terça-feira, 13 de agosto de 2013

Tarifa Zero: debate em quatro artigos da Folha



Tarifa Zero: debate em quatro artigos da Folha



Folha, 05/07/2013

Rumo à tarifa zero

Daniel Guimarães, Graziela Kunsch, Mariana Toledo e Luiza Mandetta


É preciso abrir a caixa-preta dos transportes públicos, com ou sem CPI, e, sobretudo, é urgente discutir o modelo de gestão

Há pouco, escrevemos sobre os motivos que nos levaram às ruas. O aumento de R$ 0,20 nas tarifas acentuaria a exclusão social provocada por um modelo de gestão do transporte baseado nas concessões privadas e na cobrança de tarifa.

Após duas semanas de luta, a população de São Paulo revogou o aumento. Resistimos à desqualificação dos meios de comunicação, bombas, balas e prisões arbitrárias.

Isso não fugiu à regra do tratamento que o Estado dá aos movimentos sociais. É importante que o Judiciário reconheça a ilegalidade das acusações que pesam sobre alguns dos detidos, entre elas a de formação de quadrilha. E que o Ministério Público reconheça a arbitrariedade da polícia e se recuse a oferecer denúncias contra manifestantes, evitando processos criminais.

Foi uma vitória das ruas, de esquerda e pedagógica, que ensinou que a população organizada pode mudar os rumos de sua cidade e, por consequência, de sua vida. Tarifas foram reduzidas em quase 50 cidades, sendo mais de dez capitais. Há lutas em andamento, e o debate sobre a tarifa zero está em pauta.

Por conta desse cenário e por contribuirmos ao pensar a mobilidade urbana como forma de garantir o direito à cidade, fomos convidados pela presidenta Dilma Rousseff para uma conversa em Brasília. Fomos, mas não sozinhos. Sem sermos porta-vozes de ninguém que não nós mesmos, manifestamos solidariedade às lutas reprimidas de outros movimentos e de povos indígenas.

A presidenta não havia se debruçado com profundidade sobre nossa principal proposta. Ao afirmar que "não existe tarifa zero: ou se paga passagem ou se paga imposto", ignora que nunca defendemos ônibus de graça. Transporte tem um custo, claro, mas a tarifa pode ser zero.

Esse custo deve ser pago coletivamente, de forma progressiva (quem tem mais paga mais, quem tem menos paga menos) e não apenas pelo usuário. Sem transporte, nada funciona e, por isso, a conta deve ser dividida por meio de impostos, como todos os serviços públicos.

Dilma ao menos demonstrou concordar que o transporte é um direito social e cobramos um posicionamento sobre a PEC 90, proposta de emenda constitucional que insere o transporte público entre os direitos sociais no artigo 6º da Constituição, em tramitação na Câmara.

Dilma reiterou sua disposição em políticas de desoneração, pauta histórica dos empresários organizados. Não concordamos. Desonerar é fazer com que o Estado deixe de arrecadar, subsidiando empresas privadas, não a população. O dinheiro público deve ser investido em transporte público --queremos disputar o uso dos recursos. Com o que o Estado gasta? De acordo com o Ipea, o Brasil investe 12 vezes mais em transporte privado do que em público. Devemos inverter as prioridades!

Finalmente, consideramos oportuna a decisão do prefeito Fernando Haddad de suspender a licitação das empresas de ônibus. É preciso abrir a caixa-preta, com ou sem CPI, e, sobretudo, é urgente discutir o modelo de gestão.

É significativa a informação de que os empresários ameaçaram boicotar a licitação e até deixar a cidade com menos ônibus por avaliar que perderiam cerca de 10% de seus rendimentos. É por isso que o transporte deve ser gerido pelo poder público e com participação popular, não pela lógica do lucro.

O Movimento Passe Livre seguirá nas ruas, nas escolas, nos bairros, fazendo o debate com a população. Nossa luta de fôlego é pela tarifa zero. Por ela coletaremos 430 mil assinaturas para propor um projeto de lei de iniciativa popular na Câmara dos Vereadores. Vamos retirar as catracas do caminho. Juntos abriremos as ruas de São Paulo.

DANIEL GUIMARÃES, 29, jornalista, GRAZIELA KUNSCH, 34, artista, MARIANA TOLEDO, 27, socióloga, e LUIZA MANDETTA, 19, estudante de ciências sociais, são militantes do Movimento Passe Livre




Folha, 22/06/2013

Uma transfusão necessária

Jaime Lerner


Zerar a tarifa do transporte público não é viável. Não cobrar pela passagem exigiria subsídios gigantescos (e por parte de quem?), pioraria a qualidade do serviço e, ainda assim, não resolveria a questão.

Proponho outro modelo, que permite reduzir o impacto das tarifas nos salários e ainda melhorar a qualidade dos serviços prestados.

A Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) sobre combustíveis, instituída em fins de 2001, tem em sua gênese a criação de uma fonte de receitas derivada predominantemente do consumo de combustíveis fósseis.

Para a distribuição desse montante entre os Estados, a lei que a instituiu determina o estabelecimento de cotas proporcionais à extensão da malha viária, ao consumo de combustíveis e à população. Do montante recebido por cada Estado, 25% deve ser destinado aos seus municípios.

Desde 2003, a União arrecadou R$ 54 bilhões com essa contribuição, considerando que desde 2008 a alíquota vem sendo reduzida para compensar os ajustes que teriam que ser repassados ao preço da gasolina, até ter sido zerada em 2012.

É um valor de respeito a ser investido na infraestrutura de transporte. Considerando o aumento contínuo da frota de veículos, essas captações podem ser ainda maiores.

Prefeitos como o de São Paulo, Fernando Haddad, têm relembrado a proposta de investir a Cide em projetos de mobilidade. Considerando que quase 85% dos brasileiros residem em áreas urbanas e o nível local é aquele que está mais próximo da população, essa é uma proposição a ser seriamente considerada.

Não se trata simplesmente de retirar recursos da União para as cidades --uma velha queda de braços--, mas de buscar equacionar uma questão central para a qualidade de vida: a mobilidade urbana.

O sistema viário disponível nas áreas urbanas é um recurso limitado e tem que ser compartilhado entre as ciclovias, a calçada, o transporte público, o individual e o de carga. As perdas de dinheiro, energia e tempo com congestionamentos são indicativos patentes da insustentabilidade da forma como temos abordado o problema.

Conquanto uma parte da solução esteja relacionada à compreensão da cidade como uma estrutura integrada de vida e trabalho, há uma parte importante que pode ser melhorada com investimentos bem direcionados ao transporte coletivo de alta capacidade e na articulação de todas as modalidades disponíveis para os deslocamentos urbanos de forma inteligente. Para isso são necessários recursos, os quais a Cide pode suprir em boa monta.

As cidades são o refúgio da solidariedade, e isso o governo federal precisa entender. É nelas que podemos fazer o impacto mais significativo para avançar as questões de sustentabilidade, das quais a mobilidade é parte intrínseca.

A utilização da Cide é uma ferramenta estratégica para transferir recursos da utilização do transporte individual para o coletivo --uma medida, no mínimo, democrática. E, conforme o transporte público de uma cidade avança, ela fica melhor até mesmo para o automóvel.

Pode-se argumentar que o governo federal perderá recursos. Gostaria de argumentar que não, que ele transferirá à população, via o nível de administração mais próximo do seu dia a dia, os recursos necessários à melhoria da qualidade de vida.

CID, no jargão médico, significa Classificação Internacional de Doenças. A falta de mobilidade hoje é um problema endêmico na saúde das nossas cidades. Podemos usar a Cide como tratamento, uma transfusão de recursos que possibilitará investir em sistemas de mobilidade mais saudáveis. É uma medida justa, necessária e inadiável.

JAIME LERNER, 75, arquiteto e urbanista, foi prefeito de Curitiba (1971-75, 1979-83 e 1989-92) e governador do Paraná (1995-98 e 1999-2002)




Folha, 22/06/2013

A voz das ruas e a mobilidade urbana

Lúcio Gregori


Finalmente, a voz das ruas foi ouvida e cidades como São Paulo e Rio revogaram o aumento do preço das tarifas dos transportes coletivos. Agora, é preciso estabelecer novos instrumentos de democracia direta, para não limitar a participação popular às eleições.

O cancelamento do aumento das tarifas suscita a urgente necessidade do estabelecimento de políticas permanentes de subsídios e, no limite, a tarifa zero. A manifestação popular fez essas reivindicações. Ao obter a revogação, conseguiu restabelecer seu foco original, tornando perfeitamente identificável pela população o resultado concreto dessa forma de participação popular.

A PEC (proposta de emenda constitucional) 90, de iniciativa de Luiza Erundina, estabelece a mobilidade urbana e metropolitana como direito social nos termos do artigo sexto da Constituição, tal como a saúde e a educação. É um passo importante na direção de uma política que garanta e amplie o acesso universal aos serviços essenciais.

A mobilização que toma conta do país deixa escancarada a crise financeira do Estado, que não tem recursos para atender a demanda de serviços públicos fundamentais. Demonstra a necessidade de um reforma tributária de fôlego, que estabeleça que quem possui maior poder aquisitivo deve contribuir mais.

A constatação da má qualidade dos serviços públicos é o que faz as manifestações prosseguirem após a revogação. E a violência que às vezes aflora mostra que a sociedade brasileira é violenta, e não os manifestantes em si.

Os protestos trouxeram a questão dos transportes coletivos urbanos para o mesmo campo em que se situam as lutas por serviços públicos, ou seja, no terreno da disputa política por recursos do Estado. A sociedade rapidamente apreendeu essa ideia.

Mas não pode se confundir quanto ao conceito da tarifa zero. Ele significa não pagar o transporte coletivo no ato de sua utilização. De graça? Não. Pago pelo conjunto dos impostos progressivos cobrados dos contribuintes.

Os níveis de subsídio à tarifa são baixíssimos no Brasil --cerca de 12% ante 50% ou 60% praticados em outros países. A revogação dos aumentos, reivindicação original do Movimento Passe Livre, é o primeiríssimo passo para o reforço das políticas de subsídio, até a tarifa zero. Que não tem um equacionamento igual para todos os municípios e Estados. Alguns, como Agudos (SP) e Porto Real (RJ), implantaram a gratuidade. Municípios maiores exigirão uma engenharia financeira mais complexa. Mas o que importa, no limite, é a arrecadação associada a financiamentos federais e estaduais. Não o tamanho da cidade.

A tarifa zero pode ser implantada ao longo do tempo, a partir de subsídios crescentes e seguindo variadas estratégias. Algumas cidades no mundo têm um sistema seletivo, adotando a tarifa zero apenas em áreas críticas. Em São Paul, poder-se-ia iniciar a implantação da tarifa zero nos corredores de ônibus. Seria um avanço de agilidade e inteligência no uso dos mesmos.

O uso de ônibus de tração elétrica, que hoje prescinde do captador aéreo, completaria um modelo atraente para competir com o transporte individual motorizado, causa principal dos congestionamentos.

A política é o território por excelência da criação de novas soluções, da inovação. Reduzir a discussão da tarifa zero ao "não é possível" é renegar o conceito de política e contrato social. Agradecimentos aos jovens que trouxeram essa discussão para as ruas, ensinando transportes aos tecnocratas, informação aos jornalistas e interesse público e democracia aos políticos.

LÚCIO GREGORI, 77, engenheiro, foi secretário municipal de Serviços e Obras (gestão Erundina) e de Transportes (gestão Erundina), quando formulou a proposta da tarifa zero




Folha, 05/08/2013

Universalização do vale-transporte

Gustavo Fruet


Apostamos em uma proposta ousada na busca por qualidade e tarifa justa do transporte público.

Em Curitiba, que até hoje é reconhecida internacionalmente como cidade de vanguarda nesse tema e tem o modelo de canaletas exclusivas copiado por outras metrópoles, o sistema está à beira do colapso.

A falta de investimentos em inovações e uma licitação recente (2010) que gera descontentamentos em operadores e usuários são neste momento os principais entraves para atrair mais passageiros.

Entre 2008 e 2011, houve uma redução de 14 milhões de usuários pagantes transportados, o número de passageiros passou de 323,50 milhões para 309,50 milhões.

Em outras grandes cidades do país, a tendência é a mesma.

Diante desse quadro, a nós, administradores, restam duas alternativas. Ou aproveitamos a provocação que vem das ruas para gerar efeitos práticos ou desperdiçamos a oportunidade de ousarmos com um respaldo popular nunca antes experimentado.

A Prefeitura de Curitiba encaminhou ao governo federal uma proposta que pode ser o ponto de partida para o debate.

O ponto principal da nossa proposta é a universalização do vale-transporte (VT). A ideia é que todas as empresas e órgãos públicos repassem diretamente ao operador do sistema de transporte coletivo da sua cidade ou região o valor correspondente ao VT dos empregados, arcando integralmente com esse custo. No caso das empresas, poderia ser abatido do Imposto de Renda.

Dessa forma, o trabalhador não pagaria mais a tarifa. Estudantes também poderiam ter isenção, de acordo com a renda. Somente pagariam a tarifa cheia os usuários eventuais e o turista.

Em algumas cidades --dependendo do número de linhas e usuários, a tarifa poderia ser até mesmo gratuita para todos.

Para muitos empregadores, o aumento de custo seria pequeno. Atualmente, a lei autoriza empregadores a aplicarem descontos de até 6% no salário base de empregados para bancar o vale. Porém, muitas empresas já não praticam esse desconto, optando por bancar a maior parte ou até a totalidade do vale-transporte.

A ideia não é nova e é usada com sucesso em cidades da Europa. No material encaminhado ao governo federal, citamos como exemplo a francesa Lyon, que tem um dos melhores sistemas de transporte do continente, incluindo integração multimodal e tarifa única.

Lá, as empresas bancam 36% do custo do sistema, que gira em torno de 800 milhões de euros/ano. No Brasil, onde já temos o vale-transporte, a implantação seria muito mais simples do que foi na França.

Em Curitiba, por exemplo, 47% da receita já vem do vale-transporte. O novo VT ampliaria o financiamento do sistema. Para isso, é necessária a mudança da legislação do vale-transporte, por iniciativa do governo federal e do Congresso Nacional.

O grupo técnico da Prefeitura de Curitiba também indicou uma segunda alternativa, por meio da Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico), que com acréscimo de centavos teria a condição de suportar a redução tarifária proposta e incentivar a população a usar transporte público.



GUSTAVO FRUET, 50, advogado, ex-deputado federal (1998-2010), é o prefeito de Curitiba pelo PDT




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