Tarifa Zero: debate em quatro artigos da Folha
Folha, 05/07/2013
Rumo à
tarifa zero
Daniel Guimarães, Graziela Kunsch, Mariana Toledo e Luiza Mandetta
É
preciso abrir a caixa-preta dos transportes públicos, com ou sem
CPI, e, sobretudo, é urgente discutir o modelo de gestão
Há
pouco, escrevemos sobre os motivos que nos levaram às ruas. O
aumento de R$ 0,20 nas tarifas acentuaria a exclusão social
provocada por um modelo de gestão do transporte baseado nas
concessões privadas e na cobrança de tarifa.
Após
duas semanas de luta, a população de São Paulo revogou o aumento.
Resistimos à desqualificação dos meios de comunicação, bombas,
balas e prisões arbitrárias.
Isso não
fugiu à regra do tratamento que o Estado dá aos movimentos sociais.
É importante que o Judiciário reconheça a ilegalidade das
acusações que pesam sobre alguns dos detidos, entre elas a de
formação de quadrilha. E que o Ministério Público reconheça a
arbitrariedade da polícia e se recuse a oferecer denúncias contra
manifestantes, evitando processos criminais.
Foi uma
vitória das ruas, de esquerda e pedagógica, que ensinou que a
população organizada pode mudar os rumos de sua cidade e, por
consequência, de sua vida. Tarifas foram reduzidas em quase 50
cidades, sendo mais de dez capitais. Há lutas em andamento, e o
debate sobre a tarifa zero está em pauta.
Por conta
desse cenário e por contribuirmos ao pensar a mobilidade urbana como
forma de garantir o direito à cidade, fomos convidados pela
presidenta Dilma Rousseff para uma conversa em Brasília. Fomos, mas
não sozinhos. Sem sermos porta-vozes de ninguém que não nós
mesmos, manifestamos solidariedade às lutas reprimidas de outros
movimentos e de povos indígenas.
A
presidenta não havia se debruçado com profundidade sobre nossa
principal proposta. Ao afirmar que "não existe tarifa zero: ou
se paga passagem ou se paga imposto", ignora que nunca
defendemos ônibus de graça. Transporte tem um custo, claro, mas a
tarifa pode ser zero.
Esse
custo deve ser pago coletivamente, de forma progressiva (quem tem
mais paga mais, quem tem menos paga menos) e não apenas pelo
usuário. Sem transporte, nada funciona e, por isso, a conta deve ser
dividida por meio de impostos, como todos os serviços públicos.
Dilma ao
menos demonstrou concordar que o transporte é um direito social e
cobramos um posicionamento sobre a PEC 90, proposta de emenda
constitucional que insere o transporte público entre os direitos
sociais no artigo 6º da Constituição, em tramitação na Câmara.
Dilma
reiterou sua disposição em políticas de desoneração, pauta
histórica dos empresários organizados. Não concordamos. Desonerar
é fazer com que o Estado deixe de arrecadar, subsidiando empresas
privadas, não a população. O dinheiro público deve ser investido
em transporte público --queremos disputar o uso dos recursos. Com o
que o Estado gasta? De acordo com o Ipea, o Brasil investe 12 vezes
mais em transporte privado do que em público. Devemos inverter as
prioridades!
Finalmente,
consideramos oportuna a decisão do prefeito Fernando Haddad de
suspender a licitação das empresas de ônibus. É preciso abrir a
caixa-preta, com ou sem CPI, e, sobretudo, é urgente discutir o
modelo de gestão.
É
significativa a informação de que os empresários ameaçaram
boicotar a licitação e até deixar a cidade com menos ônibus por
avaliar que perderiam cerca de 10% de seus rendimentos. É por isso
que o transporte deve ser gerido pelo poder público e com
participação popular, não pela lógica do lucro.
O
Movimento Passe Livre seguirá nas ruas, nas escolas, nos bairros,
fazendo o debate com a população. Nossa luta de fôlego é pela
tarifa zero. Por ela coletaremos 430 mil assinaturas para propor um
projeto de lei de iniciativa popular na Câmara dos Vereadores. Vamos
retirar as catracas do caminho. Juntos abriremos as ruas de São
Paulo.
DANIEL
GUIMARÃES, 29, jornalista, GRAZIELA KUNSCH, 34, artista, MARIANA
TOLEDO, 27, socióloga, e LUIZA MANDETTA, 19, estudante de ciências
sociais, são militantes do Movimento Passe Livre
Folha,
22/06/2013
Uma
transfusão necessária
Jaime
Lerner
Zerar a
tarifa do transporte público não é viável. Não cobrar pela
passagem exigiria subsídios gigantescos (e por parte de quem?),
pioraria a qualidade do serviço e, ainda assim, não resolveria a
questão.
Proponho
outro modelo, que permite reduzir o impacto das tarifas nos salários
e ainda melhorar a qualidade dos serviços prestados.
A
Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) sobre
combustíveis, instituída em fins de 2001, tem em sua gênese a
criação de uma fonte de receitas derivada predominantemente do
consumo de combustíveis fósseis.
Para a
distribuição desse montante entre os Estados, a lei que a instituiu
determina o estabelecimento de cotas proporcionais à extensão da
malha viária, ao consumo de combustíveis e à população. Do
montante recebido por cada Estado, 25% deve ser destinado aos seus
municípios.
Desde
2003, a União arrecadou R$ 54 bilhões com essa contribuição,
considerando que desde 2008 a alíquota vem sendo reduzida para
compensar os ajustes que teriam que ser repassados ao preço da
gasolina, até ter sido zerada em 2012.
É um
valor de respeito a ser investido na infraestrutura de transporte.
Considerando o aumento contínuo da frota de veículos, essas
captações podem ser ainda maiores.
Prefeitos
como o de São Paulo, Fernando Haddad, têm relembrado a proposta de
investir a Cide em projetos de mobilidade. Considerando que quase 85%
dos brasileiros residem em áreas urbanas e o nível local é aquele
que está mais próximo da população, essa é uma proposição a
ser seriamente considerada.
Não se
trata simplesmente de retirar recursos da União para as cidades
--uma velha queda de braços--, mas de buscar equacionar uma questão
central para a qualidade de vida: a mobilidade urbana.
O sistema
viário disponível nas áreas urbanas é um recurso limitado e tem
que ser compartilhado entre as ciclovias, a calçada, o transporte
público, o individual e o de carga. As perdas de dinheiro, energia e
tempo com congestionamentos são indicativos patentes da
insustentabilidade da forma como temos abordado o problema.
Conquanto
uma parte da solução esteja relacionada à compreensão da cidade
como uma estrutura integrada de vida e trabalho, há uma parte
importante que pode ser melhorada com investimentos bem direcionados
ao transporte coletivo de alta capacidade e na articulação de todas
as modalidades disponíveis para os deslocamentos urbanos de forma
inteligente. Para isso são necessários recursos, os quais a Cide
pode suprir em boa monta.
As
cidades são o refúgio da solidariedade, e isso o governo federal
precisa entender. É nelas que podemos fazer o impacto mais
significativo para avançar as questões de sustentabilidade, das
quais a mobilidade é parte intrínseca.
A
utilização da Cide é uma ferramenta estratégica para transferir
recursos da utilização do transporte individual para o coletivo
--uma medida, no mínimo, democrática. E, conforme o transporte
público de uma cidade avança, ela fica melhor até mesmo para o
automóvel.
Pode-se
argumentar que o governo federal perderá recursos. Gostaria de
argumentar que não, que ele transferirá à população, via o nível
de administração mais próximo do seu dia a dia, os recursos
necessários à melhoria da qualidade de vida.
CID, no
jargão médico, significa Classificação Internacional de Doenças.
A falta de mobilidade hoje é um problema endêmico na saúde das
nossas cidades. Podemos usar a Cide como tratamento, uma transfusão
de recursos que possibilitará investir em sistemas de mobilidade
mais saudáveis. É uma medida justa, necessária e inadiável.
JAIME
LERNER, 75, arquiteto e urbanista, foi prefeito de Curitiba (1971-75,
1979-83 e 1989-92) e governador do Paraná (1995-98 e 1999-2002)
Folha,
22/06/2013
A voz
das ruas e a mobilidade urbana
Lúcio
Gregori
Finalmente,
a voz das ruas foi ouvida e cidades como São Paulo e Rio revogaram o
aumento do preço das tarifas dos transportes coletivos. Agora, é
preciso estabelecer novos instrumentos de democracia direta, para não
limitar a participação popular às eleições.
O
cancelamento do aumento das tarifas suscita a urgente necessidade do
estabelecimento de políticas permanentes de subsídios e, no limite,
a tarifa zero. A manifestação popular fez essas reivindicações.
Ao obter a revogação, conseguiu restabelecer seu foco original,
tornando perfeitamente identificável pela população o resultado
concreto dessa forma de participação popular.
A PEC
(proposta de emenda constitucional) 90, de iniciativa de Luiza
Erundina, estabelece a mobilidade urbana e metropolitana como direito
social nos termos do artigo sexto da Constituição, tal como a saúde
e a educação. É um passo importante na direção de uma política
que garanta e amplie o acesso universal aos serviços essenciais.
A
mobilização que toma conta do país deixa escancarada a crise
financeira do Estado, que não tem recursos para atender a demanda de
serviços públicos fundamentais. Demonstra a necessidade de um
reforma tributária de fôlego, que estabeleça que quem possui maior
poder aquisitivo deve contribuir mais.
A
constatação da má qualidade dos serviços públicos é o que faz
as manifestações prosseguirem após a revogação. E a violência
que às vezes aflora mostra que a sociedade brasileira é violenta, e
não os manifestantes em si.
Os
protestos trouxeram a questão dos transportes coletivos urbanos para
o mesmo campo em que se situam as lutas por serviços públicos, ou
seja, no terreno da disputa política por recursos do Estado. A
sociedade rapidamente apreendeu essa ideia.
Mas não
pode se confundir quanto ao conceito da tarifa zero. Ele significa
não pagar o transporte coletivo no ato de sua utilização. De
graça? Não. Pago pelo conjunto dos impostos progressivos cobrados
dos contribuintes.
Os níveis
de subsídio à tarifa são baixíssimos no Brasil --cerca de 12%
ante 50% ou 60% praticados em outros países. A revogação dos
aumentos, reivindicação original do Movimento Passe Livre, é o
primeiríssimo passo para o reforço das políticas de subsídio, até
a tarifa zero. Que não tem um equacionamento igual para todos os
municípios e Estados. Alguns, como Agudos (SP) e Porto Real (RJ),
implantaram a gratuidade. Municípios maiores exigirão uma
engenharia financeira mais complexa. Mas o que importa, no limite, é
a arrecadação associada a financiamentos federais e estaduais. Não
o tamanho da cidade.
A tarifa
zero pode ser implantada ao longo do tempo, a partir de subsídios
crescentes e seguindo variadas estratégias. Algumas cidades no mundo
têm um sistema seletivo, adotando a tarifa zero apenas em áreas
críticas. Em São Paul, poder-se-ia iniciar a implantação da
tarifa zero nos corredores de ônibus. Seria um avanço de agilidade
e inteligência no uso dos mesmos.
O uso de
ônibus de tração elétrica, que hoje prescinde do captador aéreo,
completaria um modelo atraente para competir com o transporte
individual motorizado, causa principal dos congestionamentos.
A
política é o território por excelência da criação de novas
soluções, da inovação. Reduzir a discussão da tarifa zero ao
"não é possível" é renegar o conceito de política e
contrato social. Agradecimentos aos jovens que trouxeram essa
discussão para as ruas, ensinando transportes aos tecnocratas,
informação aos jornalistas e interesse público e democracia aos
políticos.
LÚCIO
GREGORI, 77, engenheiro, foi secretário municipal de Serviços e
Obras (gestão Erundina) e de Transportes (gestão Erundina), quando
formulou a proposta da tarifa zero
Folha,
05/08/2013
Universalização
do vale-transporte
Gustavo
Fruet
Apostamos
em uma proposta ousada na busca por qualidade e tarifa justa do
transporte público.
Em
Curitiba, que até hoje é reconhecida internacionalmente como cidade
de vanguarda nesse tema e tem o modelo de canaletas exclusivas
copiado por outras metrópoles, o sistema está à beira do colapso.
A falta
de investimentos em inovações e uma licitação recente (2010) que
gera descontentamentos em operadores e usuários são neste momento
os principais entraves para atrair mais passageiros.
Entre
2008 e 2011, houve uma redução de 14 milhões de usuários pagantes
transportados, o número de passageiros passou de 323,50 milhões
para 309,50 milhões.
Em outras
grandes cidades do país, a tendência é a mesma.
Diante
desse quadro, a nós, administradores, restam duas alternativas. Ou
aproveitamos a provocação que vem das ruas para gerar efeitos
práticos ou desperdiçamos a oportunidade de ousarmos com um
respaldo popular nunca antes experimentado.
A
Prefeitura de Curitiba encaminhou ao governo federal uma proposta que
pode ser o ponto de partida para o debate.
O ponto
principal da nossa proposta é a universalização do vale-transporte
(VT). A ideia é que todas as empresas e órgãos públicos repassem
diretamente ao operador do sistema de transporte coletivo da sua
cidade ou região o valor correspondente ao VT dos empregados,
arcando integralmente com esse custo. No caso das empresas, poderia
ser abatido do Imposto de Renda.
Dessa
forma, o trabalhador não pagaria mais a tarifa. Estudantes também
poderiam ter isenção, de acordo com a renda. Somente pagariam a
tarifa cheia os usuários eventuais e o turista.
Em
algumas cidades --dependendo do número de linhas e usuários, a
tarifa poderia ser até mesmo gratuita para todos.
Para
muitos empregadores, o aumento de custo seria pequeno. Atualmente, a
lei autoriza empregadores a aplicarem descontos de até 6% no salário
base de empregados para bancar o vale. Porém, muitas empresas já
não praticam esse desconto, optando por bancar a maior parte ou até
a totalidade do vale-transporte.
A ideia
não é nova e é usada com sucesso em cidades da Europa. No material
encaminhado ao governo federal, citamos como exemplo a francesa Lyon,
que tem um dos melhores sistemas de transporte do continente,
incluindo integração multimodal e tarifa única.
Lá, as
empresas bancam 36% do custo do sistema, que gira em torno de 800
milhões de euros/ano. No Brasil, onde já temos o vale-transporte, a
implantação seria muito mais simples do que foi na França.
Em
Curitiba, por exemplo, 47% da receita já vem do vale-transporte. O
novo VT ampliaria o financiamento do sistema. Para isso, é
necessária a mudança da legislação do vale-transporte, por
iniciativa do governo federal e do Congresso Nacional.
O grupo
técnico da Prefeitura de Curitiba também indicou uma segunda
alternativa, por meio da Cide (Contribuição de Intervenção no
Domínio Econômico), que com acréscimo de centavos teria a condição
de suportar a redução tarifária proposta e incentivar a população
a usar transporte público.
GUSTAVO
FRUET, 50, advogado, ex-deputado federal (1998-2010), é o prefeito
de Curitiba pelo PDT
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