Sociólogo
britânico Steven Yearley aponta os descompassos entre a política e
a ecologia
Referência
no estudo da sociologia ambiental, pesquisador cobra maior presença
do ambientalismo no debate global e defende maior participação do
público em pautas controversas
Publicado no jornal O Globo em 11/03/14
RIO
- O diálogo entre a ciência e o social está no centro da
trajetória acadêmica do britânico Steven Yearley. Professor de
Sociologia do Conhecimento Científico na Universidade de Edimburgo e
um dos expoentes do Science Studies (campo de pesquisa
interdisciplinar que visa elucidar o funcionamento concreto da
ciência e sua articulação com o resto da sociedade), o sociólogo
é uma das principais referências no estudo das tensões entre
ciência, ambientalismo e política — e as controvérsias e
incertezas provocadas pelos descompassos entre estas diferentes
esferas. Analisando a dinâmica científica dentro de uma ordem
democrática, busca entender como se negociam decisões sobre temas
que ainda não apresentam uma solução definitiva, como o
aquecimento global e os organismos geneticamente modificados (OGM).
Em entrevista à Revista Amanhã, Yearley lamenta a presença
limitada do debate ambiental na agenda global, e defende uma maior
participação do público em pautas polêmicas, que transcendem a
área científica.
O
meio ambiente está recebendo a atenção necessária no debate da
globalização?
Acredito
que a resposta seja não, o que é algo admirável. Por um lado, o
movimento ambiental foi muito bem sucedido na promoção de uma
consciência do ambiente global. O conhecido nome “Amigos da
Terra”, por exemplo, mostra como facilmente pensamos “a Terra”
como parte de uma perspectiva ambiental. Mas o processo de
globalização tem focado em mercado, comunicação e finanças. Até
mesmo a globalização cultural tem sido mais discutida do que a
globalização ambiental. Vejo aí uma ironia: já pensamos “o
Planeta” como um objeto frágil, mas a globalização mainstream
deixou esta imagem quase completamente fora dos seus discursos. Às
vezes, é claro, as duas coisas se encontram. Aconteceu de forma
surpreendente com a Organização mundial do comércio (OMC) e outras
entidades, como o Tratado norte-americano de livre comércio (NAFTA).
Até
agora, qual foi a importância de uma entidade como a OMC?
Quase
todos os acordos ambientais (proteção da camada de ozônio ou o
comércio de espécies ameaçadas de extinção, por exemplo) têm
implicações para o comércio livre. Por isso, a OMC foi muitas
vezes obrigada a considerar os direitos de comércio global em função
das necessidades ambientais globais. Nem sempre o comércio foi
colocado em primeiro lugar, mas é surpreendente para muitas pessoas
a importância que a OMC passou a ter como um regulador ambiental.
Como
a questão ambiental pode se tornar prioritária na agenda global?
É
uma pergunta difícil, e os ambientalistas sofrem com ela há
décadas. Tenho uma lembrança muito forte do início dos anos 1990,
quando os ambientalistas viam esta década como a sua última chance
de fazer algo a respeito da poluição do ar, aquecimento global, e
conservação da biodiversidade. Mas o novo século chegou sem
grandes realizações. Em muitos aspectos, o grande desenvolvimento
dessa década não foi o surgimento de acordos ambientais, mas sim o
surgimento da China (e, em certa medida, da Índia) como grandes
potências econômicas e um enorme aumento da produção econômica
mundial. A recusa do EUA em se inscrever em Kyoto e, em seguida, a
rejeição de George W. Bush à ideia de que o Norte deve assumir a
liderança decisiva sobre a mudança climática, marcou o fim de uma
abordagem possível para o problema. Em meados da década de 2000, as
emissões da China haviam ultrapassado as dos Estados Unidos e os
membros do “clube” dos grandes poluidores se alterou de forma
decisiva. Ainda estamos pesquisando um novo tipo de abordagem para os
principais problemas ambientais globais — um que combine justiça e
eficácia.
A
ciência tem sido mais questionada agora do que no século passado?
Quais são as questões ambientais mais controversas no momento?
As
mudança climática ainda é “controversa” em algum sentido.
Alguns grupos, certamente, fazem muito esforço para que ela pareça
controversa. Mas há outras questões ambientais em que o papel da
ciência ainda é genuinamente polêmico. Um caso recente tem sido o
das abelhas. Ainda hoje, as abelhas são muito importantes para o
trabalho de polinização; nos Estados Unidos, fazem parte de um
grande negócio. Mas as abelhas estão em declínio e a causa não é
clara. Na Europa, há um grande debate sobre se inseticidas
específicos deveriam ser proibidos — aqueles conhecidos como
neonicotinóides. Todos parecem concordar que deve haver uma resposta
científica à pergunta sobre o que está causando o declínio na
quantidade de abelhas e sobre qual a responsabilidade dos
neonicotinóides nesta questão. Mas não há consenso sobre a forma
de avaliar as evidências disponíveis. É claro que, a longo prazo,
uma resposta provavelmente será acordada, mas até lá as abelhas
podem ter se tornado raras ou até mesmo extintas.
Seria
um exemplo clássico de uma controvérsia sobre o quanto se deve
esperar por certezas científicas antes de tomar providências?
Exato.
Ambientalistas têm tendência a afirmar que os cientistas e
funcionários não estão dispostos a dar às abelhas o “benefício
da dúvida”. Pelo menos no Reino Unido, cientistas do governo
argumentam que a proibição os produtos químicos também podem
causar problemas, porque os agricultores terão que usar outros
inseticidas em suas áreas e estes seriam ainda piores para a vida
selvagem e para o meio ambiente em geral. Mas parece- me que este
tipo de debate, em que as pessoas querem apelar para a objetividade
da ciência, mesmo sendo difícil saber quais são as implicações
da ciência, acabe se polarizando. E isto pode trazer problemas com a
opinião pública e com a abordagem oficial do conhecimento
científico.
De
acordo com a Nasa e a Scientific American, existe um consenso entre
pelo menos 97% dos artigos de que o aquecimento global é real e tem
origem antropogênica. Mas ainda se vê ceticismo em alguns setores.
Há forças políticas e econômicas por trás da controvérsia?
Acho
que a resposta é certamente sim, e muitos dos céticos do clima têm
usado argumentos fracos e inconsistentes na tentativa de defender a
posição deles. Mas é claro que existem características
específicas na ciência da mudança climática que estão abertas à
controvérsia.
E
quais seriam elas?
Em
primeiro lugar, o clima é naturalmente muito variável e
imprevisível, por isso é impossível dizer que um furacão ou um
clima excepcionalmente úmido é consequência da mudança climática.
Alguns anos foram muito úmidos ou quentes no passado e nem tudo tem
explicação no aquecimento global. Tivemos agora o inverno mais
chuvoso na Inglaterra em mais de cem anos. Isto se encaixa com as
previsões de modelos climáticos para mais chuva no Reino Unido nos
meses de inverno. Mas ninguém pode dizer ainda que as mudanças
climáticas correspondem à, por exemplo, 60 por cento destas chuvas.
Poderia ter acontecido de qualquer maneira. As pessoas estão
trabalhando duro na questão de “atribuição” para ver quais
métodos poderiam ser usados para colocar números nestes casos. No
entanto, há alguns fenômenos recentes, como o derretimento rápido
e grande do gelo marinho no Ártico durante os meses de verão,
extremamente improvável e chocante, que estavam previstos por
modelos climáticos e que continuam acontecendo ano após ano. Casos
como estes parecem provas das mudanças climáticas. E isto cria
espaço para a controvérsia. Na média, a temperatura global do ar
subiu menos nos últimos 15 anos do que a maioria dos cientistas
anteciparam, embora a extensão do aumento dependa muito do ano em
que se começa a contá-lo. Esta aparente abrandamento do aquecimento
talvez aconteça porque os oceanos estão absorvendo cada vez mais
calor da atmosfera e armazenando-o em sua profundidade. Só que esta
evolução não foi prevista. Assim, os céticos do clima foram
capazes de apontar para a falta de aquecimento global no passado
recente para tentar lançar dúvidas sobre as alegações dos
cientistas. Os cientistas, por sua vez, salientam que o nível do mar
continua subindo e que os oceanos estão se tornando mais ácidos.
Pensando
nisto, qual seria a melhor estratégia para persuadir os
negacionistas das mudanças climáticas?
Está
claro que os negacionistas do clima são indiferentes ao fato de que
97% ou 99% dos estudos comprovam as mudanças climáticas. Suspeito
que a forma inteligente não é procurar 100% de provas, pois isso
não irá funcionar. É preciso encontrar uma maneira de contornar o
argumento. Se grandes fabricantes, grandes bancos e seguradoras —
empresas profundamente capitalistas com as quais muitos dos
negacionistas se identificam — começarem a tratar as mudanças
climáticas como um problema real e com implicações comerciais,
isto terá muito mais persuasivo do que os mais inteligentes pontos
de vista científicos.
Em
temas controversos como os dos organismos geneticamente modificados
(OGM), como se dá a negociação entre os diferentes agentes?
Há
uma bela ironia na comparação entre os casos dos OGM e as mudanças
climáticas. Muitos ambientalistas argumentam que a mudança
climática é real porque foram oferecidas provas científicas, ao
passo que são céticos em relação às garantias dos cientistas
sobre a segurança dos OGM. Negacionistas do clima, por outro lado,
tendem a expressar muita fé em reivindicações dos cientistas sobre
a inofensividade dos OGM ao mesmo tempo em que ignoram provas
científicas das tendências dominantes no clima e os perigos
associados a elas. Às vezes, alguém quebra o padrão. Um
razoavelmente bem conhecido ativista ambiental britânico mudou
publicamente a sua opinião sobre os OGMs pouco mais de um ano atrás.
Segundo ele, a mudança climática era uma questão tão enraizado na
ciência que se tornou impossível falar em nome da ciência do clima
a menos que também aceitasse os argumentos científicos sobre os
OGMs. Mas as duas questões não são paralelas. No caso dos OGM , é
mais fácil aceitar as diferenças de opinião. Se os agricultores e
as autoridades americanos pretendem utilizar os OGMs e os da Europa
não fizerem isso, os dois sistemas poderão operar razoavelmente bem
mesmo assim. O mesmo não é verdade para as mudança climáticas na
medida em que as emissões chinesas e americanas afetam o mundo
inteiro. Por isso a necessidade de que todos os grandes emissores
adotem uma posição coletiva.
Como
a participação pública pode influenciar modelos científicos?
A
ideia de que existe um papel para a participação pública na
formação do conhecimento científico do mundo natural se tornou
bastante popular nos últimos 20 anos. Como eu mencionei antes, em
relação à questão das abelhas e inseticidas, muitas vezes há uma
pergunta sobre como equilibrar as descobertas científicas com outros
problemas (a saúde das próprias abelhas ou a produtividade
agrícola). São julgamentos que envolvem a avaliação científica,
mas não é simplesmente uma questão científica. De certa forma, é
uma questão política. Nas sociedades democráticas, é de se
esperar que os cidadãos tenham uma palavra a dizer sobre tais
assuntos. Não significa que só as ideias dos cidadãos contam, mas
as pessoas devem, sim, ser ouvidas.
Existe
hoje um abismo entre ciência e política? Como deveria funcionar
esta dinâmica entre política, ciência e economia?
Bruno
Latour (filósofo francês, um dos fundadores dos Estudos Sociais da
Ciência e da Tecnologia) ficou famoso ao defender esta teoria, mas
eu acho que sua visão está equivocada. Não creio que haja uma
solução simples aqui. As opiniões científicas são necessárias
para decidir políticas ambientais, mas elas não são a única
informação relevante — elas não são sequer a única informação
relevante sobre o estado do conhecimento ambiental. Claramente,
porém, há coisas que precisamos fazer, como a promoção da
participação pública no fazer ambiental onde ela é adequada.
Atualmente,
o senhor trabalha em um programa para a diversidade nos zoológicos
europeus. O que achou da recente polêmica sobre o sacrifício de uma
girafa saudável em um zoológico da Dinamarca?
Foi
algo muito triste. Existe um grande problema nos zoológicos quando
se quer produzir novas gerações de animais. Os administradores
precisam impedir o acasalamento entre indivíduos próximos para
evitar uma deterioração genética dos animais. Uma maneira de
resolver este problema é trocar ou vender animais para outros zoos,
mas há regras rigorosas para que estes animais não acabem em
parques de baixa qualidade. E, pelo que entendi, nenhum zoo de
qualidade precisava de uma girafa extra. Teria sido cruel deixá-la à
sua própria sorte ou segregada. Mas talvez o zoo pudesse ter feitos
maiores esforços para colocar a girafa em outro lugar.
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