: Há várias
ideias: cláusula de barreira, proibição de coligação em eleições
proporcionais. Em relação às cláusulas de barreira, acho que o
STF carrega uma culpa. O que aconteceu foi que alguns partidos,
sobretudo os tradicionais de esquerda, iam ser tolhidos pela cláusula
de barreira. Acho que houve certa percepção de que seria uma
injustiça histórica jogar no lixo esses partidos. Mas teria sido
melhor abrir uma exceção para eles que abrir a porta geral.
Valor: A Constituição
trouxe algo de bom no plano político?
Barroso: Vinte e cinco
anos de estabilidade institucional. Pode parecer banal para as novas
gerações, mas o Brasil sempre foi o país do golpe, do contragolpe
e da quartelada, desde o início da República. Tivemos revolução
de 1930, de 1932, em São Paulo, intentona comunista de 1935, golpe
do Estado Novo de 1937, deposição do Getúlio Vargas em 1945, o
suicídio, em 1954, que abortou o golpe que estava em curso. Depois,
em 1956 e 1957, duas rebeliões contra o Juscelino Kubitscheck, a
renúncia do Jânio Quadros, em 1961, o veto dos ministros militares
à posse do João Goulart, o golpe de 1964, o ato institucional nº
5, em 1968, o golpe dentro do golpe em 1969, quando assumiu a junta
militar. Foi mais de uma dezena de golpes a partir de 1930. Então,
nós conseguimos em 25 anos superar todos os ciclos do atraso, no
tocante ao respeito à legalidade constitucional. E isso em períodos
que tiveram momentos dramáticos, como a destituição de um
presidente da República, em 1992, escândalos como o dos anões do
orçamento, inflação altíssima, uma ação penal como a 470.
Valor: A Constituição
trouxe estabilidade, mas foi modificada mais de 70 vezes por emendas.
Barroso: A Constituição
de 1988, por força de seu complexo processo de elaboração,
resultou excessivamente abrangente e detalhista. Ela trata de
matérias que na maior parte do mundo são relegadas à política ou
à legislação ordinária, e com grande grau de detalhamento. Então,
qualquer governo para implementar o seu programa, precisa promover um
conjunto de emendas constitucionais, previdenciárias, tributárias,
econômicas. A política ordinária no Brasil acaba sendo feita por
emendas à Constituição. Mas ela trouxe outras coisas boas.
Valor: Por exemplo..
Barroso: O país avançou
muito em termos de proteção ao consumidor e consciência ambiental.
Quando eu era jovem, as elites pensavam num país só para si e para
seus filhos. Hoje, já há a percepção de que um país é para
todos, ou não há salvação. É verdade que a classe dominante só
descobriu isso quando a violência ameaçava devorá-la e precisava
viver em condomínios fechados e shoppings centers protegidos por
guardas armados. Foi com atraso. Mas o Brasil passou a ter políticas
públicas para os pobres. Não é o suficiente. Nunca tivemos
política consistente e ampla para financiamento de habitação
popular. O país é favelizado de Norte a Sul porque as pessoas
precisam de lugar para morar e nunca houve um compromisso
verdadeiramente extenso com a habitação no país. Mais importante:
houve a criação de uma cultura de direitos fundamentais.
Valor: Mas muitos
direitos garantidos na Constituição, como saúde e educação,
ainda não são uma realidade para boa parte da população.
Barroso: As ideias levam
um tempo desde que vencem o plano ideológico ou filosófico até
quando se concretizam na vida real. Em matéria de educação,
caminhamos na direção da universalização do ensino médio. A
qualidade ainda é muito ruim, mas demos o primeiro passo. Acho que a
universidade é mais devedora que credora da sociedade brasileira. É
cara e presta um serviço deficiente ao país. Na saúde, o Brasil
tem o mais ambicioso programa de inclusão social do mundo, o SUS. E
ele enfrenta todas as dificuldades, do tamanho da sua ambição, que
é oferecer saúde gratuita e universal para toda a população. O
sistema de saúde tem muitas deficiências, mas ele não é uma
ficção. Quando eu era jovem ele era uma ficção. Tivemos muitas
vitórias. Não andamos na velocidade desejada, mas andamos na
direção certa. E o rumo certo na vida é mais importante do que a
velocidade.
Valor: O Judiciário não
deveria intervir mais vezes para cobrar a eficiência desses
serviços?
Barroso: Em muitas áreas,
como a saúde, os problemas são levados ao Judiciário quando
deveriam ter sido discutidos antes, na elaboração do orçamento.
Nos países democráticos é na elaboração do orçamento que se
discute quanto vai para educação, saúde, transporte e publicidade
institucional. No Brasil, esse debate não existe. O orçamento é
tratado como uma questão burocrática, uma caixa preta. Depois, se
pede ao Judiciário uma realocação de verbas.
Valor: E o STF deveria
atuar para efetivar os direitos da Constituição que, 25 anos
depois, ainda não foram regulamentados?
Barroso: Isso correu com
a greve do serviço público. Mas houve outra questão interessante.
Há três anos, o STF decidiu que iria regulamentar os casos de
indenização do empregado demitido sem justa causa. E o que
aconteceu? As classes empresariais que sempre trabalharam pela não
regulamentação correram para o Congresso e rapidamente obtiveram a
regulamentação, porque sabiam que do STF viria algo mais protetivo
ao empregado do que poderiam obter no Congresso. Isso me fez dizer
que o STF se encontra à esquerda do Congresso, à esquerda do
processo politico majoritário, ao menos na percepção das classes
empresariais.
Valor: O STF deveria
baixar uma súmula para que os Estados parem com a guerra fiscal?
Barroso: Não se cura
desespero com decreto. Nem decreto normativo nem judicial. Os Estados
vivem um momento de aflição financeira muito grave. Temos que
pensar quais soluções são dadas em outras partes do mundo e o que
é aproveitável para o Brasil. Mas essa não é uma solução
judicial. É uma solução política. O Brasil precisa de mais
política, mas política de qualidade.
Valor: O Brasil precisa
de uma nova Constituição?
Barroso: Em nenhuma
hipótese. A Constituição de 1988 tem uma valia substantiva e outra
simbólica. Ela é o símbolo da superação de um Estado
autoritário, intolerante e violento por um democrático de direito.
Portanto, com uma lipoaspiração aqui, uma plástica ali ou uma
prótese acolá, eu gostaria de comemorar daqui a 25 anos os 50 anos
da Constituição.
Por Juliano Basile e
Maíra Magro | De Brasília
Publicado no jornal Valor 10/10/2013.
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