O
campo revelado
Revista
Página22 – 10.11.2011
Por
Carolina Derivi
Seja
na escala planetária, seja naquela da nossa vida cotidiana, velhos
hábitos são difíceis de contestar. Depois de estabelecido, um
modus operandi pode se transformar numa espécie de transe, em que
qualquer variação da norma se assemelha a uma excentricidade. E é
a nos acordar desse transe, quando a o assunto é a sustentabilidade
no campo, que se dedica o professor da Esalq-USP, Carlos Armenio
Khatounian.
Um
dos maiores nomes da agroecologia no Brasil, Khatounian contesta a
ideia de que só a agricultura empresarial é eficiente e
bem-sucedida. Lembra que as propriedades menores e de trabalho
familiar ainda são predominantes no mundo, com grande capacidade de
adaptação aos soluços da economia e ao aproveitamento racional dos
recursos naturais.
Mais
que espaço e oportunidade, há necessidade de uma agricultura de
base ecológica, especialmente em tempos de superpopulação, em que
a segurança alimentar ascende ao topo dos problemas globais. No
entanto, diz o professor, nenhuma inovação no âmbito das lavouras
dará conta do recado se a humanidade não reformular, urgentemente,
os padrões de sua própria dieta.
Existe
um receituário de agricultura sustentável capaz de alimentar o
mundo todo?
Vou
começar numa perspectiva histórica mais longa, para ser mais
preciso. A nossa aventura enquanto espécie biológica começa há
150 mil anos atrás. Nessa trajetória, nós fomos sobretudo
caçadores coletores. Só passamos a ser agricultores, em alguns
lugares do mundo, entre 10 mil e 12 mil anos atrás. Então, a
agricultura é uma maneira relativamente recente de nos relacionarmos
com o meio ambiente.
Os
vestígios da agricultura mais antiga revelam um sistema de
derruba-e-queima. Muito antes de começarem as civilizações
antigas, que desenvolveram a escrita, fizemos 5 mil anos pelo menos
de derruba-e-queima. E foi só quando as áreas disponíveis nessas
regiões tinham sido completamente degradadas é que nós passamos
para a beira do rio. Para uma civilização primitiva, era
praticamente impossível enfrentar a força de um rio, não tinha
controle das cheias, que podiam levar todo um ano de trabalho.
Acontece
que, nessas regiões onde surgiu essa agricultura hidráulica, a
floresta não se recompunha. Então a agricultura ia deixando atrás
de si um deserto. E, quando chegou o momento que não tinha mais área
para fazer derruba-e-queima, eles não tiveram outra saída que não
fosse descer para a beira dos rios. Então, o início da História já
é marcado por uma crise ambiental derivada da agricultura, uma crise
de desmatamento e desertificação.
O
seu ponto é que a agricultura nasceu acoplada à degradação
ambiental e permanecerá assim?
Então,
o “permanecerá assim” é que é a pergunta. Agricultura e
degradação ambiental caminharam juntas na História, inclusive nos
países que hoje nós chamamos de desenvolvidos. É importante falar
disso, porque existe uma ideia, mais ou menos disseminada, de que a
agricultura que nós fazíamos 100 anos atrás era sustentável. Mas
isso não é verdadeiro. Na verdade, a agricultura que nós estamos
fazendo desde 10 mil anos é uma agricultura insustentável.
Vou
colocar a pergunta de outra maneira: é verdade que só a grande
escala e a monocultura são eficientes o bastante para alimentar um
cenário de 9 bilhões de pessoas em 2050?
Essa
pergunta é bem mais fácil de responder. Se você olhar a história
da agricultura, o que predomina é a agricultura familiar. No livro
História das Agriculturas no Mundo (de Mazoyer e Laurence Roudart),
o professor da Universidade de Paris, Marcel Mazoyer, quantificou o
número de agricultores do começo ao fim dos Novecentos. Em 100
anos, o número de agricultores na Europa foi reduzido a 10%. De cada
100 propriedades, apenas 10 restaram no ano 2000. No entanto, apesar
de ter havido uma diminuição no número de propriedades, essa
agricultura é essencialmente familiar. Nos Estados Unidos e no
Brasil também.
Quando
a gente fala de Paraná, você pensa em agricultura familiar
predominante. Mas, quando se fala em Mato Grosso, você pensa que é
agricultura empresarial. Eu achei que isso seria parte da nossa
conversa e levantei os dados do Censo. No Paraná, coisa de 75% a 80%
das propriedades são tocadas com mão de obra familiar. E no Mato
Grosso? Quanto você acha que seria? Dá um chute.
Quarenta
por cento?
Vou
te dar os dados do Censo: 75%. Isso porque as grandes unidades, com
regime de mão de obra capitalista, são altamente instáveis. Nesse
livro que eu menciono, o autor se propõe a seguinte pergunta: por
que a agricultura europeia neste último século diminuiu em número,
mas ao mesmo tempo continuou essencialmente familiar no uso da força
de trabalho?
A
resposta é relativamente simples. A agricultura passa por altos e
baixos, como qualquer setor econômico, mas tem ciclos de preços
mais ou menos previsíveis. Imagine que estamos falando de café. O
café, hoje, está numa fase de preço alto, e nessa fase você
consegue manter uma relação trabalhista de assalariamento sem
problemas. Mas nós podemos voltar daqui a dois anos a um preço de
café, não na faixa dos R$ 500, mas na faixa dos R$ 250, que é um
valor histórico realista.
Quando
bater nesses R$ 250, digamos que vai sobrar um limite de R$ 50 por
saca para a família sobreviver. Ela não vai ganhar muito nesse ano,
mas vai manter o negócio, enquanto aquele sistema empresarial não
tem como comprimir despesas. Não tem como dizer para o empregado que
ele não vai receber décimo terceiro salário, porque o café baixou
de preço. Na propriedade familiar, se o pessoal conseguir manter o
negócio e pagar as despesas, mesmo que não sobre nada, está no
positivo.
Por
isso os empreendimentos de agricultura familiar são mais numerosos?
Por
isso a agricultura familiar é uma atividade que reúne muito mais
sustentabilidade do que a empresarial.
Inclusive
econômica.
Sim.
Esse é um ponto pacífico. A agricultura empresarial depende de
preços mais elevados para se manter viva. E não é uma observação
para um único país. É a observação do conjunto dos países hoje.
Agora, isso não quer dizer que qualquer esquema de agricultura
familiar seja melhor que qualquer esquema de agricultura empresarial.
O modelo familiar num padrão tecnológico muito baixo vai ter mais
dificuldade.
Olhando
a história da Europa, podemos refletir sobre a nossa. Nove em cada
dez agricultores desapareceram. Esses foram os menos eficientes nessa
estrutura de agricultura familiar. Menos eficientes porque ocuparam
áreas marginais, com menor potencial de produção, ou porque não
conseguiam uma reserva para aplicar na tecnologia. Enfim, as razões
mais diversas. E esses acabam sendo assimilados pelos mais
eficientes. Isso remete para uma grande questão, nas políticas
públicas do Brasil. A gente deve estimular a agricultura familiar a
se tornar mais eficiente enquanto tal, ou a gente deve estimular a
agricultura empresarial?
O
senhor tem essa resposta?
Não
sou eu que tenho a resposta, é a História que dá. A História diz
assim: é mais confiável aplicar na agricultura familiar.
Porque
é mais adaptável, mais resiliente?
Sim.
O Oeste do Paraná é uma agricultura modernizada e intensiva. Se
você for para aquela região, você vai olhar e pensar: “Isso não
é agricultura familiar”. Não é aquilo que você imagina, o
sujeito passando fome e pedindo ajuda do governo. É uma agricultura
familiar mais capitalizada, mais tecnificada, capaz de se desenvolver
e passar por crises que a agricultura empresarial não consegue.
A
origem da confusão que leva à pergunta que você fez – o que é
mais sustentável, a agricultura empresarial ou a agricultura
familiar? – é que normalmente nós associamos modernização ao
modelo empresarial e o modelo familiar a um processo tecnológico
aparentemente mais rudimentar. Mas os dados do Censo não embasam
essa perspectiva. O Censo mostra que o grosso da agricultura
brasileira é familiar, inclusive nos estados que a gente imagina que
são da agricultura empresarial.
Então,
quando se fala em agricultura sustentável, a questão é menos a
escala e mais a técnica aplicada?
São
as duas coisas. Essa pergunta poderia ser desmembrada assim: é
possível fazer agricultura ambientalmente melhor em grande escala,
ou isso tem de ser na escala dos pequenos? De novo, eu vou responder
não o que eu acho, mas o que o mundo me apresenta. Se você for
olhar agricultura de base ecológica, você vai encontrar desde
propriedades medidas em vários milhares de hectares até
propriedades medidas em poucos hectares.
A
maior iniciativa de produção de açúcar orgânico no mundo é aqui
no estado de São Paulo, em Sertãozinho, a Usina São Francisco (da
empresa Native). Se não me engano, tem 13 mil hectares de cana
orgânica. No Pará, a Agropalma tem 4 mil e poucos hectares de dendê
orgânico. E assim há outros exemplos. Não são muitos, porque as
propriedades destes tamanhos também são menos numerosas. Mas esses
exemplos mostram que é possível fazer agricultura tecnologicamente
melhor, no sentido do meio ambiente, em escala ampliada. Não tem
nenhuma incompatibilidade.
Agora,
para cada cultura existem os problemas específicos. Para algumas
culturas nós dispomos de um estoque tecnológico que permite fazer
isso bem. Pra outras, o estoque tecnológico não é suficiente para
ampliação de escala.
Tem
outra coisa: na hora em que você amplia a escala, surgem problemas
de administração. Uma área agrícola nunca é homogênea. Imagine
um agricultor que tem uma terra mais seca em cima do morro, depois
vem uma mais ou menos úmida, depois outra, abaixo, mais sombreada.
Um agricultor pequeno consegue aplicar em cada pedaço desse terreno
uma cultura mais adequada. Na parte mais sombreada e mais úmida, ele
poderia plantar inhame. Na parte intermediária, feijão, milho. E,
na parte mais seca, onde bate mais sol, talvez pudesse fazer um
reflorestamento com eucalipto.
Em
um sítio de 5 ou 10 hectares é lógico fazer isso. O agricultor tem
condição de administrar e tem mais rendimento se fizer isso. Mas,
se nós estivermos dentro de uma propriedade de 5 mil hectares de uma
produtora de polpa de celulose, aí é impossível para ela, dada a
sua dimensão, fazer essa administração de microssítios. Essa
empresa vai plantar eucalipto em tudo, por uma necessidade de
simplificação administrativa. Por conta disso, as propriedades
familiares que trabalham em menor escala têm mais possibilidade
administrativa de fazer um uso mais eficiente dos recursos naturais.
Eu gostaria que houvesse centenas de usinas como a São Francisco no
Brasil, em vez de uma só. Mas é mais fácil fazer isso numa escala
de agricultura familiar.
Falta
conhecimento, pesquisa?
A
pesquisa agrícola organizada é um fato de 100 anos na história da
humanidade. Os conhecimentos para utilização de adubos químicos
estavam bem formatados em meados dos Oitocentos, mas até o fim
daquele século praticamente não foram utilizados. Isso é um
fenômeno do século XX. E, nesses 100 anos, o grosso da pesquisa
agrícola foi direcionado aos insumos químicos.
A
pesquisa de foco mais biológico tem uns 30 anos. Quando eu era
estudante desta escola aqui (Esalq-USP), se você falasse de controle
biológico de pragas, isso era filosofia. Um professor chegou a
escrever isso numa prova minha, “o senhor é um filósofo”. E
hoje não existe praticamente nenhuma cultura no Brasil sem alguma
técnica de controle biológico de pragas.
Mas
isso foi fruto de investigação. A cada dia estão surgindo coisas
novas. Hoje você encontra insumos para uma série de coisas. Hoje
tem um fungo, chamado “tricodermo”, que é comercializado para
controlar doenças de raiz de planta, em lugar de aplicar um
fungicida. Essas tecnologias vêm aumentando muito, mas elas ainda
são muito poucas em face do tamanho do desafio.
Parece
que o senhor está dizendo que, a depender de empenho em P&D, no
futuro seria possível produzir todos os alimentos livres de
agrotóxicos…
Sim
e não. Se você for comparar hoje o rendimento quilos-por-hectare de
culturas orgânicas e tradicionais, é quase o mesmo. Em alguns casos
colhe-se mais, em outros um pouco menos. Em um levantamento feito nos
Estados Unidos, uns cinco anos atrás, mostrou-se que a diferença
era 5% a menos para os cultivos orgâni- cos, em média. O que é
surpreendente, dada a falta de investigação.
Agora
vamos voltar à questão de alimentos versus população. A FAO faz
previsões de que nós vamos chegar em meados do século ao redor de
9 bilhões de habitantes. Nós já passamos dos 7. Fazendo as contas,
na virada dos anos 2030 para os 2040, seria necessário dobrar a
produção de grãos para alimentar essa população. Acontece que
nós não temos recursos – nem de solo, nem de água, nem de
energia – para duplicar a produção.
Simplesmente
esses recursos não existem. Só tem um continente com grande
possibilidade de expansão, que é a América do Sul, sobretudo no
Brasil. Na Europa não tem, na América do Norte não tem, e na Ásia
tem muito pouco. Quase toda a África, ao Sul do Saara, é semiárida.
Para fazer produção nessas regiões, seria preciso irrigar. Podemos
fazer um poço profundo e retirar água dali, ideia levada a cabo na
China, na Índia e nos Estados Unidos, que são os três países que
mais irrigam em regiões de semiárido.
Acontece
o seguinte: a água que esses países estão extraindo do solo
acumulou-se em tempos geológico passados. No tempo presente, chove
pouco, então os aquíferos não são alimentados. O resultado é que
a água é como um poço de petróleo. Vai-se esgotar.
E
isso já está acontecendo nesses três países. Não tem como. E a
agricultura, à medida que se tecnifica, consome mais e mais energia
do petróleo. E, se você tem hoje qualquer flutuação no preço do
petróleo, também há uma flutuação imediata nos preços dos
alimentos. E os fertilizantes nitrogenados são totalmente
dependentes do petróleo.
Fora
todo o consumo energético com transporte, armazenamento…
Fora
tudo isso. Nós podemos, num esforço, ampliar momentaneamente a
produção, mas não temos como fazer esse salto enorme
sustentavelmente. Pra piorar, estamos falando de incorporação de
áreas agrícolas, mas o mundo também perde áreas agricultáveis
anualmente. Se não me falha a memória, é da ordem de 5 milhões de
hectares por ano. Não apenas temos capacidade limitada de avançar,
mas estamos testemunhando a perda das áreas que antes eram
utilizadas.
E
por quê?
Por
causa da sanilização e da desertificação.
Como
consequência da agricultura convencional?
Sim.
Então,
quais são as opções de que o mundo dispõe? Seria preciso rever o
consumo de alimentos de origem animal, que puxa o consumo de água e
grãos?
Então,
este é o outro ponto. A Dinamarca consumia, na virada do milênio,
na ordem de 1.400, 1.500 quilos de grãos por habitante ao ano. Isso
significa quase 3 quilos de grão por dia. Não tem jeito de uma
pessoa comer isso. Aqui no Brasil, a gente come cerca de 150 gramas
de arroz por dia, comendo bastante. Essa produção está embutida no
consumo animal.
Os
dados médios da produção animal dos Estados Unidos – semelhante
ao Brasil – mostram que para 1 quilo de frango são necessários
mais ou menos 11 quilos de grãos. E, para 1 quilo de porco, são 22
quilos de grãos. O pessoal da indústria fala que gasta, em média,
2 quilos de ração para fazer 1 quilo de frango. Mas isso é o
animal vivo. Você não come pena, bico, osso, tripa.
Outra
coisa: a ração tem 12% de umidade. E a carne tem 80%. A comparação
correta, então, seria se fosse eliminada a água. Quando você
elimina a água, 1 quilo de matéria seca da parte comestível do
frango custa 11 quilos de ração. É um custo absurdamente elevado.
Com
esse padrão alimentar não dá para saciar o mundo?
De
jeito nenhum. Nem com transgênico, nem com convencional, nem com
orgânico. O resultado é que, queiramos ou não, nós seremos
obrigados a mudar a nossa dieta.
Por
isso o senhor respondeu “sim e não”.
Exato.
A primeira parte era sim, é possível manter um nível bom de
produtividade com a agricultura de base ecológica. Mas não tem
jeito, nós vamos ter que mudar as nossas dietas. A pergunta que se
pode colocar é quando isso acontecerá e se a humanidade vai
enfrentar isso com guerra ou de uma forma discutida, negociada.
Uma
guerra da carne?
Não
é bem isso. Imagine que você está num churrasco. Tem lá uma
saladinha de alface, tem vinagrete, tem pão, e alguém tirou um
pedaço de picanha da churrasqueira e começou a fatiar. Para onde
vai o pessoal? Para a picanha. Por que é que nós gostamos mais de
carne? Se você olhar os problemas de saúde humana que nós
enfrentamos hoje, estão bem ligados ao hábito alimentar. O consenso
dos nutricionistas é o seguinte: estamos comendo muito produto de
origem animal, muita gordura, muito açúcar e muito sal. Porque nós
comemos mais essas coisas? A resposta é: porque é mais gostoso.
Porque, evolutivamente, a gente tinha que desenvolver um pagamento
fisiológico para uma necessidade da espécie.
Um
pé de mandioca não corre. Um pé de tomate também não corre. Mas
bicho corre. Para nós, era importante consumir carne, em determinado
momento da nossa história evolutiva, porque a carne é um alimento
mais completo do ponto de vista protéico. Mas para ter carne era
preciso se esforçar muito mais. Então o pagamento fisiológico era
um prazer maior. A mesma coisa vale para a gordura, para o sal e para
o açúcar. Era muito menos disponível. Até 50 anos atrás, quase
ninguém enchia a barriga de carne ou se empanturrava de doce.
Agora,
imagine que você está em qualquer país democrático e um
governante, entendendo os problemas que são advindos do consumo
crescente de carne, decide impor restrições ao consumo, por
impostos. Quando ele se elege de novo? Nunca. Em nenhum país
democrático essa proposta passaria. Os chineses, há 40 anos,
consumiam quatro quilos de produtos de origem animal ao ano por
cabeça. E hoje estão consumindo na ordem de 75, de 80 quilos. Quem
vai falar para os chineses que não devem consumir carne? Um inglês,
que já consome quase 150 quilos? Nenhum país, ou extrato social,
tem reserva moral para impedir os outros.
Não
tem saída para esse impasse?
Tem
um grupo na Inglaterra que chegou à conclusão de que a única
maneira de resolver esse problema é com o conhecimento do problema,
com a redução voluntária do consumo de carne. É o Eat Less Meat.
Se
chegar num momento em que determinado povo não consegue ter acesso a
carne e outros continuam tendo acesso a quantidades maiores, você
pode esperar que isso estoure na forma de conflito. Esse conflito
pode ser, por exemplo, por causa de água. Para produzir grãos, para
então converter em carne, você precisa de muita água. Em média,
para 1 quilo de grão, você precisa entre 500 e mil litros de água.
Porque as plantas também transpiram, não fazem fotossíntese sem
transpiração.
Tudo
isso não é só catástrofe. Eu acho que tem luz no fim do túnel, e
bastante luz. Porque hoje a percepção é a seguinte: a mesma dieta
que faz bem para o meio ambiente é a dieta que faz bem para a nossa
saúde. Cereais integrais, um pouco de leguminosas, hortaliças e
frutas, quantidades moderadas de produtos de origem animal, e
quantidades limitadas de açúcar e de álcool. Essa dieta é
perfeitamente compatível com uma situação de produção orgânica.
Então, o desafio que se coloca é o seguinte: nós não resolvemos a
segurança alimentar sem mudar os hábitos. E, ao resolver a questão
alimentar, nós resolveremos também as questões de saúde.
Redirecionar
a nossa dieta para produtos locais também faz parte dessa solução?
Claro.
Vamos imaginar que a gente vai ficar nessa dieta recomendada pelos
nutricionistas. Se o seu cereal integral for aveia produzida no
Canadá e trigo produzido na Argentina, se as sua leguminosas são
grão-de-bico produzido no México e lentilha no Chile, se as suas
frutas são peras importadas de Portugal… Bom, você já viu onde
eu estou querendo chegar. Pode até ser orgânico, mas o gasto
energético de transporte com isso é absurdo.
Tem
toda a poluição da siderurgia para fazer esses meios de transporte.
E comida humana é essencialmente perecível. Algun cereais, menos.
Mas para frutas e hortaliças, a escala é de dias, às vezes nem
isso. Exige refrigeração, fungicidas e bactericidas para que esse
transporte de longa distância se realize. Ao passo que, se você faz
as coisas em esquema local, tudo isso se resolve com mais facilidade.
Se você comer hortaliças da região, frutas da época, isso vai
mudando. Esse é o padrão da cultura orgânica de base local.
Mas
isso envolve também o que se chama de “alimentos da terra”,
propícios para a realidade ecológica de cada local?
Sim,
são aqueles que naturalmente crescem melhor em determinado local.
Uma cultura própria da região pede menos adubo e pode sair sem
nenhum veneno. Porque essa cultura está adaptada àquela condição.
Para produzir 20 toneladas de mandioca aqui no Brasil, o que a gente
precisa? Nada. Precisa de trabalho. Mas, de insumos externos, nada.
Então, para o ajuste da composição da dieta ao que é localmente
possível de produzir, este é um passo fundamental. Mas isso só
acontece quando a gente gosta de ser como a gente é.
No
artigo “Breve história ambiental e sociocultural da alimentação
no Brasil”, o senhor argumenta que a maior perda com a inserção
de novas variedades agrícolas por aqui foi cultural…
É.
E o lugar onde essa perda é mais forte no Brasil é a cidade de São
Paulo. Eu sou paulistano. A cidade de São Paulo é o lugar em que os
imigrantes recentes fizeram todo o esforço para negar as influências
tropicais, a influência negra e nordestina, que de alguma forma era
identificada como cultural e socialmente inferior.
Quando
eu era criança, eu ia para o Nordeste e sentia falta de pão. Porque
sou de origem armênia e lá o cereal de base é o trigo, tudo se
come com pão. Mas no Nordeste o pessoal comia tapioca, comia inhame
com manteiga, comia cuscuz de milho, bolo de mandioca. Se nós
paulistas quisermos uma dieta tropical mais adaptada, teríamos que
olhar mais para o vizinho.
Mas,
hoje, se você for a uma capital nordestina qualquer, o pessoal come
pão com manteiga no café da manhã. O trigo foi-se introduzindo
fortemente. E continua avançando. O Brasil é o maior importador de
trigo. O nosso consumo é da ordem de 8 milhões de toneladas, e só
produzimos entre 2 milhões e 3 milhões.
Se
a globalização é irreversível, então esse nosso apetite por
alimentos do mundo todo que a gente descobriu e passou a gostar não
é também irreversível?
Eu
acho que é irreversível. Mas a questão essencial é quantitativa.
Quando eu como determinados produtos, eu me remeto a experiências
minhas de vida. Quando digo que a gente precisa de uma readaptação
ao biorregionalismo, não quero dizer que a gente tem de negar a
diversidade das nossas origens. Mas que a gente tem de colocar essas
necessidades culturais dentro da perspectiva da sustentabilidade.
A
interação entre povos e culturas é desejável e o comércio é uma
forma importante de interagir. Então, fazer uma macarronada uma vez
a cada mês é uma coisa. Mas comer uma macarronada três vezes por
semana é outra coisa. E comer todos os dias de manhã o pão de
trigo que a gente tem que trazer de fora também.
Mas
isso é outra história. Se, nesta conversa, você conseguir quebrar
a mentira, o mito de que a eficiência está ligada à agricultura
empresarial e de que a agricultura de sucesso no mundo é a
empresarial, acho que já está de bom tamanho.
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