sábado, 21 de maio de 2011

Incêndios



Incêndios

Texto de Demilson Fortes


Assisti na Casa de Cultura Mário Quintana, o filme Incêndios, produção Canadá/França, 2010, direção de Denis Villeneuve, com Melissa Désormeaux, Maxim Gaudette, Lubna Azabal. Um excelente filme sobre a vida e a condição humana. Sobre as pessoas diante da realidade e daquilo que chamamos de verdade. Ao encontrá-la, por acaso ou procurando-a, torna-se pesado demais. Mas, às vezes, ela está ali, incontornável. Faz-se necessário, portanto, abrir os baús e examinar os guardados, mesmo que isto massacrante seja.

Possivelmente, sempre haverá um momento em que teremos de penetrar nos compartimentos escuros da nossa casa e, ao iluminar o que estava escondido, poderemos presenciar bem a nossa frente, o que nunca gostaríamos de ter visto. A vida pode ser bela, mas também surpreendente, louca, inusitada, ou cruel.

A questão é: “Quanto de verdade suporta um espírito?”, citando Nietzsche. Ou poderia ser: “A verdade vos libertará”, do trecho da Bíblia Cristã. A verdade, bem como a dor e ou a libertação por ela provocada. É certo que para preservar a paz de espírito, algumas verdades, melhor seria se não as ficássemos sabendo. A verdade pode doer demais. Algumas vezes, mais do que podemos suportar. Às vezes, são tão fortes como se o mundo desabasse em cima das nossas cabeças. Podem nos deixar sem chão ou nos enredarem, nos prendendo e nos deixando sem opção de fuga. Há aquele momento da vida que nos deixa perplexos, como se o nosso mundo colidisse com os outros mundos, sentimo-nos solitários, imersos em um vazio, estranhos em nós mesmos.

Entretanto, em vários momentos das nossas vidas, temos de encarar o que está posto a nossa frente, o que nos foi colocado, aqueles momentos onde é difícil ou até impossível contornar o concreto, por mais inacreditável ou doloroso que seja. Vida, crise, circunstâncias.

O filme Incêndios é assim, apresenta a verdade dura. Expõe, descortina, vai desdobrando-se aos poucos, como em um quebra-cabeça ao ser montado e fazendo surgir um retrato da face até então desconhecida. Trata-se de dois jovens, que ao conhecer o passado de sua mãe, acabam por decorrência, conhecendo suas raízes e a si próprios. A história de uma mulher que vive no contexto histórico de conflito. O Líbano da guerra civil de há alguns anos, onde religião e política misturaram-se de forma explosiva. Literalmente explosiva. No oriente desse contexto, gerações foram marcadas pela violência, pelo ódio recíproco, pela intolerância. Desse período e dessa realidade, ficaram cicatrizes, sejam físicas e psíquicas, que nunca mais os abandonarão. Marcas que serão para sempre.

No filme Incêndios, como na vida, nunca seremos os mesmos depois do encontro com certas verdades. Fisicamente continuaremos os mesmos, mas não somos somente físicos. A nossa cultura, nossos sentimentos, nossas ações e nossa relação com o mundo nos definem. Como continuar inteiro e sorrindo logo após um pesadelo? Certamente não há padrões, mesmo com realidades análogas, cada pessoa interage com o mundo da sua forma, com suas fortalezas e debilidades. Nestes casos, bom seria se a Bíblia estivesse com a razão, quando relaciona a verdade à liberdade. Porém, a própria liberdade humana é complexa, cheia de contradições e labirintos, nos quais objetividades e subjetividades estarão definindo constantemente os caminhos. Entretanto, cabe lembrar, que a verdade, bem como a liberdade, são produtos de condições, são construções culturais, sociais, políticas e históricas, mesmo que no atual estágio da humanidade se tenha alguns valores disseminados e estes sejam de ampla aceitação, no marco da modernidade e dos direitos humanos. Os conceitos das coisas e as verdades são construídos socialmente, influenciados ideologicamente e disputados politicamente, em permanente conflito. Enfim, sempre estaremos nos deparando com as nossas verdades pessoais e coletivas.

Para aqueles que concebem cinema não somente como diversão e entretenimento, eu recomendo o filme Incêndios, pois é ótimo, gostei muito. Filme bem feito, com bons atores, boa fotografia, boa trilha sonora. Um drama sobre a vida e seus labirintos. O cinema como arte, com seus mistérios, nos envolvendo, nos fazendo sentir, calar, chorar, e pensar.


Porto Alegre, 21 de maio de 2011.

 

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