quarta-feira, 19 de março de 2014

Descompassos entre política e ecologia - entrevista com o sociólogo britânico Steven Yearle




Sociólogo britânico Steven Yearley aponta os descompassos entre a política e a ecologia


Referência no estudo da sociologia ambiental, pesquisador cobra maior presença do ambientalismo no debate global e defende maior participação do público em pautas controversas


Publicado no jornal O Globo em 11/03/14



RIO - O diálogo entre a ciência e o social está no centro da trajetória acadêmica do britânico Steven Yearley. Professor de Sociologia do Conhecimento Científico na Universidade de Edimburgo e um dos expoentes do Science Studies (campo de pesquisa interdisciplinar que visa elucidar o funcionamento concreto da ciência e sua articulação com o resto da sociedade), o sociólogo é uma das principais referências no estudo das tensões entre ciência, ambientalismo e política — e as controvérsias e incertezas provocadas pelos descompassos entre estas diferentes esferas. Analisando a dinâmica científica dentro de uma ordem democrática, busca entender como se negociam decisões sobre temas que ainda não apresentam uma solução definitiva, como o aquecimento global e os organismos geneticamente modificados (OGM). Em entrevista à Revista Amanhã, Yearley lamenta a presença limitada do debate ambiental na agenda global, e defende uma maior participação do público em pautas polêmicas, que transcendem a área científica.


O meio ambiente está recebendo a atenção necessária no debate da globalização?

Acredito que a resposta seja não, o que é algo admirável. Por um lado, o movimento ambiental foi muito bem sucedido na promoção de uma consciência do ambiente global. O conhecido nome “Amigos da Terra”, por exemplo, mostra como facilmente pensamos “a Terra” como parte de uma perspectiva ambiental. Mas o processo de globalização tem focado em mercado, comunicação e finanças. Até mesmo a globalização cultural tem sido mais discutida do que a globalização ambiental. Vejo aí uma ironia: já pensamos “o Planeta” como um objeto frágil, mas a globalização mainstream deixou esta imagem quase completamente fora dos seus discursos. Às vezes, é claro, as duas coisas se encontram. Aconteceu de forma surpreendente com a Organização mundial do comércio (OMC) e outras entidades, como o Tratado norte-americano de livre comércio (NAFTA).

Até agora, qual foi a importância de uma entidade como a OMC?

Quase todos os acordos ambientais (proteção da camada de ozônio ou o comércio de espécies ameaçadas de extinção, por exemplo) têm implicações para o comércio livre. Por isso, a OMC foi muitas vezes obrigada a considerar os direitos de comércio global em função das necessidades ambientais globais. Nem sempre o comércio foi colocado em primeiro lugar, mas é surpreendente para muitas pessoas a importância que a OMC passou a ter como um regulador ambiental.

Como a questão ambiental pode se tornar prioritária na agenda global?

É uma pergunta difícil, e os ambientalistas sofrem com ela há décadas. Tenho uma lembrança muito forte do início dos anos 1990, quando os ambientalistas viam esta década como a sua última chance de fazer algo a respeito da poluição do ar, aquecimento global, e conservação da biodiversidade. Mas o novo século chegou sem grandes realizações. Em muitos aspectos, o grande desenvolvimento dessa década não foi o surgimento de acordos ambientais, mas sim o surgimento da China (e, em certa medida, da Índia) como grandes potências econômicas e um enorme aumento da produção econômica mundial. A recusa do EUA em se inscrever em Kyoto e, em seguida, a rejeição de George W. Bush à ideia de que o Norte deve assumir a liderança decisiva sobre a mudança climática, marcou o fim de uma abordagem possível para o problema. Em meados da década de 2000, as emissões da China haviam ultrapassado as dos Estados Unidos e os membros do “clube” dos grandes poluidores se alterou de forma decisiva. Ainda estamos pesquisando um novo tipo de abordagem para os principais problemas ambientais globais — um que combine justiça e eficácia.

A ciência tem sido mais questionada agora do que no século passado? Quais são as questões ambientais mais controversas no momento?

As mudança climática ainda é “controversa” em algum sentido. Alguns grupos, certamente, fazem muito esforço para que ela pareça controversa. Mas há outras questões ambientais em que o papel da ciência ainda é genuinamente polêmico. Um caso recente tem sido o das abelhas. Ainda hoje, as abelhas são muito importantes para o trabalho de polinização; nos Estados Unidos, fazem parte de um grande negócio. Mas as abelhas estão em declínio e a causa não é clara. Na Europa, há um grande debate sobre se inseticidas específicos deveriam ser proibidos — aqueles conhecidos como neonicotinóides. Todos parecem concordar que deve haver uma resposta científica à pergunta sobre o que está causando o declínio na quantidade de abelhas e sobre qual a responsabilidade dos neonicotinóides nesta questão. Mas não há consenso sobre a forma de avaliar as evidências disponíveis. É claro que, a longo prazo, uma resposta provavelmente será acordada, mas até lá as abelhas podem ter se tornado raras ou até mesmo extintas.

Seria um exemplo clássico de uma controvérsia sobre o quanto se deve esperar por certezas científicas antes de tomar providências?

Exato. Ambientalistas têm tendência a afirmar que os cientistas e funcionários não estão dispostos a dar às abelhas o “benefício da dúvida”. Pelo menos no Reino Unido, cientistas do governo argumentam que a proibição os produtos químicos também podem causar problemas, porque os agricultores terão que usar outros inseticidas em suas áreas e estes seriam ainda piores para a vida selvagem e para o meio ambiente em geral. Mas parece- me que este tipo de debate, em que as pessoas querem apelar para a objetividade da ciência, mesmo sendo difícil saber quais são as implicações da ciência, acabe se polarizando. E isto pode trazer problemas com a opinião pública e com a abordagem oficial do conhecimento científico.

De acordo com a Nasa e a Scientific American, existe um consenso entre pelo menos 97% dos artigos de que o aquecimento global é real e tem origem antropogênica. Mas ainda se vê ceticismo em alguns setores. Há forças políticas e econômicas por trás da controvérsia?

Acho que a resposta é certamente sim, e muitos dos céticos do clima têm usado argumentos fracos e inconsistentes na tentativa de defender a posição deles. Mas é claro que existem características específicas na ciência da mudança climática que estão abertas à controvérsia.

E quais seriam elas?

Em primeiro lugar, o clima é naturalmente muito variável e imprevisível, por isso é impossível dizer que um furacão ou um clima excepcionalmente úmido é consequência da mudança climática. Alguns anos foram muito úmidos ou quentes no passado e nem tudo tem explicação no aquecimento global. Tivemos agora o inverno mais chuvoso na Inglaterra em mais de cem anos. Isto se encaixa com as previsões de modelos climáticos para mais chuva no Reino Unido nos meses de inverno. Mas ninguém pode dizer ainda que as mudanças climáticas correspondem à, por exemplo, 60 por cento destas chuvas. Poderia ter acontecido de qualquer maneira. As pessoas estão trabalhando duro na questão de “atribuição” para ver quais métodos poderiam ser usados para colocar números nestes casos. No entanto, há alguns fenômenos recentes, como o derretimento rápido e grande do gelo marinho no Ártico durante os meses de verão, extremamente improvável e chocante, que estavam previstos por modelos climáticos e que continuam acontecendo ano após ano. Casos como estes parecem provas das mudanças climáticas. E isto cria espaço para a controvérsia. Na média, a temperatura global do ar subiu menos nos últimos 15 anos do que a maioria dos cientistas anteciparam, embora a extensão do aumento dependa muito do ano em que se começa a contá-lo. Esta aparente abrandamento do aquecimento talvez aconteça porque os oceanos estão absorvendo cada vez mais calor da atmosfera e armazenando-o em sua profundidade. Só que esta evolução não foi prevista. Assim, os céticos do clima foram capazes de apontar para a falta de aquecimento global no passado recente para tentar lançar dúvidas sobre as alegações dos cientistas. Os cientistas, por sua vez, salientam que o nível do mar continua subindo e que os oceanos estão se tornando mais ácidos.

Pensando nisto, qual seria a melhor estratégia para persuadir os negacionistas das mudanças climáticas?

Está claro que os negacionistas do clima são indiferentes ao fato de que 97% ou 99% dos estudos comprovam as mudanças climáticas. Suspeito que a forma inteligente não é procurar 100% de provas, pois isso não irá funcionar. É preciso encontrar uma maneira de contornar o argumento. Se grandes fabricantes, grandes bancos e seguradoras — empresas profundamente capitalistas com as quais muitos dos negacionistas se identificam — começarem a tratar as mudanças climáticas como um problema real e com implicações comerciais, isto terá muito mais persuasivo do que os mais inteligentes pontos de vista científicos.

Em temas controversos como os dos organismos geneticamente modificados (OGM), como se dá a negociação entre os diferentes agentes?

Há uma bela ironia na comparação entre os casos dos OGM e as mudanças climáticas. Muitos ambientalistas argumentam que a mudança climática é real porque foram oferecidas provas científicas, ao passo que são céticos em relação às garantias dos cientistas sobre a segurança dos OGM. Negacionistas do clima, por outro lado, tendem a expressar muita fé em reivindicações dos cientistas sobre a inofensividade dos OGM ao mesmo tempo em que ignoram provas científicas das tendências dominantes no clima e os perigos associados a elas. Às vezes, alguém quebra o padrão. Um razoavelmente bem conhecido ativista ambiental britânico mudou publicamente a sua opinião sobre os OGMs pouco mais de um ano atrás. Segundo ele, a mudança climática era uma questão tão enraizado na ciência que se tornou impossível falar em nome da ciência do clima a menos que também aceitasse os argumentos científicos sobre os OGMs. Mas as duas questões não são paralelas. No caso dos OGM , é mais fácil aceitar as diferenças de opinião. Se os agricultores e as autoridades americanos pretendem utilizar os OGMs e os da Europa não fizerem isso, os dois sistemas poderão operar razoavelmente bem mesmo assim. O mesmo não é verdade para as mudança climáticas na medida em que as emissões chinesas e americanas afetam o mundo inteiro. Por isso a necessidade de que todos os grandes emissores adotem uma posição coletiva.

Como a participação pública pode influenciar modelos científicos?

A ideia de que existe um papel para a participação pública na formação do conhecimento científico do mundo natural se tornou bastante popular nos últimos 20 anos. Como eu mencionei antes, em relação à questão das abelhas e inseticidas, muitas vezes há uma pergunta sobre como equilibrar as descobertas científicas com outros problemas (a saúde das próprias abelhas ou a produtividade agrícola). São julgamentos que envolvem a avaliação científica, mas não é simplesmente uma questão científica. De certa forma, é uma questão política. Nas sociedades democráticas, é de se esperar que os cidadãos tenham uma palavra a dizer sobre tais assuntos. Não significa que só as ideias dos cidadãos contam, mas as pessoas devem, sim, ser ouvidas.

Existe hoje um abismo entre ciência e política? Como deveria funcionar esta dinâmica entre política, ciência e economia?

Bruno Latour (filósofo francês, um dos fundadores dos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia) ficou famoso ao defender esta teoria, mas eu acho que sua visão está equivocada. Não creio que haja uma solução simples aqui. As opiniões científicas são necessárias para decidir políticas ambientais, mas elas não são a única informação relevante — elas não são sequer a única informação relevante sobre o estado do conhecimento ambiental. Claramente, porém, há coisas que precisamos fazer, como a promoção da participação pública no fazer ambiental onde ela é adequada.

Atualmente, o senhor trabalha em um programa para a diversidade nos zoológicos europeus. O que achou da recente polêmica sobre o sacrifício de uma girafa saudável em um zoológico da Dinamarca?

Foi algo muito triste. Existe um grande problema nos zoológicos quando se quer produzir novas gerações de animais. Os administradores precisam impedir o acasalamento entre indivíduos próximos para evitar uma deterioração genética dos animais. Uma maneira de resolver este problema é trocar ou vender animais para outros zoos, mas há regras rigorosas para que estes animais não acabem em parques de baixa qualidade. E, pelo que entendi, nenhum zoo de qualidade precisava de uma girafa extra. Teria sido cruel deixá-la à sua própria sorte ou segregada. Mas talvez o zoo pudesse ter feitos maiores esforços para colocar a girafa em outro lugar.






Nenhum comentário: