Das
democracias totalitárias ao Pós-Capitalismo
14 DE
MARÇO DE 2014 - Entrevista a André Antunes, no Blog da Boitempo
David
Harvey afirma: nova oligarquia controla riquezas globais. Para
superá-la, é preciso compreender que Revolução é processo, não
evento
Um dos
mais influentes pensadores marxistas da atualidade, o geógrafo
britânico David Harvey esteve no Brasil em novembro para divulgar o
lançamento de seu livro Os limites do capital. Escrita há mais de
trinta anos, a obra ganhou sua primeira versão em português, mas,
segundo Harvey, isso não significa que tenha ficado ultrapassada –
pelo contrário. Pioneiro em sua análise geográfica da dinâmica de
acumulação capitalista descrita por Marx, o livro, assim como
grande parte da obra de Harvey, tornou-se mais relevante para
entender os efeitos da exploração econômica dos espaços urbanos e
suas consequências para os trabalhadores, ainda mais numa conjuntura
marcada pela eclosão de protestos contra as condições de vida nas
cidades, não só no Brasil, mas também na Europa, América do Norte
e África. Nesta entrevista, Harvey faz uma análise dos levantes
urbanos que ocorrem em todo mundo, aponta que não será possível
atender às reivindicações por meio de uma reforma do capitalismo,
e defende: é preciso começar a pensar em uma sociedade
pós-capitalista.
Os
limites do capital foi escrito há mais de 30 anos. Desde então o
capitalismo sofreu mudanças profundas. Qual é a atualidade dessa
obra para entender o modelo de acumulação capitalista hoje?
O livro
explora a teoria de Marx sobre acumulação de capital para entender
as práticas de urbanização ao redor do mundo em vários lugares e
momentos históricos diferentes. Minha investigação sobre as ideias
de Marx se estenderam para uma análise de coisas como a renda
fundiária, preços de propriedades, sistemas de crédito.
Uma coisa
curiosa aconteceu: a análise de Marx era sobre o capitalismo
praticado no século 19. Na época em que comecei a escrever Os
limites do capital, havia muitos aspectos do mundo ao meu redor que
não se encaixavam com a descrição de Marx: tínhamos um Estado de
Bem-estar Social, os Estados estavam envolvidos na economia de
diferentes formas, havia arranjos de seguridade social e movimentos
sindicais fortes em muitos países. Mas aí veio a chamada
contrarrevolução neoliberal depois dos anos 1970, com Margareth
Thatcher, Ronald Reagan, as ditaduras na América Latina, e o
capitalismo regrediu para sua forma do século 19. Por exemplo, houve
o desmantelamento de muito da rede de seguridade social em boa parte
da Europa e América do Norte; o capital se tornou muito mais feroz
em sua relação com movimentos trabalhistas; as proteções que
vinham de Estados que eram em algum grau influenciados por movimentos
políticos de esquerda foram desmanteladas em boa parte do mundo. O
que vimos desde os anos 1970 é um aumento da desigualdade social,
que é precisamente o que Marx disse que aconteceria caso adotássemos
um sistema de livre mercado. Adam Smith postulava que se tivéssemos
um livre mercado seria melhor para todos. O que Marx mostra no O
Capital é que quanto mais perto de um livre mercado mais provável é
que os ricos fiquem cada vez mais ricos e os pobres mais pobres. E
essa tem sido a tendência por grande parte do mundo desde os anos
1970 por conta do neoliberalismo.
De uma
maneira curiosa, por essa razão, Marx se tornou mais relevante para
entender o mundo hoje do que era na época em que escrevi o livro. Ao
mesmo tempo, muitas das lutas que vemos ao nosso redor agora são
lutas urbanas em vez de lutas baseadas em unidades fabris, de modo
que ligar a dinâmica do que Marx descrevia com a dinâmica da
urbanização se tornou mais relevante.
E o papel
dos centros urbanos na dinâmica de acumulação capitalista, como
mudou ao longo desse período?
O capital
produz constantemente excedentes, e uma das coisas que aconteceu é
que a cidade se tornou um local para a absorção de capital
excedente. Muito desse dinheiro foi para construção de estruturas,
em alguns casos para a construção de megaprojetos. O capital adora
esses megaprojetos, como os envolvidos em Copas do Mundo e
Olimpíadas, porque são uma ótima oportunidade para gastar muito
dinheiro na construção de novas infraestruturas, o que levanta uma
questão interessante: essas novas infraestruturas acrescentam algo à
produtividade do país? Se você for para a Grécia, vai ver um país
essencialmente falido, com esses estádios vazios ao redor, que foram
construídos para um evento que durou algumas semanas. A maioria dos
lugares que sediam esses eventos tem problemas financeiros sérios
depois mas, no processo, as empreiteiras, construtoras e
financiadoras ganham muito dinheiro. Ao longo dos últimos 40 anos, o
capital excedente foi cada vez mais canalizado para mercados de
ativos, como os direitos de propriedade intelectual, em que você
investe no controle de patentes e vive da renda, sem fazer nada. E,
da mesma forma, as cidades, as propriedades urbanas, se tornaram
ativos muito lucrativos. O que vemos hoje nos mercados imobiliários
é que é quase impossível para a maioria da população encontrar
um lugar para viver que não absorva mais da metade de sua renda.
Esse é um processo mundial: tivemos uma crise na habitação nos
Estados Unidos, na qual o mercado de propriedade entrou em colapso.
Em Nova York, Los Angeles e São Francisco os preços estão subindo,
e vemos o mesmo fenômeno na Europa: tente achar um lugar para morar
em Londres, em Paris. Mais e mais dinheiro está sendo extraído das
pessoas na forma de aluguel. Isso é interessante, porque há um
deslocamento da exploração do trabalho e da produção para
explorar as pessoas em termos de extração de aluguel de seu local
de moradia. O capital consegue inclusive fazer concessões aos
trabalhadores e recapturar esse dinheiro que o trabalhador ganha
aumentando o valor do aluguel.
Você
trabalha atualmente em um livro que lista 17 contradições do
capital: pode falar um pouco sobre elas a partir da crise de 2008?
A forma
como as contradições funcionam é que elas estão interconectadas.
O que houve em 2008 foi uma serie de contradições: entre valor de
uso e de troca, entre a forma do dinheiro e o valor que ele deveria
representar e entre aspectos da propriedade privada e o poder do
Estado. Todas essas contradições se juntaram para criar um ambiente
propício ao acontecimento da crise na habitação. Por exemplo: você
olha uma casa, e há uma contradição entre encará-la em termos de
valor de uso e valor de troca. Em algum ponto a casa se torna uma
forma dupla de valor de troca, porque as pessoas que compram a casa a
veem como uma forma de poupança. E mais tarde eles compram uma casa
como uma forma de investimento, uma forma de ganhar dinheiro. Em vez
de comprar uma casa para morar, as pessoas compram casas para
reformá-las e vendê-las, para ganhar dinheiro em cima disso. Então
se o mercado imobiliário está em alta, é possível ganhar muito
dinheiro muito rápido com esse processo, e o resultado disso é que
as vizinhanças se tornaram instáveis, porque ninguém mora e cuida
do local, só usam a casa para ganhar dinheiro. E ao mesmo tempo, há
muita especulação para tentar elevar o valor da casa por meio de
ajustes superficiais, o que não é um problema em si, até que o
mercado imobiliário despenque, porque as coisas não podem subir
para sempre. Se começa a cair, todo mundo vende rapidamente e você
tem o crash que vimos nos Estados Unidos em 2007-2008, e também na
Espanha, Irlanda e em muitas partes do mundo. Essa tensão entre
valor de troca e de uso é importante, mas é importante olharmos
também para a forma como tudo é monetarizado. Há uma forma
interessante com que o dinheiro começa a gerar mais dinheiro, esse
aspecto especulativo do dinheiro. Eu poderia ter uma casa em Nova
York sem a menor ideia de quem é o proprietário porque as hipotecas
são divididas em pedacinhos e uma parte dela está na Alemanha,
outra em Hong Kong e ninguém consegue descobrir de quem é a dívida.
Isso é uma ficção que aconteceu por causa da maneira como o
sistema monetário evoluiu.
A outra
contradição é entre o Estado e a propriedade privada. O que vemos
é que, em países como os Estados Unidos, o Estado vem incentivando
a compra de casa própria nos últimos 40 anos, criando novas
instituições financeiras para apoiar a aquisição da casa própria,
dando isenções de impostos se você é proprietário, a um ponto
que todo mundo tem que se tornar um proprietário, quando isso não é
economicamente racional em mercados especulativos desse tipo. Entre
quatro e seis milhões de pessoas foram despossuídas de suas casas
nos Estados Unidos através dessa crise de execução de hipotecas.
Quando perguntaram para as pessoas por que elas achavam que isso
tinha acontecido, quem elas culparam? Elas mesmas. É exatamente o
que os neoliberais dizem que você deve fazer. Vivemos num mundo em
que o modo de pensar neoliberal se tornou profundamente arraigado:
essa ideia de que nós como indivíduos somos responsáveis por
sermos pobres. Como dizer para as pessoas que não é culpa delas,
que é um problema sistêmico? É como o capital funciona,
especialmente na sua forma de livre mercado, e se você é pobre você
é um produto deste sistema. A única maneira de solucionar isso é
mudando o sistema, o que quer dizer que é preciso tornar-se
anticapitalista.
Na sua
avaliação, as manifestações que acontecem no Brasil apontam uma
insatisfação da população brasileira aos efeitos concretos dessas
contradições?
Eu acho
que em vários lugares do mundo atualmente você vai encontrar um
sentimento de profunda insatisfação. Há um grande
descontentamento, mas acho que em nenhum desses lugares emergiu um
movimento consolidado em termos de um entendimento de para onde esse
descontentamento deve ser canalizado e o que deve ser feito para
mudar esse quadro. Como resultado, o que você vê são essas
erupções contínuas ao redor do mundo. Eu vejo que há um
sentimento de descontentamento mundial que não está sintetizado,
mas é interessante notar como ele entra em erupção e ninguém
espera.
Ninguém
esperava o que aconteceu no Brasil, foi uma surpresa. Ninguém
esperava o que aconteceu na Praça Taksim, em Istambul, em Estocolmo,
em Londres. O que se vê é um padrão global de expressões de
descontentamento, que não localizaram o problema central, mas que
são indicações de um descontentamento profundo com a maneira como
o mundo caminha. Para mim, a melhor forma de se analisar isso é
olhar quão bem o capital está indo. A maneira mais simples de
ilustrar isso é olhando para a desigualdade de renda. Dados de
vários países ao redor do mundo mostram que os 2% de maior renda
entre a população saíram da crise muito bem e na verdade ganharam
muito dinheiro com ela, enquanto o padrão de vida do resto encolheu.
Isso
varia de um país para outro, mas dados da Oxfam apontam que os 100
maiores bilionários do mundo aumentaram sua riqueza em US$ 240
bilhões só em 2012. O número de bilionários aumentou
dramaticamente nos últimos cinco anos, não só nos Estados Unidos:
esse número dobrou na Índia nos últimos três anos, há muitos
bilionários no Brasil, o mais rico do mundo é Carlos Slim, do
México, há bilionários surgindo na Rússia, na China. Os dados
mostram que o capital está indo extremamente bem.
É
possível atender às reivindicações das ruas com uma reforma no
capitalismo?
As
opiniões variam na questão de o quanto podemos extrair das
dificuldades atuais e ainda termos um capitalismo dinâmico. Minha
análise é que será muito difícil desta vez. Certamente é
possível acabar com alguns dos excessos do capitalismo neoliberal e
certamente podemos ter um tipo de capitalismo mais socialmente justo,
com redistribuição modesta de riqueza das classes abastadas para as
classes médias e baixas. Há possibilidades de reforma do sistema e
eu obviamente as apoiaria. Mas não acho que elas vão resolver o
problema. Acho que a quantidade de riqueza que pode ser redistribuída
é relativamente limitada. Em segundo lugar, falta poder político
para fazê-lo. Temos uma situação agora em que essencialmente o
poder político, a mídia, estão completamente capturados pelo
grande capital, e a barreira política para fazer algo além de
medidas pontuais é imensa. Temos uma oligarquia global que controla
essencialmente toda a riqueza mundial, a mídia, os partidos
políticos, o processo político.
Vivemos
hoje no que eu chamaria de democracias totalitárias, e acho que é
muito difícil quebrar isso porque a oligarquia não está
interessada em abrir mão desse poder. Então há uma barreira
política e há também uma barreira econômica, porque se você
realmente começa a redistribuir riqueza no modo que precisaríamos
para resolver esses problemas e ter educação, saúde e transporte
público decente para todos, se realmente fôssemos fazer isso,
teríamos que tirar muito do dinheiro que hoje vai para os projetos
que interessam ao grande capital.
Por que
você acha que vai ser difícil sair da crise atual?
O capital
tem que crescer, e crescer a uma taxa composta, que tem uma curva de
crescimento exponencial. Isso significa que cada vez mais somos
empurrados a encontrar oportunidades de investimento lucrativas, mais
e mais. Meu cálculo, de maneira grosseira, é que nos anos 1970,
globalmente, era preciso achar oportunidades de investimento
lucrativas para algo em torno de US$ 600 bilhões. Hoje é preciso
encontrar canais lucrativos para investimentos na ordem de US$ 3
trilhões. Em 20 anos, falaremos em canais lucrativos de investimento
para US$ 6 trilhões e assim por diante. Acho que manter o capital
ativo tornou-se um sério problema, e se houver um crescimento zero,
há uma crise. O crescimento composto se torna cada vez mais
problemático. Temos tido esse problema desde os anos 1970 e é por
isso que mais e mais capitalistas estão vivendo de renda ao invés
de procurar oportunidades de investimento lucrativas produzindo
coisas materiais, que já não é tão lucrativo. E se todo mundo
investe no rentismo, ninguém produz nada, o que também é um
problema.
Você
fala da importância de uma imaginação pós-capitalista. Fale sobre
a sua visão do que seria uma sociedade pós-capitalista.
É
preciso haver uma revolução nas percepções, nas práticas, nas
instituições. E essas revoluções levam muito tempo para se
concretizarem. Quando você pensa na história do neoliberalismo, vê
que foi uma transformação revolucionária que aconteceu num período
de 30, 40 anos. Se foi possível mudar daquilo para isso, por que não
podemos mudar do que vemos hoje para outra coisa? Mas temos que
pensar não simplesmente em termos de fazermos barricadas, mudarmos
governos. Temos que pensar nisso como um processo de 40 anos de
mudança de mentalidades, concepções. Por exemplo, como as pessoas
pensam a solidariedade social com seus vizinhos. Nos anos 1970 havia
muito mais solidariedade social, e hoje o mundo se tornou muito mais
individualista. Uma revolução é um processo, não um evento,
estamos falando de transformações de longo prazo, e isso requer que
as pessoas comecem a formular ideias sobre como mudar o mundo. Há
muitos elementos que estão sendo praticados atualmente, o problema é
que a maioria em pequena escala. Por exemplo, economias solidárias
sendo praticadas ao redor do mundo, no Brasil, nos Estados Unidos. Há
grupos tentando desenvolver modos de vida alternativos,
ambientalistas, por exemplo, o movimento de recuperação de fábricas
por trabalhadores na Argentina, há muitos movimentos desse tipo
acontecendo, alguns em meio à crise. Na Grécia vemos o
desenvolvimento de sistemas monetários alternativos e por aí vai.
Há muitas coisas acontecendo atualmente que podem ser consideradas
experimentos-piloto. Acho importante olhá-las e analisar quais são
os elementos para se pensar um tipo diferente de sociedade no futuro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário