A atualidade brutal de Hannah Arendt
Por Ladislau Dowbor
Filme de Margarethe von Trotta sugere que
totalitarismo pode assumir faces “normais” e parece indispensável
num cenário de democracia esvaziada e guerra iminente
O filme causa impacto. Trata-se, tema central do
pensamento de Hannah Arendt, de refletir sobre a natureza do mal. O
pano de fundo é o nazismo, e o julgamento de um dos grandes
mal-feitores da época, Adolf Eichmann. Hannah acompanhou o
julgamento para o jornal New Yorker, esperando ver o monstro, a besta
assassina. O que viu, e só ela viu, foi a banalidade do mal. Viu um
burocrata preocupado em cumprir as ordens, para quem as ordens
substituíam a reflexão, qualquer pensamento que não fosse o de bem
cumprir as ordens. Pensamento técnico, descasado da ética,
banalidade que tanto facilita a vida, a facilidade de cumprir ordens.
A análise do julgamento, publicada pelo New Yorker, causou
escândalo, em particular entre a comunidade judaica, como se ela
estivesse absolvendo o réu, desculpando a monstruosidade.
A banalidade do mal, no entanto, é central. O meu pai
foi torturado durante a II Guerra Mundial, no sul da França. Não
era judeu. Aliás, de tanto falar em judeus no Holocausto, tragédia
cuja dimensão trágica ninguém vai negar, esquece-se que esta
guerra vitimou 60 milhões de pessoas, entre os quais 6 milhões de
judeus. A perseguição atingiu as esquerdas em geral, sindicalistas
ou ativistas de qualquer nacionalidade, além de ciganos,
homossexuais e tudo que cheirasse a algo diferente. O fato é que a
questão da tortura, da violência extrema contra outro ser humano,
me marcou desde a infância, sem saber que eu mesmo a viria a sofrer.
Eram monstros os que torturaram o meu pai? Poderia até haver um
torturador particularmente pervertido, tirando prazer do sofrimento,
mas no geral, eram homens como os outros, colocados em condições de
violência generalizada, de banalização do sofrimento, dentro de um
processo que abriu espaço para o pior que há em muitos de nós.
Por que é tão importante isto, e por que a mensagem do
filme é autêntica e importante? Porque a monstruosidade não está
na pessoa, está no sistema. Há sistemas que banalizam o mal. O que
implica que as soluções realmente significativas, as que nos
protegem do totalitarismo, do direito de um grupo no poder dispor da
vida e do sofrimento dos outros, estão na construção de processos
legais, de instituições e de uma cultura democrática que nos
permita viver em paz. O perigo e o mal maior não estão na
existência de doentes mentais que gozam com o sofrimento de outros –
por exemplo uns skinheads que queimam um pobre que dorme na rua,
gratuitamente, pela diversão – mas na violência sistemática que
é exercida por pessoas banais.
Entre os que me interrogaram no DOPS de São Paulo
encontrei um delegado que tinha estudado no Colégio Loyola de Belo
Horizonte, onde eu tinha estudado nos anos 1950. Colégio de
orientação jesuíta, onde se ensinava a nos amar uns aos outros.
Encontrei um homem normal, que me explicava que arrancando mais
informações seria promovido, me explicou os graus de promoções
possíveis na época. Aparentemente queria progredir na vida. Outro
que conheci, violento ex-jagunço do Nordeste, claramente considerava
a tortura como coisa banal, coisa com a qual seguramente conviveu nas
fazendas desde a sua infância. Monstros? Praticaram coisas
monstruosas, mas o monstruoso mesmo era a naturalidade com a qual a
violência se pratica.
Um torturador na OBAN me passou uma grande pasta A-Z
onde estavam cópias dos depoimentos dos meus companheiros que tinham
sido torturados antes. O pedido foi simples: por não querer se dar a
demasiado trabalho, pediu que eu visse os depoimentos dos outros, e
fizesse o meu confirmando a verdades, bobagens ou mentiras que
estavam lá escritas. Explicou que eu escrevendo um depoimento que
repetia o que já sabiam, deixaria satisfeitos os coronéis que
ficavam lendo depoimentos no andar de cima (os coronéis evitavam
sujar as mãos), pois veriam que tudo se confirmava, ainda que fossem
histórias absurdas. Segundo ele, se houvesse discrepâncias, teriam
de chamar os presos que já estavam no Tiradentes, voltar a
interrogá-los, até que tudo batesse. Queria economizar trabalho.
Não era alemão. Burocracia do sistema. Nos campos de concentração,
era a IBM que fazia a gestão da triagem e classificação dos
presos, na época com máquinas de cartões perfurados. No
documentário A Corporação, a IBM esclarece que apenas prestava
assistência técnica.
O mal não está nos torturadores, e sim nos homens de
mãos limpas que geram um sistema que permite que homens banais façam
coisas como a tortura, numa pirâmide que vai desde o homem que suja
as mãos com sangue até um Rumsfeld que dirige uma nota aos exército
americano no Iraque, exigindo que os interrogatórios sejam harsher,
ou seja, mais violentos. Hannah Arendt não estava desculpando
torturadores, estava apontando a dimensão real do problema, muito
mais grave.
A compreensão da dimensão sistêmica das deformações
não tem nada a ver com passar a mão na cabeça dos criminosos que
aceitaram fazer ou ordenar monstruosidades. Hannah Arendt aprovou
plenamente e declaradamente o posterior enforcamento de Eichmann. Eu
estou convencido de que os que ordenaram, organizaram, administraram
e praticaram a tortura devem ser julgados e condenados.
O segundo argumento poderoso que surge no filme, vem das
reações histéricas de judeus pelo fato de ela não considerar
Eichmann um monstro. Aqui, a coisa é tão grave quanto a primeira.
Ela estava privando as massas do imenso prazer compensador do ódio
acumulado, da imensa catarse de ver o culpado enforcado. As pessoas
tinham, e têm hoje, direito a este ódio. Não se trata aqui de
deslegitimar a reação ao sofrimento imposto. Mas o fato é que ao
tirar do algoz a característica de monstro, Hannah estava-se tirando
o gosto do ódio, perturbando a dimensão de equilíbrio e de
contrapeso que o ódio representa para quem sofreu. O sentimento é
compreensível, mas perigoso. Inclusive, amplamente utilizado na
política, com os piores resultados. O ódio, conforme os objetivos,
pode representar um campo fértil para quem quer manipulá-lo.
Quando exilado na Argélia, durante a ditadura militar,
conheci Ali Zamoum, um dos importantes combatentes pela independência
do país. Torturado, condenado à morte pelos franceses, foi salvo
pela independência. Amigos da segurança do novo regime localizaram
um torturador seu, numa fazendo do interior. Levaram Ali até a
fazenda, onde encontrou um idiota banal, apavorado num canto. Que
iria ele fazer? Torturar um torturador? Largou ele ali para ser
trancado e julgado. Decepção geral. Perguntei um dia ao Ali como
enfrentavam os distúrbios mentais das vítimas de tortura. Na
opinião dele, os que se equilibravam melhor, eram os que, depois da
independência, continuaram a luta, já não contra os franceses mas
pela reconstrução do país, pois a continuidade da luta não
apagava, mas dava sentido e razão ao que tinham sofrido.
No 1984 do Orwell, os funcionários eram regularmente
reunidos para uma sessão de ódio coletivo. Aparecia na tela a
figura do homem a odiar, e todos se sentiam fisicamente transportados
e transtornados pela figura do Goldstein. Catarse geral. E odiar
coletivamente pega. Seremos cegos se não vermos o uso hoje dos
mesmos procedimentos, em espetáculos midiáticos.
O texto de Hannah, apontando um mal pior, que são os
sistemas que geram atividades monstruosas a partir de homens banais,
simplesmente não foi entendido. Que homens cultos e inteligentes não
consigam entender o argumento é em si muito significativo, e
socialmente poderoso. Como diz Jonathan Haidt, para justificar
atitudes irracionais, inventam-se argumentos racionais, ou
racionalizadores.1 No caso, Hannah seria contra os judeus, teria
traído o seu povo, tinha namorado um professor que se tornou
nazista. Os argumentos não faltaram, conquanto o ódio fosse
preservado, e com o ódio o sentimento agradável da sua
legitimidade.
Este ponto precisa ser reforçado. Em vez de detestar e
combater o sistema, o que exige uma compreensão racional, é
emocionalmente muito mais satisfatório equilibrar a fragilização
emocional que resulta do sofrimento, concentrando toda a carga
emocional no ódio personalizado. E nas reações histéricas e na
deformação flagrante, por parte de gente inteligente, do que Hannah
escreveu, encontramos a busca do equilíbrio emocional. Não mexam no
nosso ódio. Os grandes grupos econômicos que abriram caminho para
Hitler, como a Krupp, ou empresas que fizeram a automação da gestão
dos campos de concentração, como a IBM, agradecem.
O filme é um espelho que nos obriga a ver o presente
pelo prisma do passado. Os americanos se sentem plenamente
justificados em manter um amplo sistema de tortura – sempre fora do
território americano pois geraria certos incômodos jurídicos -,
Israel criou através do Mossad o centro mais sofisticado de tortura
da atualidade, estão sendo pesquisados instrumentos eletrônicos de
tortura que superam em dor infligida tudo o que se inventou até
agora, o NSA criou um sistema de penetração em todos os
computadores, mensagens pessoais e conteúdo de comunicações
telefônicas do planeta. Jovens americanos no Iraque filmaram a
tortura que praticavam nos seus celulares em Abu Ghraib, são jovens,
moças e rapazes, saudáveis, bem formados nas escolas, que até
acham divertido o que fazem. Nas entrevistas posteriores, a bem da
verdade, numerosos foram os jovens que denunciaram a barbárie, ou
até que se recusaram a praticá-la. Mas foram minoria.2
O terceiro argumento do filme, e central na visão de
Hannah, é a desumanização do objeto de violência. Torturar um
semelhante choca os valores herdados, ou aprendidos. Portanto, é
essencial que não se trate mais de um semelhante, pessoa que pensa,
chora, ama, sofre. É um judeu, um comunista, ou ainda, no jargão
moderno da polícia, um “elemento”. Na visão da KuKluxKlan, um
negro. No plano internacional de hoje, o terrorista. Nos programas de
televisão, um marginal. Até nos divertimos, vendo as perseguições.
São seres humanos? O essencial, é que deixe de ser um ser humano,
um indivíduo, uma pessoa, e se torne uma categoria. Sufocaram 111
presos nas celas? Ora, era preciso restabelecer a ordem.
Um belíssimo documentário, aliás, Repare Bem, que
ganhou o prêmio internacional no festival de Gramado, e relata o que
viveu Denise Crispim na ditadura, traz com toda força o paralelo
entre o passado relatado no Hannah Arendt e o nosso cenário
brasileiro. Outras escalas, outras realidades, mas a mesma
persistente tragédia da violência e da covardia legalizadas e
banalizadas.
Sebastian Haffner, estudante de direito na Alemanha em
1930, escreveu na época um livro – Defying Hitler: a memoir –
manuscrito abandonado, resgatado recentemente por seu filho que o
publicou com este título.3 O livro mostra como um estudante de
família simples vai aderindo ao partido nazista, simplesmente por
influência dos amigos, da mídia, do contexto, repetindo com as
massas as mensagens. Na resenha do livro que fiz em 2002, escrevi que
o que deve assustar no totalitarismo, no fanatismo ideológico, não
é o torturador doentio, é como pessoas normais são puxadas para
dentro de uma dinâmica social patológica, vendo-a como um caminho
normal. Na Alemanha da época, 50% dos médicos aderiram ao partido
nazista.
O próximo fanatismo político não usará bigode nem
bota, nem gritará Heil como os idiotas dos “skinheads”. Usará
terno, gravata e multimídia. E seguramente procurará impor o
totalitarismo, mas em nome da democracia, ou até dos direitos
humanos.
1 Jonathan Haidt, The Righteous Mind (A Mente
Moralista),
http://dowbor.org/2013/06/jonathan-haidt-the-righteous-mind-why-good-people-are-divided-by-politics-and-religion-a-mente-moralista-por-que-boas-pessoas-sao-divididas-pela-politica-e-pela-religiao.html/
2 Melhor do que qualquer comentário, é ver o filme O
Fantasma de Abu Ghraib, disponível no Youtube em
http://www.youtube.com/watch?v=_TpWQj0MjvI&feature=youtube_gdata_player
; ver também a pesquisa da BBC
http://guardian.co.uk/world/2013/mar/06/pentagon-iraq-torure-centres-link
; sobre Guantanamo, ver o artigo do New York Times de 15/04/2013
3 Sebastian Haffner – Defying Hitler –
http://dowbor.org/2003/08/defying-hitler-a-memoir.html/
Ladislau Dowbor - ON 05/09/2013
Publicado no Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário