quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Texto de Boaventura de Souza Santos


PRIMEIRA CARTAS ÀS ESQUERDAS
 
Boaventura de Souza Santos

Não questiono que exista um futuro para as esquerdas, mas seu futuro não será uma continuação linear de seu passado. Definir o que têm em comum equivale a responder a pergunta: " Que é a esquerda?". A esquerda é um conjunto de posições políticas que compartilham o ideal de que todos os seres humanos têm todos o mesmo valor e que são o valor mais alto. Este ideal é posto em questão sempre que há relacões sociais de poder desiguais, isto é, de dominação. Neste caso, alguns indivíduos ou grupos satisfazem algumas de suas necessidades tranformando a outros indivíduos ou grupos em meios para seus fins. O capitalismo não é a única fonte de dominação, mas é uma fonte importante.
 
As diferentes compreensões deste ideal produziram diversas fraturas. As principais foram respostas opostas às seguintes perguntas: o capitalismo pode ser reformado para melhorar a sorte dos dominados ou isto só é possível fora do capitalismo? A luta social deve ser conduzida por uma classe (a classe operária) ou por diferentes classes e grupos sociais? Deve ser conduzida dentro das instituições democráticas ou fora delas? O Estado é, em si mesmo, uma relação de dominação ou pode ser mobilizado para combater as relações de dominação?
 
As respostas opostas a estas perguntas estiveram na origem de violentas fraturas. Em nome da esquerda se cometeram atrocidades contra a esquerda; mas, em seu conjunto, as esquerdas dominaram o século XX (apesar do nazismo, do fascismo e do colonialismo) e o mundo se tornou mais livre e igualitaário graças a elas. O breve século das esquerdas terminou com a queda do Muro de Berlim. Os últimos trinta anos foram marcados, por um lado, pela gestão de ruínas e de inércias e, por outro, pela emergência de novas lutas contra a dominação, com outros atoters e outras linguagens que as esquerdas não puderam entender.

Enquanto isso, liberado das esquerdas, o capitalismo voltou a mostrar sua vocação antissocial. Agora volta a ser urgente reconstruir as esquerdas para evitar a barbárie. Como recomeçar? Com a aceitação das seguintes ideias:

Primeiro, o mundo se diversificou e a diversidade se instalou no interior de cada país. A compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental do mundo; não há internacionalismo sem interculturalismo.
 
Segundo, o capitalismo concebe a democracia como um instrumento de acumulação; se é preciso, a reduz a irrelevância e, se encontra outro instrumento mais eficiente, prescinde dela (o caso da China). A defesa da democracia de alta intensidade deve ser a grande bandeira das esquerdas.
 
Terceiro, o capitalismo é amoral e não entende o conceito de dignidade huamana; defender esta dignidade é uma luta contra o capitalismo e nunca com o capitalismo (no capitalismo, inclusive as esmolas só existem como como relações públicas).

Quarto, a experiência do mundo mostra que há imensas realidades no capitalismo, guiadas pela reciprocidade e o cooperativismo, a espera de serem valorizadas como o futuro dentro do presente.

Quinto, o século passado revelou que a relação dos seres humanos com a natureza é uma relação de dominação contra a qual temos que lutar; o crescimento econômico não é infinito.

Sexto, a propriedade privada só é um bem social se é uma entre várias formas de propriedade e se todas estão protegidas; há bens comuns da humanidade (como a água e o ar).

Sétimo, o breve século das esquerdas foi suficiente para criar um espírito igualitário entre os seres humanos que aparece em todas as pesquisas; este é um patrimônio das esquerdas que elas estão dilapidando.

Oitavo, o capitalismo precisa de outras formas de dominação para florecer, do racismo ao sexismo e a guerra, e todas devem ser combatidas.

Nono, o Estado é um animal estranho, metade anjo e metade monstro, mas sem ele muitos outros monstros andariam soltos, insaciáveis, à casa dos anjos indefesos. Melhor Estado, sempre; menos Estado, nunca.

Com estas ideias, as esquerdas seguirão sendo várias, ainda que já não seja provável que se matem umas as outras e é possível que se unam para deter a barbárie que se aproxima.

Boaventura de Souza Santos, sociólogo e professor universitário. É um dos maiores nomes da esquerda mundial, conhedor da realidade brasileira  e mantém  boas e próximas relações com o Partido dos Trabalhadores. 

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